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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.32 no.4 Lisboa ago. 2016

 

CLUBE DE LEITURA

Infeções urinárias não complicadas na mulher: esperar ou tratar?

Uncomplicated urinary tract infection in women: wait and see or treat?

Ana Raquel Marques *, Ana Falcão e Cunha **

*Médica Interna de Medicina Geral e Familiar. UCSP São Mamede

**Médica Interna de Medicina Geral e Familiar. USF Calâmbriga


 

Gágyor I, Bleidorn J, Kochen MM, Schmiemann G, Wegscheider K, Hummers-Pradier E. Ibuprofen versus fosfomycin for uncomplicated urinary tract infection in women: randomised controlled trial. BMJ. 2015;351:h6544.

Introdução

As infeções do trato urinário (ITU) não complicadas nas mulheres são comuns nos cuidados de saúde primários (CSP) e são responsáveis por 25% da prescrição antibiótica. São situações clínicas frequentemente autolimitadas e a prescrição de antibioterapia aumenta os níveis de resistência. Desta forma, devem ser feitos esforços para reduzir a taxa de prescrição. Este estudo pretende aferir se a prescrição de antibiótico pode ser reduzida no tratamento da ITU não complicada, através da prescrição em primeira abordagem de ibuprofeno como tratamento sintomático.

Métodos

Foi conduzido um ensaio comparativo, duplamente cego, randomizado e multicêntrico (42 clínicas), tendo como amostra mulheres dos 18-65 anos, com sintomas típicos de ITU (disúria e/ou frequência/urgência urinária, com ou sem dor abdominal inferior) aferidos através de preenchimento de um questionário. Os principais critérios de exclusão foram: quaisquer sinais de infeção do trato urinário superior (febre, dor lombar), situações potenciadoras de complicações (gravidez ou doenças renais), ITU nas últimas duas semanas, cateterização, mulheres medicadas com anti-inflamatórios não esteróides ou antibióticos, antecedentes de úlcera gastrointestinal ou patologias crónicas em exacerbação aguda severa.

A medicação foi distribuída em blisters, sem identificação, contendo ou ibuprofeno comprimido (3x400mg para três dias + 1x1 saqueta de placebo granulado) ou fosfomicina (1x3g saquetas + 3x3 comprimidos de placebo para três dias), fornecida por farmácia independente. Após o início do tratamento, as mulheres foram aconselhadas a recorrer ao seu médico em caso de persistência ou agravamento dos sintomas. Entretanto, todas as mulheres efetuaram um registo diário dos sintomas e impacto na qualidade de vida. Além disso, as enfermeiras colheram informação dos sintomas, assim como a toma da medicação ou outras prescrições de antibióticos.

Resultados

Foram aleatoriamente distribuídas 494 utentes por ambas as intervenções, com características basais semelhantes entre os grupos, tendo concluído o estudo 446 mulheres no total (n=222 no grupo do ibuprofeno; n=224 no grupo da fosfomicina). Existiam apenas pequenas diferenças entre os grupos, no que respeita à duração dos sintomas e ao número de ITU recorrentes, mais frequentes nas mulheres do grupo da fosfomicina (23% vs 17%).

O número de ciclos de tratamento com antibioterapia, em 28 dias, foi significativamente inferior no grupo do ibuprofeno, o que corresponde a uma diminuição da taxa de incidência de 66,5% (intervalo de confiança 95%; p<0,001). A melhoria sintomática foi evidente em ambos os grupos com diminuição do total do score de avaliação do impacto da sintomatologia urinária. No entanto, os sintomas duraram em média mais um dia no grupo com ibuprofeno, com significado estatístico (p<0,001), assim como houve um maior número de complicações neste grupo (p=0,12). As complicações relatadas foram pielonefrite, infeção urinária recorrente e, mais raramente, sintomas gastrointestinais como náusea e diarreia, estes mais frequentes no grupo medicado com fosfomicina.

A taxa de recorrência da ITU foi comparável em ambos os grupos. No entanto, houve significativamente mais casos de recorrência após os 14 dias do tratamento no grupo fosfomicina (11% vs 6% no grupo ibuprofeno, p=0,049). Em contraste, mais mulheres do grupo ibuprofeno referiram recidiva dos sintomas (após o 14.o dia), mas sem significado estatístico (5% vs 3%; p=0,18).

Não houve diferença estatisticamente significativa entre os grupos quanto a efeitos adversos não relacionados com a ITU.

Discussão

Este estudo revelou que, apesar do tratamento sintomático inicial com ibuprofeno ter reduzido em 67% a necessidade de antibioterapia em mulheres com ITU não complicada comparativamente ao tratamento imediato com fosfomicina, esta intervenção resultou em menor qualidade de vida e num número maior de pielonefrites. No entanto, 2/3 das mulheres do grupo do ibuprofeno recuperaram sem necessidade de antibiótico. Num outro ensaio clínico randomizado e controlado, que comparou placebo com antibiótico no tratamento da ITU, apenas 54% das mulheres do grupo placebo recuperaram sem necessidade de antibioterapia, comparado com 67% dos utentes com ibuprofeno neste estudo e, noutro ensaio clínico, 28% recuperaram sem necessidade de antibioterapia no espaço de uma semana. Existem poucos dados sobre a epidemiologia da pielonefrite. No entanto, numa metanálise de ensaios clínicos aleatorizados e controlados que compararam placebo com antibioterapia, a taxa de incidência de pielonefrite variou de 0,4% a 2,6% em todos os casos de ITU. Neste estudo, a taxa de pielofrite no grupo de ibuprofeno foi comparativamente alta: cerca de 2,1%. Contudo, o presente estudo não permite concluir se é um achado acidental ou se é devido à falta de tratamento com antibioterapia ou por possíveis efeitos do ibuprofeno no sistema genitourinário. No grupo da fosfomicina verificou-se um aumento da recorrência das ITU (14 a 28 dias). No entanto, este grupo apresentava também maior número de mulheres com episódios de ITU recorrentes.

Uma limitação do estudo foi a inclusão das mulheres mediante apenas a sintomatologia compatível com ITU, sem aguardar os resultados das uroculturas. Desta forma, o facto de apenas terem incluído mulheres, baseando-se na sua sintomatologia, criou uma tendência de incluir apenas mulheres com sintomas menos severos ou mesmo sem infeção. Tem de haver uma interpretação mais cautelosa dos resultados pois os mesmos podem apenas aplicar-se a doentes com sintomas ligeiros a moderados, em vez de a todas as mulheres com ITU não complicada. Uma outra limitação foi o uso de um questionário não validado.

Conclui-se que não se pode recomendar o ibuprofeno como primeira abordagem no tratamento da ITU não complicada. No entanto, esta opção terapêutica pode ser discutida com a mulher com sintomas ligeiros a moderados num processo de decisão partilhada ou como estratégia de atraso da prescrição de antibiótico.

COMENTÁRIO

As ITU não complicadas são, geralmente, autolimitadas com um curso natural favorável: 25-42% das mulheres estão assintomáticas e 31-41% têm uma cultura negativa em uma semana.1-2 Os sintomas são incómodos e podem ter um impacto negativo na qualidade de vida, constituindo causa frequente de recurso aos CSP. Cabe ao médico de família o importante papel de selecionar a melhor abordagem para cada situação.

A prescrição inadequada de antibióticos aumenta a taxa de resistência, gerando um sério problema de saúde pública.3-4 A Escherichia Coli, o principal agente causador de ITU, tem revelado resistências crescentes aos antibióticos atualmente disponíveis e o número de novas armas terapêuticas a serem desenvolvidas está a diminuir.3-4 Desta forma, o artigo aborda um problema pertinente, de grande impacto na qualidade de vida das mulheres e de interesse para a saúde pública.

Na literatura médica têm sido descritos estudos que comparam várias opções terapêuticas disponíveis para o tratamento da ITU não complicada na mulher. Os antibióticos são frequentemente prescritos para diminuir a duração e a severidade dos sintomas ou para prevenir complicações, sendo que o agente mais frequentemente implicado nestas infeções tem boa sensibilidade à nitrofurantoína durante cinco dias1 e à fosfofomicina 3000mg toma única.5 As fluoroquinolonas (ofloxacina, ciprofloxacina e levofloxacina) têm lugar nas opções terapêuticas, mas com propensão para efeitos laterais devendo, por isso, ser reservadas para situações mais graves e em que não haja outra alternativa eficaz para o tratamento.5 No que respeita à Norma de Orientação Clínica (NOC) n.o 015/2011, da Direção-Geral da Saúde (DGS),6 é defendido que a urocultura prévia ao tratamento da infeção urinária está recomendada apenas em grávidas, idade pediátrica, no homem, nas infeções complicadas ou recidivantes da mulher adulta e na pielonefrite. Além disso, é indicada a antibioterapia empírica mesmo na ausência de Combur, se existente quadro clínico característico (disúria, polaquiúria, hematúria, urina turva ou com odor forte ou dor referida à região suprapúbica), tal como as mulheres incluídas no estudo apresentavam.6 Segundo a mesma NOC, na cistite não complicada, a utilização de quinolonas deverá ser reservada aos casos com contraindicação ou intolerância reconhecida aos restantes antibióticos, sendo que a fosfomicina apresenta maior frequência de efeitos adversos, designadamente diarreia, mas melhor atividade contra agentes gram‐positivos. As propostas de antibioterapia empírica apresentadas para tratamento dos episódios de cistite aguda associam-se a taxas de erradicação microbiológica iguais ou superiores a 90%.6

Há, no entanto, estudos que mostram que as mulheres com sintomas de ITU não complicada são mais recetivas ao adiamento da prescrição de antibiótico do que o assumido por muitos clínicos.1,7 Gera-se, assim, uma oportunidade de diminuir a prescrição de antibiótico. Se essas mulheres forem convidadas a atrasar o tratamento antibiótico, o uso de antibióticos poderá ser substancialmente reduzido sem afetar negativamente a recuperação clínica.1 Em alternativa, poderá ser oferecido o tratamento sintomático (sem o risco de resistência bacteriana).1

No que diz respeito ao uso de fármacos para alívio dos sintomas, o ibuprofeno tem sido estudado como alternativa aos antibióticos. Num estudo8 de 2010, em que se compara o efeito do ibuprofeno com o da ciprofloxacina em ITU não complicadas, os resultados suportam a hipótese da não inferioridade do ibuprofeno no tratamento dos sintomas, embora seja referida a necessidade de mais estudos. Apesar destas conclusões encontradas, o presente estudo rejeita a hipótese da não inferioridade do ibuprofeno como tratamento sintomático inicial, sendo que a sua prescrição generalizada não é recomendada. Pode, sim, ser considerado como opção terapêutica em mulheres com sintomas leves a moderados na tentativa de atrasar a prescrição de antibiótico, mas no contexto de uma decisão partilhada e informada. Mais estudos são necessários na tentativa de identificar as mulheres nas quais o tratamento sintomático se mostra suficiente para a resolução do quadro.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Willems CS, van den Broek D'Obrenan J, Numans ME, Verheij TJ, van der Velden AW. Cystitis: antibiotic prescribing, consultation, attitudes and opinions. Fam Pract. 2014;31(2):149-55.         [ Links ]

2. Knottnerus BJ, Geerlings SE, van Charante EP, ter Riet G. Women with symptoms of uncomplicated urinary tract infection are often willing to delay antibiotic treatment: a prospective cohort study. BMC Fam Pract. 2013;14:71.         [ Links ]

3. Centers for Disease Control and Prevention. Antibiotic resistance threats in the United States, 2013. Atlanta: CDC; 2013. Available from: http://www.cdc.gov/drugresistance/pdf/ar-threats-2013-508.pdf         [ Links ]

4. World Health Organization. Antimicrobial resistance: global report on surveillance 2014. Geneva: WHO; 2014. ISBN 9789241564748. Available from: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/112642/1/9789241564748_eng.pdf?ua=1         [ Links ]

5. Gupta K, Hooton TM, Naber KG, Wullt B, Colgan R, Miller LG, et al. International clinical practice guidelines for the treatment of acute uncomplicated cystitis and pyelonephritis in women: a 2010 update by the Infectious Diseases Society of America and the European Society for Microbiology and Infectious Diseases. Clin Infect Dis. 2011;52(5):e103-20.         [ Links ]

6. Direção-Geral da Saúde. Terapêutica de infeções do aparelho urinário (comunidade): norma da Direção-Geral da Saúde nº 015/2011, de 30/08/2011. Lisboa: DGS; 2011.         [ Links ]

7. Leydon GM, Turner S, Smith H, Little P. Women's views about management and cause of urinary tract infection: qualitative interview study. BMJ. 2010;340:c279.         [ Links ]

8. Bleidorn J, Gágyor I, Kochen MM, Wegscheider K, Hummers-Pradier E. Symptomatic treatment (ibuprofen) or antibiotics (ciprofloxacin) for uncomplicated urinary tract infection? Results of a randomized controlled pilot trial. BMC Med. 2010;8:30.         [ Links ]

 

Conflitos de interesse

As autoras declaram não ter conflito de interesses.

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