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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.32 no.5 Lisboa out. 2016

 

EDITORIAL

Desafios e oportunidades do sistema informático

Maria José Ribas*

*Médica de família. USF Garcia de Orta, Porto.

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

Muito se tem dito sobre o papel dos computadores na nossa prática clínica. As opiniões são geralmente inflamadas, baseiam-se na nossa experiência e denotam o desgaste dos profissionais com as exigências que estes meios trazem a uma especialidade muito complexa. Este editorial é uma reflexão pessoal sobre os desafios e oportunidades que nos colocam.

Aviso: gosto de usar computadores, gadgets, aplicações e afins, acredito que não têm nada contra mim, não deixo que me irritem, não acredito que tenham sentimentos e, por isso, não acordam de manhã para me infernizar a vida. Não deixo que interfiram com o bem-estar dos meus doentes, defendo o seu uso como ferramentas ao meu serviço e dos utentes e não o contrário. Acredito que tenho o direito de ser feliz no trabalho, que posso fazer alguma coisa para melhorar os problemas e, por último, que há coisas mais importantes na vida.

Há 15 anos atrás, a nossa vida era um inferno de papel. Era virtualmente impossível saber com rigor que patologias prevaleciam na comunidade, que medicamentos prescrevíamos, que diagnósticos fazíamos e apenas os obsessivos entre nós tinham uma pálida ideia das características da sua lista.

Atualmente, entre aplicações de uso diário e outras de uso menos frequente, contamos dezasseis, todas elas ligadas à prática clínica. Poucas estão integradas; a maioria não comunica entre si e exige abertura de novas janelas, introdução de novos logins e palavras-chave ou repetição de dados já registados noutro lado.

Devemos exigir que todas estas aplicações sejam integradas, evitando a sua multiplicação, e que tenham um mesmo aspeto ou interface para que a sua utilização seja intuitiva.

Hoje em dia baseamos decisões nacionais ou locais muito importantes nos nossos registos. Os registos são um dever e são um direito. O direito que temos de mostrar que fazemos bem, de medir o nosso desempenho, de prestar contas aos nossos utentes. Nós, os responsáveis por esses registos, sabemos quão difícil é manter uma lista de problemas atualizada, colocar as datas do diagnóstico certas, retirar problemas que já passaram. E o que registamos é útil para o médico e para o doente na consulta seguinte? Quando usamos exclusivamente códigos da classificação internacional sabemos o que se passou naquela consulta? O que fazemos terá de facto impacto na saúde da população?

Devemos poder ter, de forma automática, fácil e em tempo real, os dados do nosso trabalho para tomar decisões sobre as necessidades da nossa população.

Deve tornar-se possível classificar problemas de forma automática, rever a permanência de determinados problemas na lista ou a data real do diagnóstico, dando lugar a informação fidedigna sobre a população.

A entrada do computador e dos registos informáticos na consulta veio também mudar a nossa forma de comunicar. Temos mais dificuldade em olhar os doentes nos olhos e percecionar os sinais não verbalizados. A nossa atenção deixou de estar totalmente centrada na pessoa, no diagnóstico e na decisão para se dividir por múltiplas tarefas não clínicas que nada têm a ver com medicina. Existe mais uma barreira física entre nós e chegamos a ocupar mais de 40% da nossa consulta em interação com o computador.1-2

Cada profissional chega a ter, no mínimo, dez nomes de utilizador diferentes, quatro palavras-passe. Com boa vontade, são-nos criados nomes imaginativos, mas sempre diferentes e nem todas as aplicações nos deixam mudar a palavra-passe.

Para começar a primeira consulta do dia conto sete cliques, para usar as diferentes aplicações chego a 17, são incontáveis os cliques por consulta, chegando uma consulta de saúde infantil a exigir 39 cliques. O tempo acumulado em esperas por rodinhas, ampulhetas e afins, quando acumulado, chega a minutos e, ao fim de um ano, acredito poder chegar a horas.

Devemos aumentar a capacidade dos servidores, atualizar as máquinas e garantir uma largura de banda que possibilite o trabalho de um modo otimizado e em tempo útil. Exige dinheiro, sim, mas compensa em eficiência e satisfação. Quem aceitaria ser operado com um bisturi ferrugento?

Devemos libertar o tempo dos profissionais de registos duplicados e triplicados, de transcrição de exames e documentos, de abertura de múltiplas janelas e aplicações, dos inúmeros cliques.

Os alertas, quando existem, são contraditórios, por vezes extensos, atrasados no tempo e pouco úteis para a segurança do doente. São frequentes as mensagens em pop-up, relacionadas com o processo informático em si e não com a clínica. Estas mensagens interrompem a comunicação e o ritmo da consulta e não têm relevância no diagnóstico, decisão ou tratamento do doente.

Devem ser introduzidos alertas de apoio à decisão e à prescrição, de risco de interações medicamentosas ou alergias, de internamento do doente, de existência de nova informação clínica disponível.

O sistema informático é o maior aliado da nossa memória. Permite um acesso mais rápido à informação do doente, que deve estar integrada e facilmente visível sem necessidade de abertura de novas aplicações, potenciar a comunicação entre prestadores de cuidados de saúde e facilitar a produção de informação relevante.

Devemos poder usar as especificidades da nossa especialidade que se perderam, como o genograma e alguns instrumentos de avaliação familiar, poder integrar fotografias, documentos e resultados analíticos de outras entidades no processo sem que os tenhamos de transcrever e lembretes para nós mesmos que nos ajudem a não cometer erros.

O computador deve ser uma ferramenta de diagnóstico, de apoio à decisão, de prevenção do erro e de capacitação do doente. O uso de imagem, vídeos, folhetos informativos, correio eletrónico, gráficos, calculadoras, eleva a nossa capacidade de informar o doente e tomar decisões em conjunto.

Devemos poder emitir pareceres, escrever cartas a colegas e informações clínicas sem ter de reescrever o que já está escrito ou, no limite, escrever em papel o que já foi registado em computador, em suma, desmaterializar tudo o possível para aumentar a eficiência e reduzir o erro.

Quando questionados sobre o seu trabalho, os profissionais usam termos como «desgaste», «tristeza», «corrida de obstáculos» e têm necessitado de muita resiliência e entrega.

Cerca de 75% das unidades de saúde familiar está insatisfeita ou muito insatisfeita com a largura de banda e com a interoperabilidade das aplicações informáticas e 55% está insatisfeita ou muito insatisfeita com os seus computadores.3

Podemos trabalhar horas sentados em posições incorretas. São vários os problemas de saúde ligados ao uso do computador, como as lesões por esforços repetidos,4-5 alterações de visão, imobilidade, agravamento de doenças já existentes, ansiedade, irritabilidade e burnout.

Temos de prevenir já. Somos responsáveis, em primeiro lugar, pelo nosso bem-estar, sem o qual não podemos tomar decisões sérias sobre a vida de outras pessoas.

Os responsáveis hierárquicos devem investir tempo, energia e recursos no acompanhamento da saúde dos trabalhadores, na criação de condições físicas de trabalho, no apoio psicológico aos mais fragilizados.

Em conclusão, os sistemas informáticos e de informação devem ser concebidos e construídos para estar ao serviço dos doentes e dos profissionais, e não o inverso.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Sobral D, Rosenbaum M, Figueiredo-Braga M. Computer use in primary care and patient-physician communication. Patient Educ Couns. 2015 Jul 8. (Epub ahead of print). doi: 10.1016/j.pec.2015.07.002        [ Links ]

2. Yaphe J. Computers and doctor-patient communication. Rev Port Med Geral Fam. 2013;29(3):148-9.         [ Links ]

3. Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar. O momento actual da reforma dos cuidados de saúde primários em Portugal, 2014/2015: questionários aos coordenadores de USF (Internet). Lisboa: USF-AN; 2015. Available from: http://www.usf-an.pt/index.php/em-noticia/299-estudo-momento-atual-2015        [ Links ]

4. Edling C, Lindblom J, Skogholm M, Feychting M, Nordander C, Styf J, et al. Occupational exposures and neck and upper extremity disorders: a systematic review. Stockholm: Swedish Council on Health Technology Assessment; 2012.         [ Links ] ISBN 9789185413485

5. Wahlström J. Ergonomics, musculoskeletal disorders and computer work. Occup Med. 2005;55(3):168-76.         [ Links ]

 

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