SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.32 número4A quarter century of teacher training in family medicine in Europe: homage to the Bled courseAvaliação do desenvolvimento psicomotor pelos médicos de família: estudo observacional índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.32 no.4 Lisboa ago. 2016

 

EDITORIAL

Morte medicamente ajudada: o debate

Armando Brito de Sá*

*Médico de família. USF Conde Saúde, ACeS da Arrábida

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

Para morrer, fá-lo-ia

em total silêncio,

severo

e lúcido.

Eduardo White, 23. In “O País de Mim”, 1989

A morte medicamente ajudada causa perplexidade e levanta dúvidas vindas de todas as áreas e convicções. Comece-se por definir o conceito. Nesta reflexão opta-se pelo uso da designação “morte medicamente ajudada” (MMA) que, segundo a British Medical Association, é “um termo abrangente que descreve o envolvimento médico em medidas concebidas intencionalmente para pôr fim à vida de uma pessoa. Pode incluir que se transmitam a essa pessoa, consciente e intencionalmente, conhecimentos e/ou meios necessários para que termine a sua vida, incluindo o aconselhamento sobre doses letais de fármacos e a prescrição dessas doses ou o fornecimento das mesmas. A administração do fármaco pode ser feita pela própria pessoa (suicídio medicamente ajudado) ou pelo médico ou outro profissional (eutanásia)”.1

Auxiliar outro ser humano a pôr termo à vida, directa ou indirectamente, pode ser perturbador. Estamos por defeito predispostos a auxiliar o nosso semelhante a viver, razão pela qual algumas decisões associadas ao fim da vida e que são hoje aceites no âmbito dos cuidados paliativos e terminais, como a interrupção da alimentação ou as directivas de não ressuscitação, encontram comummente resistência quase reflexa por parte de alguns.

É verdade que se evoluiu socialmente, e muito, desde o tempo das intervenções antes consideradas heróicas e hoje aceites como fúteis para preservação da vida a qualquer preço. Seria provavelmente uma questão de tempo até sermos confrontados com a possibilidade do passo seguinte, a morte medicamente ajudada.

Este debate tem complexidades próprias; por exemplo, não é claro que certas intervenções médicas constituam formas de MMA, verificando-se sobreposição possível com os cuidados paliativos.2-4

No extenso relatório publicado pela British Medical Association sobre o tema, em 2016,1,5-6 verifica-se que existe desconhecimento marcado tanto por parte de médicos como da população sobre o processo de MMA. Neste trabalho verifica-se ainda não haver coincidência entre as percepções e interrogações da população e dos médicos ingleses. Tomemos, como exemplo, o que pode ser considerado como uma “boa morte”. Para a amostra de população inquirida, esta seria sobretudo rápida ou durante o sono, indolor, em família, no local escolhido, acompanhada, com as finanças regularizadas e com cuidados personalizados; para a amostra de médicos, a “boa morte” seria sobretudo rápida ou durante o sono, indolor, no local escolhido, acompanhada, com a pessoa em controlo e com prognóstico preciso. São encontradas diferenças quando se interrogam os dois grupos sobre expectativas, receios e preocupações sobre a morte. Quando a amostra da população foi inquirida sobre o que considerava serem bons cuidados no fim da vida, o tratamento do paciente como um indivíduo, com a capacidade de exercer escolhas, foi salientado como a característica central.

Na Holanda, Bélgica, Suíça e no estado americano de Oregon, a MMA está já firmemente estabelecida em lei e na prática corrente.7 No Canadá e na Califórnia está prevista legislação regulando este processo,8-9 mas o debate não está concluído.10

Em países como o Reino Unido e Portugal discute-se a introdução da MMA. A British Medical Association tem, hoje, uma posição desfavorável.1 A Ordem dos Médicos portuguesa não apresentou uma posição oficial, mas responsáveis da Ordem têm-se oposto publicamente. Muitos especialistas em medicina paliativa opõem-se à MMA, manifestando receio de que a sua introdução tenha impacto negativo no desenvolvimento dos cuidados paliativos, o que carece de demonstração: em países nos quais a MMA se encontra estabelecida parece verificar-se, em simultâneo, progresso dos cuidados paliativos.11 Em Portugal foi desencadeado um movimento de cidadãos que tem como finalidade a instituição formal da MMA em Portugal e que justifica a iniciativa, entre outros motivos, “como uma expressão concreta dos direitos individuais à autonomia, à liberdade religiosa e à liberdade de convicção e consciência”.12 Entre os subscritores desta petição encontra-se um número apreciável de médicos, o que reforça a não unanimidade de posições perante o tema.

Quando inquiridos sobre pontos positivos e negativos a respeito da MMA, médicos tendem a ter uma visão mais negativa, enquanto representantes não médicos da população tendem a equilibrar pontos positivos e negativos.5 Tirar conclusões é difícil e ainda mais se tivermos em conta que o modo como as perguntas forem feitas, não surpreendentemente, tem impacto nas respostas obtidas.13

Para o médico de família esta discussão é inescapável. Sendo o especialista na pessoa e que a acompanha desde a concepção até à morte, será inevitável a sua chamada como médico que melhor conhece o indivíduo na sua globalidade.14 Não é por acaso que, no estudo inglês, o impacto na relação médico-paciente surge como uma das preocupações centrais do processo de MMA, ao ponto de uma parte substancial do estudo se debruçar sobre as vantagens e inconvenientes de diferentes decisores para o processo: (i) o médico de família da pessoa, (ii) um médico independente sem relação directa com a pessoa e (iii) um juiz coadjuvado por especialistas médicos. Nenhuma das três opções surgiu no estudo como superior, sendo que as três revelaram vantagens e inconvenientes. Também aqui as visões do público e de médicos diferem, com cada grupo valorizando aspectos nem sempre coincidentes para cada uma das opções.

Do ponto de vista específico do médico de família encontramos ainda pouca informação. Um estudo inglês de pequena dimensão encontrou posições contraditórias entre os inquiridos,15 o mesmo tendo sido verificado na Holanda16 e na Nova Zelândia17 e havendo algum equilíbrio entre posições a favor e contra a MMA.

É razoável assumir que, tendo em conta a tendência internacional que se observa, será uma questão de tempo até que a MMA se torne uma realidade em Portugal. Tal como em outros países18 é necessário que os médicos de família portugueses assumam esta realidade e intervenham activamente neste debate. É nosso dever defender a dignidade dos que em nós confiam em todos os momentos da sua vida, do seu início até ao seu final.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Wilson I, editor. End-of-life care and physician-assisted dying. Volume 1: setting the scene. London: British Medical Association; 2016.

2. Raus K, Chambaere K, Sterckx S. Controversies surrounding continuous deep sedation at the end of life: the parliamentary and societal debates in France. BMC Med Ethics. 2016;17(1):36. doi: 10.1186/s12910-016-0116-2        [ Links ]

3. Sheahan L. Exploring the interface between 'physician-assisted death' and palliative care: cross-sectional data from Australasian palliative care specialists. Intern Med J. 2016;46(4):443-51. doi: 10.1111/imj.13009        [ Links ]

4. ten Have H, Welie JV. Palliative sedation versus euthanasia: an ethical assessment. J J Pain Symptom Manage. 2014;47(1):123-36. doi: 10.1016/j.jpainsymman.2013.03.008

5. Wilson I, editor. End-of-life care and physician-assisted dying. Volume 2: public dialogue research. London: British Medical Association; 2016.         [ Links ]

6. Wilson I, editor. End-of-life care and physician-assisted dying. Volume 3: reflections and recommendations. London: British Medical Association; 2016.

7. Koopman JJ, Boer TA. Turning points in the conception and regulation of physician-assisted dying in the Netherlands. Am J Med. 2016 Mar 15. doi: 10.1016/j.amjmed.2016.02.025        [ Links ]

8. Browne A, Russell JS. Physician-assisted death in Canada. Camb Q Healthc Ethics. 2016;25(3):377-83. doi: 10.1017/S0963180116000025        [ Links ]

9. Dyer O. California's assembly passes physician assisted dying bill. BMJ. 2015;351:h4919. doi: 10.1136/bmj.h4919        [ Links ]

10. Eggertson L. Physician-assisted dying will be guided by Court ruling for now.  CMAJ. 2016;188(10):E207-8. doi: 10.1503/cmaj.109-5290        [ Links ]

11. Chambaere K, Bernheim JL. Does legal physician-assisted dying impede development of palliative care? The Belgian and Benelux experience. J Med Ethics. 2015;41(8):657-60. doi: 10.1136/medethics-2014-102116        [ Links ]

12. Movimento Cívico para a Despenalização da Morte Assistida. Manifesto «Direito a morrer com dignidade».  MCDMA; Jan 2016 [cited 2016 Jul 3]. Available from: https://morteassistidadotcom.files.wordpress.com/2016/02/formato-a-divulgar.pdf         [ Links ]

13. Magelssen M, Supphellen M, Nortvedt P, Materstvedt LJ. Attitudes towards assisted dying are influenced by question wording and order: a survey experiment. BMC Med Ethics. 2016;17(1):24. doi: 10.1186/s12910-016-0107-3        [ Links ]

14. Ruijs CD, van der Wal G, Kerkhof AJ, Onwuteaka-Philipsen BD. Unbearable suffering and requests for euthanasia prospectively studied in end-of-life cancer patients in primary care. BMC Palliat Care. 2014;13(1):62. doi: 10.1186/1472-684X-13-62        [ Links ]

15. Hussain T, White P. GPs' views on the practice of physician-assisted suicide and their role in proposed UK legalisation: a qualitative study. Br J Gen Pract. 2009;59(568):844-9. doi: 10.3399/bjgp09X472908        [ Links ]

16. Georges JJ, The AM, Onwuteaka-Philipsen BD, van der Wal G. Dealing with requests for euthanasia: a qualitative study investigating the experience of general practitioners. J Med Ethics. 2008;34(3):150-5. doi: 10.1136/jme.2007.020909        [ Links ]

17. Havill J. Physician assisted dying: a survey of Waikato General Practitioners. N Z Med J. 2015;128(1418):98-9.         [ Links ]

18. Buchman S. Physician-assisted dying: bringing the family physician perspective to the table. Can Fam Physician. 2012;58(10):1169-70.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

E-mail: abritosa@gmail.com

 

Agradecimento

A Rosalvo Almeida, tradutor da definição de morte medicamente ajudada aqui empregue, bem como pela compilação e divulgação de muita bibliografia e reflexões sobre o tema.

Conflitos de interesse

O autor declara não ter conflitos de interesse.

Artigo redigido ao abrigo do acordo ortográfico anterior a 1990

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons