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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.32 no.5 Lisboa out. 2016

 

ARTIGOS BREVES

Miosite benigna aguda da infância: relato de caso

Benign acute childhood myositis: a case report

Fabrizio Cossutta*

*Médico Interno de Medicina Geral e Familiar, UCSP de Benfica, ACES Lisboa Norte

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

A miosite benigna aguda da infância é uma patologia incapacitante, rara, autolimitada e pouco conhecida pelos profissionais de saúde. Este artigo relata um caso de miosite numa criança de seis anos de idade, com dor na região gemelar e incapacidade para a marcha no contexto de infeção respiratória alta, sem história de traumatismos ou episódios semelhantes no passado. O prognóstico favorável desta manifestação clínica permite o acompanhamento com segurança da maioria dos casos em cuidados de saúde primários, bastando para isso um reconhecimento da patologia por parte dos profissionais.

Palavras-chave: Miosite; Crianças.


 

ABSTRACT

Benign acute childhood myositis (BACM) is an uncommon, disabling, self-limited disease that is relatively unknown by healthcare providers. This article reports a case of BACM in a 6 year-old child who suffered from calf pain and was unable to bear weight after an upper respiratory tract infection. There was no history of trauma and there were no similar episodes in the past. Because of its excellent prognosis, increased awareness by primary care health care providers is needed, to permit safe follow up in most cases.

Keywords: Myositis; Children.


 

Introdução

A miosite benigna aguda da infância é uma miopatia autolimitada caracterizada pelo aparecimento súbito de dor muscular, mais frequentemente na região gemelar, e dificuldade na marcha.1-5

Por ser uma patologia pouco conhecida pelos profissionais de saúde,5 muitas vezes os sintomas são interpretados como manifestação de uma patologia mais grave, com recurso a exames invasivos e hospitalizações desnecessárias.3,6-7

Este caso serve para alertar os profissionais de saúde, em especial pediatras e médicos de família, para a existência desta patologia, relembrando o bom prognóstico e a ausência de necessidade de realização de testes mais invasivos.

Descrição do caso

Criança do sexo masculino de seis anos de idade, previamente saudável, com programa nacional de vacinação cumprido até à data. Foi trazida numa segunda-feira de janeiro à consulta de doença aguda do centro de saúde por apresentar febre (temperatura axilar máxima de 38,5oC) com três dias de evolução (D3), associada a rinorreia anterior, mal-estar e diminuição do apetite. Ao exame objetivo não se destacaram outras alterações pelo que, tendo em conta o contexto epidemiológico, foi diagnosticada uma síndroma gripal. Teve alta da consulta, medicada com paracetamol em SOS para alívio dos sintomas, na dosagem adequada ao peso.

Nos dias seguintes houve melhoria progressiva do quadro, sendo sábado (D8) o último dia com febre, pelo que suspendeu a medicação prescrita.

Na segunda-feira seguinte (D10), ao acordar, a criança descreve uma dor muito intensa, limitada à região gemelar bilateralmente, associada a dificuldade severa na marcha, conseguindo deambular só com apoio parcial dos calcanhares no chão.

Face a esta situação, é levada ao serviço de urgência do hospital da área de residência, com realização do exame neurológico sumário e avaliação oftalmológica (sem alterações). Analiticamente destacaram-se uma leucopenia (3.140/mm3) e trombocitopenia (132.000/mm3) ligeiras, com creatinina fosfoquinase (CPK) na ordem dos 805 U/L (valores normais entre 32 e 294 U/L). Teve alta para casa com o diagnóstico de miosite, com indicação para repouso, terapêutica analgésica e aumento da ingestão hídrica. Foi reavaliada dois dias depois (D12) em consulta no centro de saúde, encontrando-se assintomática e podendo retomar as atividades letivas no dia seguinte, sem necessidade de reavaliação em consulta hospitalar.

Comentário

A miosite benigna aguda da infância constitui uma entidade clínica rara, ocorrendo mais frequentemente entre o final do inverno e o princípio da primavera, suportando a hipótese de uma etiologia viral.4 Os sintomas surgem de forma abrupta, tipicamente após resolução de uma infeção pelo vírus Influenza B, mais raramente Influenza A.2-3 Na literatura registam-se ainda raros relatos de casos relacionados com Parainfluenza, Adenovirus, Herpes simplex, Epstein-Barr, Coxsackie, Rotavirus e Mycoplasma pneumoniae.3 O processo fisiopatológico ainda não está devidamente esclarecido, sendo a invasão direta do tecido muscular por parte de partículas virais a hipótese mais provável.2

Esta patologia foi relatada pela primeira vez em 1957 por Lundberg,1 que descreveu uma série de 74 casos de “mialgia cruris epidémica”. A revisão da literatura publicada em 2004 por Agyeman e colaboradores2 revela maior incidência no sexo masculino (razão ♂:♀ =2:1), idade mediana de 8,5 anos e resolução dos sintomas em três a cinco dias. Uma série de casos portugueses, publicada em 2014 por Santos e colaboradores,3 mostra uma maior diferença de incidência entre os sexos (razão ♂:♀=4,6:1), com idade mediana de sete anos.

As revisões publicadas permitem delinear uma apresentação típica da miosite benigna da infância, caracterizada por aparecimento de dor súbita e severa na região gemelar, com tendência a manifestar-se após um período de repouso, na maioria das vezes ao despertar.8 As queixas álgicas podem provocar alterações na marcha (marcha antálgica) ou até recusa. Pode também ocorrer dor à palpação da região gemelar e, menos frequentemente, edema local.2

Em metade dos casos descritos, a dificuldade na marcha surgiu depois de cinco dias do início da infeção, sempre na fase de resolução dos sintomas infecciosos. As dores musculares limitam-se à região gemelar bilateralmente em cerca de 70% dos casos; em 20% atingem também músculos mais proximais.

Apesar dos sintomas iniciais serem inespecíficos (febre, rinorreia e tosse), a maioria dos autores concorda que através da história clínica, da realização do exame objetivo com avaliação neurológica e da análise da urina por “tira-teste” seja possível excluir os principais diagnósticos diferenciais (Quadro I). Caso sejam pedidas análises, é esperado encontrar um aumento da CPK, associada menos frequentemente ao aumento da aspartato aminotransferase (AST) com ligeira leucopenia e trombocitopenia.3,8

 


(clique para ampliar ! click to enlarge)

 

Assim sendo, o acompanhamento poderá ser feito em ambulatório, sem necessidade de cuidados hospitalares ou internamento, sobretudo nos casos em que haja oportunidade para reavaliação pelo médico assistente. Nestes casos, a completa regressão dos sintomas é esperada dentro de uma semana (mediana de três dias, máximo descrito de 30 dias).2-3

Nos casos em que, apesar da terapêutica de suporte e do aumento da ingestão hídrica, haja persistência ou agravamento da sintomatologia é prudente avaliar a função renal e a presença de mioglobinúria para despiste da presença de rabdomiólise, dada a necessidade de monitorização intra-hospitalar desta complicação.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Lundberg A. Myalgia cruris epidemica. Acta Paediatr. 1957;46(1):18-31.         [ Links ]

2. Agyeman P, Duppenthaler A, Heininger U, Aebi C. Influenza-associated myositis in children. Infection. 2004;32(4):199-203.         [ Links ]

3. Santos JA, Albuquerque C, Lito D, Cunha F. Benign acute childhood myositis: an alarming condition with an excellent prognosis! Am J Emerg Med. 2014;32(11):1418-9.         [ Links ]

4. Jain S, Kolber MR. A stiff-legged gait: benign acute childhood myositis. Can Med Assoc J. 2009;181(10):711-3.         [ Links ]

5. Mall S, Buchholz U, Tibussek D, Jurke A, An der Heiden M, Diedrich S, et al. A large outbreak of influenza B-associated benign acute childhood myositis in Germany, 2007/2008. Pediatr Infect Dis J. 2011;30(8):e142-6.         [ Links ]

6. Neocleous C, Spanou C, Mpampalis E, Xatzigeorgiou S, Pavlidou C, Poulos E, et al. Unnecessary diagnostic investigations in benign acute childhood myositis: a case series report. Scott Med J. 2012;57(3):182.         [ Links ]

7. Terlizzi V, Improta F, Raia V. Simple diagnosis of benign acute childhood myositis: lessons from a case report. J Pediatr Neurosci. 2014;9(3):280-2.         [ Links ]

8. Rennie LM, Hallam NF, Beattie TF. Benign acute childhood myositis in an accident and emergency setting. Emerg Med J. 2005;22(10):686-8.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Fabrizio Cossutta

E-mail: fcossutta@ymail.com

 

Conflito de interesses

O autor declara não ter conflitos de interesses.

 

Recebido em 13-04-2016

Aceite para publicação em 17-08-2016

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