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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.32 no.2 Lisboa abr. 2016

 

CLUBE DE LEITURA

Suplementação com ferro na gravidez: haverá benefícios clínicos?

Daily oral iron supplementation during pregnancy: are there any benefits?

Ana Carlota Dias*, Catarina Mariano Leal*, Catarina Viegas Dias*, Paulo Faria de Sousa**

*Médica Interna de Medicina Geral e Familiar. USF Dafundo

**Médico Interno de Medicina Geral e Familiar. USF Alphamouro.


 

Peña-Rosas JP, De-Regil LM, Garcia-Casal MN, Dowswell T. Daily oral iron supplementation during pregnancy. Cochrane Database Syst Rev. 2015 Jul 22;7:CD004736.

Introdução

A prevalência mundial da anemia na gravidez foi estimada em cerca de 38,2% em 2011, sendo a anemia ferropénica a mais prevalente. Os efeitos negativos da anemia na gravidez incluem baixo peso ao nascer, parto pré-termo e aumento da morbimortalidade materna. Estudos prévios sugerem que a suplementação com ferro reduz anemia na gravidez, parto e pós-parto, mas a maioria desses estudos foca-se em outcomes laboratoriais e pouco orientados para a clínica.

Objectivo

Esta revisão sistemática e meta-análise pretende avaliar os efeitos da suplementação oral diária com ferro em mulheres grávidas, isolada ou em conjunto com ácido fólico ou outras vitaminas e minerais, como uma intervenção de saúde pública em cuidados pré-natais.

Métodos

Foi feita uma pesquisa exaustiva e detalhada em diversas bases de dados de ensaios clínicos (Cochrane Central Register of Controlled Trials, MEDLINE, Ovid, CINAHL), bem como em plataformas de ensaios clínicos em curso ou não publicados da Organização Mundial da Saúde (OMS) e outras organizações relevantes. Foram selecionados ensaios clínicos aleatorizados ou semialeatorizados que avaliavam os efeitos da suplementação diária de ferro isolado ou com vitaminas e minerais (ácido fólico ou outras). Estas intervenções foram comparadas com placebo ou com os mesmos suplementos sem ferro e/ou ácido fólico.

A avaliação da qualidade metodológica dos estudos foi realizada com recurso aos critérios Cochrane por dois investigadores de forma independente. Para a avaliação da evidência foi utilizada uma classificação internacional de qualidade de evidência – GRADE.

Resultados

Foram incluídos 61 estudos na revisão sistemática, sendo que 41 deles contribuíram com dados para a meta-análise, envolvendo um total de 43.264 mulheres grávidas. Os estudos encontrados eram de qualidade baixa a moderada. Em relação à comparação principal (suplementos com ferro vs sem ferro ou placebo), houve uma redução do risco de anemia materna no final da gravidez em 70% (RR de 0,30 (IC 0,19-0,46)). Verificou-se também uma diminuição do risco de anemia ferropénica materna no final da gravidez (RR 0,33 (IC 0,16-0,69)) e de deficiência em ferro no final da gravidez (RR 0,43 (IC 0,27-0,66)).

Ainda na comparação principal, não houve diferença evidente entre os grupos relativamente a anemia grave no 2º e 3ºT, infeções maternas, mortalidade materna ou efeitos secundários. No entanto, as grávidas que receberam suplementação com ferro tinham um maior risco de valores de hemoconcentração (Hb > 13,0g/dL) durante e no final da gravidez.

Nos outcomes clínicos verificou-se uma redução de risco borderline de recém-nascidos com baixo peso à nascença (8,4% vs 10,3%, RR 0,84 (95% IC 0,69-1,03)) e de partos pré-termo (RR 0,93 (95% IC 0,84-1,03)). Nenhum destes resultados foi estatisticamente significativo.

Não houve nenhuma diferença evidente entre os grupos relativamente a mortalidade materna, neonatal ou anomalias congénitas.

COMENTÁRIO

O novo Programa Nacional de Vigilância para a Gravidez de Baixo Risco da Direção-Geral da Saúde (DGS), publicado em dezembro de 2015, introduziu a recomendação de realizar suplementação com ferro durante a gravidez. No entanto, não é claro quando e a quem iniciar esta suplementação ou quais as situações que a contraindicam.1-2

Em termos internacionais não há consenso sobre este tema: a United States Preventive Services Task Force (USPSTF) e o National Institute for Health and Care Excellence (NICE) não preconizam esta suplementação, mas a OMS recomenda a suplementação com ferro desde o início da gravidez (baseando-se na revisão sistemática da Cochrane de 2012).3-6 Esta discrepância motivou este comentário à atualização da revisão sistemática da Cochrane, publicada em julho de 2015.

Iniciamos a nossa análise pela qualidade metodológica da revisão sistemática. Do ponto de vista metodológico não encontramos falhas graves que comprometam a confiança nos resultados. Em relação ao estudos encontrados, o grande número de participantes adiciona robustez aos resultados. Por outro lado, a maioria dos estudos incluídos é de baixa qualidade, apresenta fraquezas metodológicas substanciais que podem influenciar os resultados obtidos (principalmente devido a vieses de ocultação e de alocação).

Em relação à comparação principal (suplementos com ferro vs sem ferro ou placebo) verificou-se uma redução significativa do risco quase exclusivamente em outcomes laboratoriais, como a anemia materna (Number Needed to Treat (NNT) de 4,4), défice de ferro (NNT de 5) e anemia por défice de ferro no final da gravidez (NNT 11,4). As restantes comparações estão de acordo com estes resultados. Mais relevantes para a nossa prática são os outcomes clínicos (como mortalidade materna, necessidade de transfusões, morte neonatal, parto pré-termo e baixo peso à nascença, entre outros) e nestes não foram constatados benefícios significativos.

Quanto aos danos da intervenção encontrou-se um aumento do risco de hemoconcentração (Number Needed to Harm (NNH) de 7 na comparação principal), que pode estar associada a outcomes obstétricos negativos, incluindo parto pré-termo, baixo peso ao nascer e pré-eclâmpsia.

Relativamente aos efeitos adversos, descritos como náuseas, vómitos, obstipação ou diarreia, a qualidade da evidência era muito baixa e a maioria dos estudos não os reportava devidamente. Das várias comparações realizadas, a que demonstrou maior risco de efeitos adversos foi a comparação ferro + ácido fólico vs placebo (NNH de 4,8). Ainda que não possamos saber qual a verdadeira prevalência de efeitos adversos, é provável que seja mais elevada do que a reportada nestes estudos. Além disso, a dose máxima tolerada parece ser de 45mg/dia de ferro oral (sendo que a DGS recomenda 30-60mg/dia) e a associação de ferro e ácido fólico disponível em Portugal contém 90mg de ferro.

Os autores da revisão interpretam os resultados como sendo favoráveis à suplementação com ferro pelos seus efeitos benéficos, ressalvando que estes efeitos são menos evidentes no que na revisão de 2012 do mesmo tema.6 Além disso, o benefício traduziu-se apenas em parâmetros laboratoriais (anemia materna, anemia ferropénica, reservas de ferro). Dada esta falta de benefício em outcomes clínicos orientados para o doente, é-nos difícil apoiar esta prática. Acresce a isto o facto dos efeitos adversos gastrointestinais serem provavelmente frequentes nas doses utilizadas e poderem afetar o bem-estar da grávida.

A prevalência de anemia ferropénica na gravidez em Portugal não é conhecida. Existe apenas um estudo de prevalência de anemia (EMPIRE), em processo de publicação, com uma reduzida amostra de grávidas e algumas fraquezas metodológicas, o que impõe cautela na interpretação dos resultados.7 Por outro lado, nesta revisão foram incluídos estudos de áreas com elevada prevalência de anemia, sem que por isso se encontrassem benefícios. É lícito questionar se a prevalência de anemia deverá ser um fator determinante na decisão de iniciar suplementação universal com ferro.

Em 2014, cerca de 68% das grávidas portuguesas tiveram uma consulta de saúde materna em cuidados de saúde primários no primeiro trimestre. A vigilância adequada da gravidez pode ser uma oportunidade de rastrear a anemia e tratá-la, ao invés de suplementar preventivamente. Nas grávidas com acesso difícil aos cuidados de saúde poderá considerar-se a suplementação com ferro em casos selecionados, mas estes casos serão provavelmente a exceção e não a maioria.2 Importa ainda salientar que, em grávidas com valores elevados de hemoglobina e/ou fatores de risco para pré-eclâmpsia, a suplementação com ferro pode relacionar-se com outcomes obstétricos negativos e não deve ser aconselhada.

A relação benefício/risco desta intervenção não parece suportar a decisão de suplementar com ferro. No entanto, temos ao nosso alcance medidas não farmacológicas para melhorar a saúde materna e neonatal, com um perfil de risco mais favorável. Nomeadamente, a clampagem tardia (1-3 minutos) do cordão umbilical, que parece diminuir a hemorragia pós-parto e o aconselhamento alimentar, garantindo uma alimentação diversificada e adequada às necessidades na gravidez.5-6

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Peña-Rosas JP, De-Regil LM, Garcia-Casal MN, Dowswell T. Daily oral iron supplementation during pregnancy. Cochrane Database Syst Rev. 2015 Jul 22;7:CD004736.         [ Links ]

2. Direção-Geral da Saúde. Programa nacional para a vigilância da gravidez de baixo risco (Internet). Lisboa: DGS; 2015. Available from: https://www.dgs.pt/em-destaque/programa-nacional-para-a-vigilancia-da-gravidez-de-baixo-risco.aspx        [ Links ]

3. Cantor AG, Bougatsos C, Dana T, Blazina I, McDonagh M. Routine iron supplementation and screening for iron deficiency anemia in pregnancy: a systematic review for the U.S. Preventive Services Task Force. Ann Intern Med. 2015;162(8):566-76.         [ Links ]

4. National Institute for Health and Care Excellence. Antenatal care for uncomplicated pregnancies: clinical guideline (Internet). London: NICE; 2008. Available from: http://www.rcpch.ac.uk/system/files/protected/page/Antenatal%20care%20for%20uncomplicated.pdf        [ Links ]

5. World Health Organization. Daily iron and folic acid supplementation in pregnant women: guideline. Geneva: WHO; 2012.         [ Links ] ISBN 9789241501996

6. Peña-Rosas JP, De-Regil LM, Dowswell T, Viteri FE. Daily oral iron supplementation during pregnancy. Cochrane Database Syst Rev. 2012;12:CD004736.         [ Links ]

7. Fonseca C, Marques F, Nunes AR, Belo A, Brilhante D, Cortez J. Prevalence of anaemia and iron deficiency in Portugal: the EMPIRE Study. Intern Med J. 2016 Feb 3. doi: 10.1111/imj.13020.         [ Links ] (Epub ahead of print)

 

Conflitos de interesse

Os autores declaram não ter conflito de interesses.

Artigo escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.

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