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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.32 no.6 Lisboa dez. 2016

 

OPINIÃO E DEBATE

Hemoglobinopatias em Portugal e a intervenção do médico de família

Hemoglobinopathies in Portugal and the role of the family physician

Sara Neves Costa,* Sara Madeira,** Maria Ana Sobral,*** Gonçalo Delgadinho****

*Médica Interna de Medicina Geral e Familiar, USF Mactamã, ACeS Sintra

**Médica Interna de Medicina Geral e Familiar, USF Mactamã, ACeS Sintra

***Médica Interna de Medicina Geral e Familiar, USF AlphaMouro, ACeS Sintra

****Médico Interno de Medicina Geral e Familiar, USF Arco-Iris, ACeS Amadora

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

As hemoglobinopatias são as doenças hereditárias mais frequentes e o seu diagnóstico precoce pode reduzir a morbimortalidade através da implementação atempada de medidas preventivas e terapêuticas. O médico de família encontra-se numa posição privilegiada para a realização do rastreio destas patologias.

Neste artigo são revistos elementos clínicos e epidemiológicos das hemoglobinopatias major. Com base nestas características é proposta uma abordagem por parte dos cuidados de saúde primários, de forma a identificar precocemente e/ou gerir as principais complicações associadas a esta condição. Por fim, e com o intuito de promover uma reflexão crítica, compilámos os documentos publicados sobre a epidemiologia nacional nesta temática.

Em Portugal existe uma única norma de orientação clínica que contempla a temática das hemoglobinopatias na perspetiva do rastreio pré-natal. Esta norma data de 2004, apesar de não terem sido publicados estudos epidemiológicos de caráter nacional desde a década de 80. Considerando os fenómenos migratórios externos e internos decorridos desde esse tempo, deverão os profissionais de saúde refletir sobre a proposta vigente de aplicação de um rastreio dirigido a zonas de risco então identificadas.

Conclui-se que é premente sensibilizar e capacitar os médicos de família na abordagem destas patologias. A revisão da epidemiologia nacional e eventuais condicionalismos regionais parecem ter também uma importância fundamental, de modo a serem tomadas decisões baseadas em evidência científica e mais orientadas para as necessidades específicas da população.

Palavras-chave: Hemoglobinopatias; Portugal; Médico de Família; Planeamento Familiar.


 

ABSTRACT

Hemoglobinopathies are among the most common inherited diseases. Early diagnosis can reduce morbidity and mortality with prompt implementation of preventive and therapeutic measures. The family physician can perform screening tests for hemoglobinopathies to help achieve this.

This article reviews the clinical and epidemiological features of the major hemoglobinopathies. Based on these characteristics, an approach is proposed for primary health care services to identify and manage the complications related to these conditions. In order to promote critical reflection on this topic, we have collected the literature on the epidemiology of these conditions in Portugal.

There is only one Portuguese guideline on hemoglobinopathies. This was published in 2004 but there have been no epidemiological studies published in Portugal since the 1980s. Given the patterns of external and internal migration of the population since that time, health professionals should reflect on the need for targeted screening for hemoglobinopathies in the risk areas identified previously.

We conclude that is urgent to sensitize and train family physician to address these conditions. A new study of the national epidemiology of hemoglobinopathies and possible regional variations is necessary in order to make decisions based on scientific evidence and focused on the specific needs of the population.

Keywords: Hemoglobinopathies; Portugal; Family Physician; Family Planning Services.


 

Objetivo

Com este artigo pretendemos promover uma reflexão crítica sobre o algoritmo de rastreio das hemoglobinopatias em Portugal. Este é definido na Normal de Orientação Clínica, da Direção-Geral da Saúde, em 2004 e sustenta uma política de rastreio apenas pré-natal e dirigido a uma população de risco. Para um melhor enquadramento definimos os seguintes objetivos específicos:

1. Sistematizar os aspetos relevantes para a medicina geral e familiar na abordagem clínica das hemoglobinopatias;

2. Rever os estudos epidemiológicos realizados a nível nacional sobre hemoglobinopatias.

Introdução

A hemoglobina existente nos glóbulos vermelhos é constituída por quatro cadeias de globina, duas do tipo alfa (α) e duas do tipo não alfa. A principal hemoglobina presente nos adultos saudáveis designa-se por HbA1 (97%) e é constituída por duas cadeias alfa e duas cadeias beta (α22). Existem ainda outros dois tipos de hemoglobina presentes: a HbA2, que representa cerca de 2% do total e é constituída por duas cadeias alfa e duas cadeias delta (α22), e uma fração residual (<1%) de hemoglobina fetal (HbF) constituída por duas cadeias alfa e duas gama (α2/γ2). As hemoglobinopatias resultam de mutações que afetam os genes responsáveis pela síntese das cadeias de globina da hemoglobina. São as doenças hereditárias mais frequentes a nível mundial e têm uma transmissão autossómica recessiva. São originárias da África subsariana, Ásia e subcontinente Indiano,1 mas atualmente a sua distribuição é heterogénea, resultado de múltiplos fenómenos migratórios. Este grupo de doenças divide-se em defeitos quantitativos (α-talassémia/β-talassémia) e qualitativos, quando há uma estrutura anómala das cadeias (HbS, HbD, etc.). A maioria das manifestações clínicas ocorrem a partir dos três meses de idade, resultado da conversão das cadeias existentes no período pré-natal nas cadeias pós-natais.

α-Talassémia

As diferentes formas de α-talassémia estão relacionadas com o número de genes delecionados ou mutados.2 A deleção dos quatro genes é incompatível com a vida por hidrópsia fetal. A deleção ou mutação de três genes cursa com anemia moderada a grave (Hb 8-11g/dl) e designa-se por doença da hemoglobina H. O atingimento de dois genes cursa com anemia ligeira microcítica e hipocrómica (Hb 11-13g/dl). A deleção de um gene pode ser fenotipicamente silenciosa (eritrograma dentro do intervalo de normalidade) ou manifestar-se por ligeira microcitose e hipocromia isoladas.

O diagnóstico da α-talassémia no adulto só pode ser confirmado com o recurso a técnicas de genética molecular. O aconselhamento genético justifica-se se ambos os elementos de um casal em idade fértil apresentarem microcitose e, após exclusão de ferropénia, β-talassémia e presença de variantes da hemoglobina.

β-Talassémia

O diagnóstico de β-talassémia é feito pela presença aumentada de HbA2 (>3,5%) associada a uma diminuição dos índices eritrocitários. A gravidade do quadro clínico depende do grau de diminuição da síntese da cadeia, definindo-se três grupos3 (ver Quadro I): talassémia minor ou traço talassémico, talassémia intermédia e talassémia major (Doença de Cooley). Enquanto na talassémia minor não existem sintomas graves (anemia ligeira microcítica), na talassémia intermédia a clínica é variável, com necessidade de transfusão ocasional. Na talassémia major, os doentes são dependentes de transfusões com complicações graves, incluindo as da sobrecarga de ferro.4

 

 

Doença de células falciformes

A Doença de células falciformes (DCF) ou drepanocitose é um termo genérico usado para denominar um grupo de doenças caracterizadas pela presença da hemoglobina S, na ausência de formação de HbA1. Sendo assim, exclui-se desta designação os portadores de HbS - usualmente designados por HbAS -, os quais não requerem quaisquer cuidados específicos, exceto no planeamento familiar em que o estudo do parceiro é necessário para evitar associação de genes afetados no feto.

A designação de DCF inclui os casos homozigóticos para a HbS (HbSS), que se designa por anemia de células falciformes (HbSS), as duplas heterozigotias - associações de HbS com outras variantes de hemoglobinas como a HbD, HbC - e ainda as interações com talassémias (HbS/β-talassémia, HbS/α-talassémia).3

Em Portugal, a apresentação mais frequente é a anemia de células falciformes (ACF). A HbS resulta de uma mutação pontual no gene da globina β que condiciona alterações da estabilidade e solubilidade, o que, em situações de baixa oxigenação, conduz à polimerização da sua estrutura com deformação em foice. A ACF caracteriza-se por anemia e hemólise crónicas, com agudizações como, por exemplo, crises vasooclusivas e/ou anemia aguda e aumento da suscetibilidade a infeções sistémicas. O quadro inaugural da doença pode ser fatal, como consequência de acidente cerebrovascular,5 sequestro esplénico ou sépsis.

Abordagem da medicina geral e familiar

O diagnóstico laboratorial das hemoglobinopatias é efetuado com base numa marcha analítica (Figura 1). Na avaliação de um hemograma é indispensável a valorização da microcitose, mesmo se não se encontra associada a anemia.

 

 

Um diagnóstico precoce possibilita uma diminuição da morbimortalidade através da implementação de medidas gerais e preventivas.6 O benefício das medidas profiláticas está bem estabelecido na DCF, nomeadamente ao nível das doenças infecciosas.6 Na talassémia major os benefícios da intervenção precoce não são tão evidentes.7 No Quadro II apresentam-se as principais complicações e possíveis intervenções clínicas. No Quadro III apresentam-se medidas educacionais específicas para a DCF.

 

 

 

Em 2004, a Direção-Geral da Saúde (DGS) reviu as orientações para prevenção de hemoglobinopatias major.8 Neste documento é recomendado o pedido de hemograma para pesquisa de hemoglobinopatias “a todas as mulheres em idade reprodutiva, em particular, nas consultas de planeamento familiar, pré-concecional ou, com caráter de urgência, na 1ª consulta da gravidez”. Para além destas situações, está recomendado o estudo de hemoglobinas se se verificar anemia, microcitose, hipocromia ou hemoglobina elevada* ou nas situações em que o hemograma é normal mas a família da mulher (ou do parceiro) é oriunda dos distritos com maior prevalência de HbS - Beja, Faro, Santarém e Setúbal - ou das comunidades de imigrantes de zonas de risco. Esta norma refere que o rastreio não deve ser realizado em crianças, salvo condições específicas.

No nosso país, o programa nacional de diagnóstico precoce não contempla o rastreio destas doenças.9

*Excluir formas raras de hemoglobinas variantes (hemoglobinas de alta afinidade) nas mulheres sem patologia associada e sem hábitos tabágicos.

Teste de Guthrie.

Nestas doenças, a atuação do médico de família é transversal e longitudinal. Inclui o aconselhamento e rastreio pré-natal, diagnóstico e consequente intervenção precoce e o acompanhamento dos doentes afetados e suas famílias. O conhecimento da prevalência e incidência das doenças é particularmente relevante na medicina comunitária uma vez que condiciona o processo de tomada de decisões. Assim se justifica o interesse desta revisão epidemiológica na área da medicina geral e familiar, embora não seja de excluir a sua utilidade para outras especialidades médicas. Os constantes fenómenos migratórios tornam imprescindível conhecer a epidemiologia nacional, com as suas idiossincrasias regionais, de uma forma rigorosa e atualizada.

Descrição dos estudos realizados em Portugal

No sentido de rever os estudos realizados no âmbito da população portuguesa consultámos entidades e personalidades nacionais de referência, tanto de âmbito clínico como de saúde pública. São apresentados os principais resultados dos estudos em conjunto com as considerações dos documentos oficiais da DGS, por ordem cronológica.

No início dos anos 80 foi realizado o primeiro estudo de âmbito nacional, baseado nos jovens militarizados, com o intuito de caracterizar a prevalência e a distribuição geográfica dos genes associados a hemoglobinopatias no nosso país. A prevalência global de portadores foi definida entre 1 e 2%, sendo superior a prevalência do gene da β-talassémia (0,45%) em relação à HbS (0,32%).10 Foram ainda identificadas duas “bolsas” de elevada prevalência de portadores de HbS, no curso dos rios Tejo e Sado.10 A distribuição geográfica revelou-se francamente assimétrica, com preponderância no sul do País, como pode ser observado na Figura 2.

 

 

Na sequência destes achados foi criado em Portugal, no ano de 1986, o Programa Nacional de Controlo das Hemoglobinopatias (PNCH), em cooperação com a Organização Mundial da Saúde e coordenado pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA, IP). O PNCH foi implementado nas sete regiões do País identificadas com maiores prevalências de portadores, tendo como população alvo os habitantes dos distritos de Beja, Évora, Faro, Leiria, Lisboa, Santarém e Setúbal.11 Os objetivos deste programa abrangiam diferentes vertentes, nomeadamente ao nível da prevenção e aconselhamento, do cuidado otimizado aos doentes, mas também a investigação científica e epidemiológica e a formação dos profissionais de saúde.11 Através da colheita de sangue às populações de risco pretendia-se prevenir o aparecimento de novos casos de hemoglobinopatias major, identificando portadores e casais de risco, aos quais era fornecido aconselhamento genético e diagnóstico pré-natal. Aos portadores identificados era oferecida a possibilidade de rastreio aos seus familiares (rastreio “em cascata” ou “clusters”).10-11 Os testes hematológicos (de rastreio) incluíam avaliação dos índices eritrocitários e o teste de solubilidade da hemoglobina S.

No âmbito do PNCH foi realizado um estudo multicêntrico de rastreio orientado para portadores. No período entre 1987 e 1993 foram rastreados 22.683 residentes nas sete regiões abrangidas dos quais 6.688 estavam grávidas e 15.955 eram considerados como população de risco. Foram identificados 19 casais de risco e realizados 14 diagnósticos pré-natais que possibilitaram a prevenção de dois novos casos de hemoglobinopatia major (um caso de anemia falciforme e um caso de β-talassémia major).11 Esta avaliação permitiu completar a informação epidemiológica descrita nos anos 80,10 descrevendo a existência de “bolsas” de alta prevalência (superior a 5%) de portadores de β-talassémia, na Bacia do Rio Mira e no Barlavento Algarvio. Neste estudo foram identificados 2.027 portadores (incluindo portadores de β-talassémia e de HbS), o que corresponde a 8,9% dos indivíduos rastreados.

O Plano Nacional de Saúde 2004-2010 previa o Programa Nacional de Controlo das Hemoglobinopatias, referindo que “o problema representado pelas talassémias está controlado, o mesmo não podendo dizer-se da drepanocitose agravado por imigrantes oriundos da costa ocidental de África, especialmente de Angola e São Tomé”12 e incentivando os trabalhos de controlo nas áreas de alta prevalência. Neste contexto, em 2004, a DGS revê as orientações para prevenção de hemoglobinopatias major, que datavam de 1996. Esta revisão foi motivada pela acentuada migração interna e acolhimento de imigrantes proveniente de áreas de elevada prevalência, nomeadamente da Europa de Leste e da Ásia.8 Estas orientações mantêm-se até à data.

Em 2006 foi publicado um estudo realizado na região centro13 sobre a utilização de amostras de sangue capilar no contexto de rastreio de β-talassémia e variantes da hemoglobina. A metodologia foi aplicada a grávidas até às 18 semanas e adultos jovens, obtendo-se um total de 12.228 amostras no final do primeiro ano. Foram identificados 217 portadores (1,77%), dos quais 65,4% com β-talassémia, sendo os restantes variantes da hemoglobina. Foram identificados quatro casais de risco (dois com β-talassémia major e dois DCF), tendo-se identificado um feto afetado.

Em 2011, numa tentativa de criar um registo nacional de doentes com drepanocitose, foram apresentados no encontro Drepanocitose em Debate dados reportados pelos diferentes centros hospitalares. De um total de 590 registos, o genótipo HbSS foi o mais frequente (75,9%), sendo o segundo mais representativo a HbS-tal (5,1%) e HbSC (5,1%). A faixa etária com maior número de doentes registados foi a dos 6 aos 25 anos (48,8%). Estes dados foram divulgados, mas não foram publicados até à data.

Mais recentemente, num artigo breve publicado pelo departamento de promoção da saúde e prevenção de doenças não-transmissíveis do INSA foi apresentada a casuística referente aos anos de 2010 a 2013 do PNCH. Foi descrita uma diminuição progressiva do número de amostras enviadas ao INSA, essencialmente justificada pela maioria dos rastreios serem realizados ao nível dos laboratórios locais. Em conformidade com o público-alvo da norma em vigor, a maioria dos portadores identificados eram do género feminino e a média de idades foi de 29 anos. É de referir que, apesar de a maioria dos portadores ser originária da região sul, têm sido diagnosticados múltiplos casos na região norte, sugerindo uma dispersão geográfica. Neste período foram identificados nove casais em risco e que foram devidamente encaminhados.14

O único estudo realizado em Portugal em crianças data da década de 90. Este estudo foi realizado na Maternidade Alfredo da Costa e envolveu a colheita de sangue do cordão umbilical de 400 recém-nascidos independentemente de qualquer seleção. Foram identificadas seis crianças portadoras de HbS (1,5%), das quais quatro eram de proveniência africana e não foi identificado nenhum caso de doença. Foram ainda identificados 10 portadores de deleção de um gene de α-globina num total de 100 avaliados (10%). É com base nestes resultados que os autores deste estudo consideraram não existir justificação, em termos de custo-benefício, na aplicação de um rastreio neonatal de drepanocitose a toda a população. No entanto, consideraram a hipótese de um rastreio dirigido à população em risco. Em relação ao rastreio neonatal de α-talassémia, os autores preveem um grande número de resultados falsos negativos se o rastreio for baseado nos índices hematimétricos e na presença de Hb Bart (γ2/γ2), sendo indispensável a caracterização do genótipo da α-globina.15

Discussão

Os médicos de família devem conhecer a comunidade onde trabalham e estar atentos às suas necessidades específicas. Por exemplo, na área geográfica de Amadora-Sintra a população migrante é frequente e as hemoglobinopatias são uma realidade da prática clínica. Neste contexto, o hospital de referência apresenta uma intervenção específica e dirigida ao realizar o rastreio neonatal à população de risco cuja mãe não foi rastreada.

No nosso país, a única orientação oficial data de 2004, inclui apenas o rastreio pré-natal e está preconizado para as mulheres em idade reprodutiva que, perante parâmetros hematológicos normais, tenham família própria ou do parceiro oriundos de Beja, Faro, Santarém, Setúbal, países africanos, subcontinente Indiano, Brasil, Europa de Leste e Ásia.

É de realçar que, desde o estudo que deu origem à criação do PNCH na década de 80, não foram publicados estudos epidemiológicos de abrangência nacional que permitam conhecer a percentagem atualizada de portadores ou doentes com hemoglobinopatias. Esta necessidade torna-se ainda mais premente se considerarmos que o número de indivíduos estrangeiros a residir em Portugal aumentou de 226.775 para 359.969 entre 2001 e 2011, dos quais a população brasileira passou a constituir o grupo migratório mais significativo.16

De acordo com a nossa perspetiva, esta circular normativa apresenta algumas limitações. Em relação à prática clínica, a uniformização de procedimentos é difícil face a uma proposta de abordagem pouco linear. A principal dificuldade em consulta é, desde logo, a identificação dos casais de risco. O correto reconhecimento implica uma anamnese familiar cuidada, dirigida e tendencialmente morosa. Acresce o facto de, no documento, não estar definido até que grau geracional se deve investigar a origem geográfica dos antecedentes. Adicionalmente, as pessoas podem não conseguir fornecer informação fidedigna acerca das suas origens familiares e/ou do parceiro. No modelo atual, este rastreio assume características de rastreio dirigido uma vez que nem toda a população é elegível. As dificuldades na implementação do rastreio na prática clínica podem-se traduzir num menor número de pessoas rastreadas. Esta atitude regionalista não tem em conta os fluxos migratórios internos no nosso país, cujos casos de hemoglobinopatias recentemente identificados no norte do País fazem prova.

Pelo que foi apresentado, os autores defendem um modelo de rastreio universal, mais inclusivo, evitando, assim, diagnósticos tardios. Este modelo seria também uma fonte de informação epidemiológica relevante a nível nacional.

O rastreio pré-natal (pré-concecional e durante a gravidez), preconizado na norma, tem como principal objetivo a evicção de novos casos de hemoglobinopatias graves. As intervenções preconizadas incluem o aconselhamento genético pré-concecional e/ou durante a gravidez e/ou a eventual interrupção médica da gravidez.

A inclusão das hemoglobinopatias no leque de patologias rastreadas pelo Programa Nacional de Diagnóstico Precoce (PNDP) está atualmente a ser revista pelos peritos. O rastreio neonatal seria uma resposta possível em relação às gravidezes inadequadamente vigiadas e possibilitaria evitar as complicações de um diagnóstico tardio, por vezes fatal. O atual modelo de diagnóstico precoce, cuja implementação se registou há dez anos em Portugal, é uma questão em debate. As hemoglobinopatias, mais concretamente a doença de células falciformes, seriam um grupo de patologias candidatas na medida em que têm uma história natural conhecida e existem intervenções que alteram o curso da doença. No entanto, um conhecimento epidemiológico atualizado é essencial para uma tomada de decisão fundamentada.

A nível europeu, as políticas referentes ao rastreio de hemoglobinopatias são muito heterógeneas e não parecem estar diretamente associadas com a prevalência destas condições (Quadro IV). Uma análise de tipo custo-efetividade é incontornável.

 

 

Em termos de prática clínica, tendo em conta o modelo atual de atuação nas hemoglobinopatias, o médico de família tem um papel fundamental. O seu papel é transversal às várias fases, incluindo o rastreio pré-natal, o diagnóstico e referenciação precoce e também nos cuidados específicos, ainda que em articulação com os cuidados de saúde secundários.

O foco de atenção para o rastreio será em contexto de planeamento familiar ou de saúde materna. A identificação de casos segue uma marcha diagnóstica bem estabelecida (Figura 1). Neste contexto, além do conhecimento das origens familiares é necessária a valorização de alguns parâmetros hematológicos. É necessária a identificação de alterações do eritrograma, independentemente da existência de anemia, nomeadamente a microcitose, a hipocromia e, ainda, a hemoglobina elevada.

Em contexto de saúde infantil, a atitude do MF pode ser determinante, uma vez que estas crianças apenas apresentam sintomatologia a partir do terceiro mês de vida. A identificação ou suspeição precoce é determinante, uma vez que possibilita a implementação de várias medidas preventivas e educacionais (Quadros II e III) que alteram drasticamente o prognóstico dos doentes com anemia das células falciformes (ACF).

Pelo que se apresenta depreende-se que é premente a necessidade de estudos epidemiológicos rigorosos, de cariz regional e nacional, que permitam a tomada de decisões baseadas em evidência científica. A formação e a sensibilização dos médicos de família para esta temática é determinante na melhoria do prognóstico e na qualidade de vida destes doentes e suas famílias.

 

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Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Sara Neves Costa

Rua Dr. Higino de Sousa

2710-486 Sintra

E-mail: saraancosta@gmail.com

 

Conflito de interesses

Os autores declaram não ter conflitos de interesses.

 

Recebido em 30-07-2015

Aceite para publicação em 09-10-2016

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