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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.32 no.5 Lisboa out. 2016

 

ARTIGOS BREVES

O descortinar de uma epigastralgia

Unraveling epigastric pain: A case report

Ana Correia de Oliveira,1 Rosário Mendonça e Moura,1 Paulo Pessanha2

1Médica interna de Medicina Geral e Familiar, USF São João do Porto

2Médico Assistente Graduado de Medicina Geral e Familiar, USF São João do Porto

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

Introdução: A dor epigástrica está frequentemente associada à patologia digestiva. Contudo, é essencial a realização de uma anamnese e exame objetivo cuidadosos, pois a queixa referida também pode estar associada a outras patologias.

Descrição do Caso: Homem de 41 anos, com os seguintes problemas de saúde ativos: tabagismo, dislipidemia, hipertensão arterial e excesso de peso. Antecedentes familiares relevantes de doença coronária com morte precoce (pai faleceu aos 46 anos por enfarte agudo do miocárdio).

Em julho de 2014 recorre a clínica privada por dor epigástrica súbita. Foram realizadas analgesia e proteção gástrica e o doente apresentou melhoria clínica. De acordo com o mesmo, a anamnese e o exame objetivo foram breves. Após um mês teve novo episódio idêntico, não tendo recorrido a avaliação médica. Em setembro de 2014 recorre à Unidade de Saúde Familiar (USF) para solicitar exames digestivos (endoscopia digestiva alta e colonoscopia). Na consulta refere que, durante os episódios de dor epigástrica, experienciou uma sensação de dormência do membro superior esquerdo. Foram requisitados exames complementares, nomeadamente estudo analítico, ecografia abdominal, eletrocardiograma (ECG) e prova de esforço. Após realização de exames complementares foi encaminhado para consulta de cardiologia de urgência e realizada cirurgia de revascularização coronária por doença de três vasos.

Comentário: A incidência de patologia cardíaca está a aumentar, sendo os fatores de risco cardiovascular cumulativos para o aparecimento de doença cardiovascular. Este doente apresentava inúmeros fatores de risco que não poderiam ser negligenciados, devendo ter sido considerada a hipótese de uma dor isquémica atípica desde o início. Concluindo, o médico deve conhecer os motivos mais prevalentes associados aos sintomas referidos pelo doente. Contudo, não deve excluir apresentações atípicas ou diagnósticos diferenciais menos frequentes face às queixas apresentadas.

Palavras-chave: Dor abdominal; Enfarte agudo do miocárdio; Relato de caso.


 

ABSTRACT

Introduction: Epigastric pain is frequently associated with gastrointestinal disease. However, when faced with a patient complaining of epigastric pain it is important to obtain a careful history and perform a physical examination because this may also be associated with other diseases.

Case Description: We present the story of a 41 year-old man with a history of smoking, dyslipidemia, hypertension and obesity. His father died at age 46 from an acute myocardial infarction. In July 2014 he came to a private clinic complaining of epigastric pain. Following a brief history and physical examination, he received analgesia and gastric mucosal protection with improvement in his symptoms. One month later, he experienced a similar episode of pain, without recourse to medical assistance. In September 2014, came to his family doctor and requested further examinations, including gastroscopy and colonoscopy. The patient also reported that during episodes of epigastric pain he had also experienced a sense of left upper limb numbness. The doctor ordered additional tests, including biochemical analyses, an abdominal ultrasound, an electrocardiogram (ECG), and a stress test. The patient was then referred for an urgent consultation with a cardiologist and coronary artery bypass surgery was performed for triple vessel disease.

Discussion: The incidence of heart disease is increasing along with the prevalence of risk factors for cardiovascular disease. This patient had several risk factors that might suggest atypical ischemic pain as the cause of his epigastric pain. Physicians are aware of the most common causes of symptoms reported by the patient but must also consider atypical presentations of less common diagnoses.

Keywords: Abdominal pain; Myocardial infarction; Case report.


 

Introdução

A doença cardiovascular (DCV), nomeadamente a doença coronária (DC) e o acidente vascular cerebral (AVC), são a principal causa de morte prematura a nível mundial.1 Apesar da mortalidade por doença cardiovascular estar a diminuir na maioria dos países desenvolvidos, sabe-se que a sua prevalência está a aumentar mundialmente.2

O termo enfarte agudo do miocárdio (EAM) é utilizado quando há evidência de necrose miocárdica num contexto clínico consistente com isquemia aguda do miocárdio. Quando tal não acontece, ou seja, quando há evidência de necrose mas não há contexto clínico, designa-se apenas de enfarte do miocárdio.3

Tipicamente, o EAM apresenta-se como angina. No entanto, em alguns doentes não há dor pré-cordial mas somente dor ao nível do braço, pescoço, mandíbula ou desconforto epigástrico.4

Este caso ilustra o papel do médico de família na abordagem de sintomas inespecíficos, que poderão estar presentes em mais do que uma patologia, nomeadamente cardíaca e digestiva. O médico de família é um elemento chave na prevenção e diagnóstico das DCV.

Descrição do caso

A.C. é um utente do sexo masculino, caucasiano, de 41 anos de idade, casado e com um filho. Trata-se de uma família nuclear na fase IV do ciclo de vida de Duvall. É empregado numa garagem de automóveis. Tem como problemas de saúde tabagismo (20 cigarros/dia, 20 unidades de maço/ano), dislipidemia (colesterol total 213mg/dL, colesterol HDL 39mg/dL, colesterol LDL 146,2mg/dL), hipertensão arterial (HTA) medicada e controlada (pressão arterial 138/81mmHg) e excesso de peso (IMC 27,8kg/m2). Consumo de álcool de 120g/semana. O doente nega consumo de substâncias de abuso. A medicação habitual de A.C. era sinvastatina 20mg id e ramipril 5mg id.

A história da doença atual inicia-se em julho de 2014, altura em que A.C. recorre ao médico numa clínica privada por dor epigástrica, súbita, de intensidade 3 em 10, sem fatores desencadeantes, de alívio ou agravamento e sem irradiação da mesma. Segundo o doente, foi uma consulta rápida com exame objetivo escasso. Nesta altura foi medicado com protetor gástrico e indicação para analgesia.

Em agosto de 2014 refere repetição dos sintomas, não tendo procurado assistência médica. Em setembro de 2014 recorre então ao seu médico de família para solicitar a realização de endoscopia digestiva alta (EDA) e colonoscopia. Após colheita da anamnese, com descrição de dormência do membro superior esquerdo durante os episódios de dor epigástrica, é colocada a hipótese de patologia cardíaca versus patologia digestiva. Na anamnese é também verificado que o doente possui história familiar de doença coronária com morte precoce (pai falecido aos 46 anos por enfarte agudo do miocárdio). Neste momento é explicado ao doente que deve realizar análises, ecografia abdominal e eletrocardiograma (ECG) com prova de esforço e, consoante os resultados, a necessidade de realizar a EDA e colonoscopia. Os exames demonstraram dislipidemia (triglicerídeos 198mg/dL, colesterol total 194mg/dL, colesterol HDL 40mg/dL, colesterol LDL 114,4mg/dL), aumento da gama-glutamil transferase (GGT) 46 UI/L e hepatomegalia com infiltração esteatósica. O ECG (Figura 1) mostrou sequelas de necrose inferior. A prova de esforço traduziu prova máxima, sem alterações eletrocardiográficas sugestivas de isquemia do miocárdio, ou seja, foi uma prova negativa perante sintomas.

 

 

Após a análise dos exames suspeitou-se que o doente teve dor epigástrica causada por EAM (enfarte agudo do miocárdio) da parede inferior. Foi solicitada a realização de ecocardiograma transtorácico e procedeu-se a alteração da medicação habitual. A sinvastatina foi alterada para rosuvastatina 20mg id, manteve-se ramipril 5mg id e introduziu-se ácido acetilsalicílico 100mg id, bisoprolol 5mg id e pantoprazol 40mg id. Foi ainda efetuada educação para a saúde com controlo dos fatores de risco, nomeadamente evicção tabágica (atualmente 5 cigarros/dia), evicção alcoólica e exercício físico leve a moderado. O ecocardiograma, realizado em setembro de 2014, mostrou “ventrículo esquerdo ligeiramente dilatado com alterações da motilidade segmentar: acinésia dos segmentos basais da parede inferior e septo-inferior e apical do septo; hipocinésia de todos os restantes segmentos e paredes. Função ventricular sistólica esquerda moderadamente deprimida”.

De acordo com estes antecedentes familiares e resultados de exames é proposto ao doente ser enviado a consulta urgente de cardiologia, que o doente aceita. A coronariografia revelou doença grave de três vasos, com estenose de 70% do segmento proximal da artéria descendente anterior, artéria circunflexa com oclusão crónica proximal e artéria coronária direita com estenoses suboclusivas, tendo sido encaminhado para a consulta de cirurgia cardiotorácica. Tendo a cintigrafia de perfusão miocárdica revelado viabilidade e isquemia da parede anterior e septo e o doente apresentar angor de esforço típico classe III pouco frequente, nunca em repouso, foi proposto para realização de cirurgia de revascularização coronária (CABG) da descendente anterior (DA) e descendente posterior (DP). Enquanto aguardava cirurgia teve agravamento de angor e parestesia dos dedos das mãos, sobretudo à direita; por este motivo foi colocado em lista de espera com urgência. Em julho de 2015 foi chamado para CABG de três vasos, sem intercorrências.

O doente teve alta, assintomático, com consulta agendada, mantendo-se em cessação tabágica e iniciou dupla antiagregação, associando-se clopidogrel 75mg.

Comentário

No caso descrito, A.C. apresentou um quadro clínico de dor epigástrica, tendo o médico, numa primeira abordagem, considerado como hipótese diagnóstica patologia digestiva. Perante um doente com vários fatores de risco cardiovasculares, nomeadamente tabagismo, excesso de peso, HTA, dislipidemia, não deveria ter sido descartada a hipótese de patologia cardíaca. É necessário ter em consideração que a anamnese e exame físico adequados são imprescindíveis. Tendo em conta que, atualmente, os médicos são constantemente pressionados a realizar consultas em tempo escasso, pode levar, por vezes, a anamneses inadequadas com diagnósticos erróneos. Neste caso, o doente referiu que, devido à rapidez da primeira consulta, não teve tempo de informar o médico sobre a sensação de dormência no membro superior esquerdo e tal também não foi questionado. Um EAM pode apresentar-se como dor pré-cordial, no membro superior, mandíbula, desconforto epigástrico, equivalente isquémico (dispneia, cansaço) ou ser assintomático (mais frequente no sexo feminino, idosos ou diabéticos).5 A primeira consulta realizou-se no sistema privado pois, de acordo com o doente, estava de férias e tinha uma clínica médica numa área próxima. No entanto, considera que o atendimento foi rápido e impreciso, com uma anamnese descurada e exame físico quase inexistente. Apesar de não serem conclusivos, estes dois passos da consulta são imprescindíveis para um diagnóstico assertivo. De acordo com o doente, o motivo que o fez recorrer ao médico de família, numa segunda consulta, deveu-se à confiança depositada há muitos anos e, apesar de não recorrer muitas vezes ao seu médico de família, sentiu a necessidade de acompanhamento sustentado de um médico que o “olhasse como eu sou” (sic). Assim, a observação pelo médico de família é muito importante, pois só este profissional tem as características necessárias para a observação e orientação cuidadas, cruzando essa informação com a observação longitudinal prévia. Permite, por exemplo, conhecer bem os doentes e descartar mais facilmente alguma sintomatologia psicológica camuflada pela sintomatologia orgânica sentida.

Calculando o risco cardiovascular pela tabela SCORE, previamente ao episódio de EAM, podemos concluir que o score do doente era de 1%. Porque Portugal se encontra numa região da Europa de baixo risco,1 estamos perante um indivíduo do sexo masculino, 41 anos de idade, fumador, com valor de colesterol total de 213mg/dl e tensão arterial sistólica de 138mmHg (Figura 2). No entanto, é necessário considerar que o risco poderá ser mais elevado do que o indicado na tabela; no caso deste doente, ele tinha nível de triglicerídeos elevado, colesterol HDL baixo e familiar portador de DVC prematura (Quadro I).1 É fundamental ter em consideração que não podemos olhar apenas para as tabelas de risco a 10 anos de DCV fatal; sabe-se que existem outros fatores, como neste caso, que influenciam significativamente o risco e que têm de ser considerados numa boa anamnese. Após a ocorrência do EAM, este doente passa a ser um doente de risco muito alto.

 

 

 

Concluindo, é necessário efetuar uma anamnese assertiva e direcionada para a patologia principal que abranja a sintomatologia referida pelo doente. Contudo, o médico deve ponderar outros diagnósticos diferenciais, sobretudo em doentes de risco. No caso de risco cardiovascular, o médico deve estar ciente dos sintomas atípicos e estar alerta para a possibilidade de ocorrência de eventos tromboembólicos, mesmo que os sintomas sejam insipientes. A medicina deve ser sempre baseada no doente e nas suas necessidades. A consulta deve demorar o tempo necessário para um diagnóstico correto, de modo a levar a um tratamento eficaz para o melhor benefício do doente.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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8. Direção-Geral da Saúde. Avaliação do risco cardiovascular SCORE (Systematic Coronary Risk Evaluation): norma nº 5/3013, de 19/03/2013; atualização de 21/01/2015. Lisboa: DGS; 2015.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Ana Margarida Ribeiro Correia de Oliveira

Rua D. António Barroso nº 231 1ºDir 4050-060 Porto

E-mail: correiadra@gmail.com

 

Conflito de interesses

Os autores declaram não ter conflitos de interesses.

 

Recebido em 20-03-2016

Aceite para publicação em 22-09-2016

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