SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.32 número2Terapias alternativas precisam de uma ciência alternativa índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.32 no.2 Lisboa abr. 2016

 

EDITORIAL

Tangibilidade da complexidade

Paula Broeiro*

*Directora da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

Complexidade é um termo versátil com múltiplas aplicações e matizes dentro do domínio da saúde e dos cuidados de saúde. A complexidade dos doentes é potencialmente mais relevante do que a complexidade do diagnóstico, porque está frequentemente ligada a determinantes sociais de saúde e à necessidade de integração horizontal de cuidado, sendo indispensáveis o trabalho em equipa multiprofissional e uma articulação social eficientes.1 Numa das muitas experiências de vida pessoais e profissionais conheci uma enfermeira recém-chegada a uma unidade de cuidados na comunidade (UCC), vinda de uma unidade de cuidados intensivos (UCI) hospitalares que ilustrou a sua perceção de complexidade em UCC: na UCI quando o doente descompensa, o dispositivo toca o alarme; quando acaba o turno, o doente fica entregue a outra equipa; em UCC, os profissionais têm que desenvolver competências para perceber os pequenos sinais de descompensação e deixar os doentes entregues a cuidadores muitas vezes impreparados e sem recursos.

O conceito de complexidade confunde-se com o uso corrente da palavra complexidade e, em medicina, com o conceito de gravidade e alta tecnologia. O termo tem sido utilizado indiscriminadamente para designar complexidade do doente ou complexidade do cuidado.1 Em medicina geral e familiar (MGF), a complexidade decorrente da teoria dos sistemas tem sido largamente estudada e é entendida como mais abrangente que o doente complexo.

Os sistemas adaptativos complexos são definidos como o conjunto de diferentes sistemas e elementos que interagem de forma não-linear, apresentando comportamentos que não podem ser explicados apenas pelo comportamento dos seus componentes isolados (reducionismo).2-3 A interrelação entre elementos indissociáveis dum sistema complexo pode manifestar-se como propriedade ou recurso desse sistema (e.g., família), o que significa que um sistema não pode ser entendido pelos seus componentes individuais isolados, mas deve incluir as interrelações presentes, mesmo que com pesos variáveis.4 Em medicina, uma pessoa doente é mais que o conjunto dos seus diagnósticos e terapêuticas e requer uma abordagem holística que inclua a compreensão da singularidade resultante da interceção de sistemas (e.g., individual, familiar, social e sistema de saúde). Estes conceitos justificam a inadequação da aplicabilidade a um doente com multimorbilidade de normas orientadas para a doença. O médico de família não é “super-poli-mini-especialista”; é, sim, o médico que faz a integração sinérgica da medicina, epidemiologia, psicologia e da antropologia,5 bem como dos cuidados e cuidadores. É no cuidado individual que convergem as complexidades do doente e do cuidar.

As teorias explicativas de sistemas complexos surgiram durante a segunda metade do século dezanove nas ciências básicas, como a física, a matemática, a química e outras.2 Um dos benefícios da ciência da complexidade é a sua capacidade de ultrapassar a fragmentação e as limitações que se impõem à compreensão da etiologia, diagnóstico e tratamento da doença.2 Numa revisão narrativa histórica recente é descrito o desenvolvimento da MGF na sua relação com as teorias de sistemas adaptativos complexos. Inicialmente estas teorias forneceram um quadro de referência quanto à saúde, doença e vivência da doença. Nos últimos 15 anos expandiram-se às organizações, conduzindo a uma tomada de consciência crescente da importância das interações entre os diversos sistemas e, em consequência, a mudanças na prestação de cuidados, na organização dos serviços e na perspetivação das reformas de saúde.2

McWhinney nunca escreveu explicitamente sobre o projeto do sistema de saúde, mas sobre o significado da MGF e com ele aprendemos o significado da vivência da doença e a necessidade de cuidados primários de alta qualidade para a saúde dos pacientes individuais.6 O contributo da escola Canadiana de McWhinney tem subjacente a filosofia sistémica centrada no paciente e na relação médico-paciente e veio transformar o modelo biomédico tradicional.6 A metáfora mecanicista cartesiana do “corpo como máquina” tem sido contrariada pela organicista que considera o corpo um sistema complexo adaptativo.6-7 O método clínico centrado no paciente, proposto há longos anos, era já expressão da complexidade: requer que entendamos não só a doença biológica, mas também a experiência individual de doença, contexto social amplo (família, comunidade, época) e os determinantes da saúde, a par do encontro de plataformas de entendimento, da melhoria da relação6 e da articulação de cuidados (e.g., sistemas de saúde).

Em cada consulta o paciente apresenta a sua história, construída através da sua experiência pessoal de doença, de vida e contexto dos cuidados. Em simultâneo, o médico recorre ao seu conhecimento clínico, experiência e recursos externos de forma a fazer uma avaliação e construir um plano integrado.5 Perante situações de maior complexidade, o médico pode ter necessidade de recorrer a suportes de apoio à decisão clínica, discutir o caso com os pares ou, se garantida a continuidade de cuidado, utilizar o tempo como recurso.5 É vital adotar uma abordagem holística, partilhada com os doentes, respeitando as diferenças e escolhas individuais e equilibrando “bom cuidado”/”melhor cuidado”, em especial quando este último é irrealista.5 A MGF é uma disciplina baseada em evidência, que requer o desenvolvimento de atitudes e competências de comunicação, presença, autenticidade, empatia.5 Perante um doente complexo, que requer cuidados complexos e exige a concretização daquelas atitudes e competências, poderá ser mais eficiente um tempo de consulta adaptado e suficiente (consultas mais longas) do que um tempo programado pelo relógio (tempo padrão destinado à consulta).5

A complexidade em MGF é conferida pela abrangência do cuidar (independente da idade, patologia, condição social e das suas interações)8 integrado num sistema de saúde (articulação vertical) e numa comunidade (articulação horizontal). É esta complexidade que diferencia a MGF e que exige a execução de diversas tarefas por consulta, tornando necessário mais tempo por consulta.8 As medidas de processo orientadas por problemas únicos (e.g., programa de diabetes) não refletem os resultados em saúde (e.g., qualidade de vida, mortalidade).8 Existe, pois, desconexão entre o processo de cuidar e os resultados esperados (e.g., métricas – indicadores).8 A avaliação em complexidade aponta para os limites do desenho de gestão orientado para a doença e realça a necessidade de mudança de paradigma para uma gestão centrada na pessoa, tendo em conta os conhecimentos atuais sobre os sistemas adaptativos complexos.1 A medicina moderna colocou em manifesto o paradoxo de que cuidados de elevado custo não se refletiram em cuidados de superior qualidade, isto é, o esforço para melhorar as partes (cuidados baseados em evidência para doenças específicas) não melhoraram o todo (a saúde das pessoas e populações).9

Os sistemas de saúde não estão ainda projetados em torno da complexidade; são, pois, inadequados para a doença crónica complexa, multimorbilidade, doença mental e instabilidade socioeconómica. Não incluem o (aparentemente) inesperado, nem o paradoxal, próprios dos sistemas adaptativos e não permitem a emergência do ainda desconhecido.3

Quando se avalia complexidade existem pelo menos quatro domínios que, segundo o instrumento INTERMED, importa considerar: biológico (gravidade, cronicidade e incerteza diagnóstica); psicológico (antecedentes e história psiquiátrica); social (suporte social e estabilidade residencial); cuidados de saúde (sistema de saúde).1 Um sistema projetado em torno de complexidade faria a integração vertical (e.g., cuidados primários e diferenciados) e horizontal de cuidados (e.g., saúde e sociedade), privilegiando a interação entre os diferentes agentes do cuidar.6 O pensamento linear dos programas de gestão integrada da doença (e.g., insuficiência renal) seria o triunfo sobre a incerteza; contudo, elimina da equação a situação particular de cada pessoa (e.g., multimorbilidade, crenças, valores e expectativas), tornando os cuidados insatisfatórios6 e ineficientes. Se é verdade que não se pode melhorar o que não se mede, então temos que pensar muito sobre o que medimos quando optamos por definir o sucesso numa área da saúde.6 Segundo McWhinney, deveríamos medir o que importa e não apenas o que é facilmente quantificável.6

Desde sempre recorremos a instrumentos para lidar com a complexidade: fluxogramas, tabelas de várias entradas, diagramas cartesianos (e.g., diagrama de Stacey)10 ou mapas (e.g., mapa de problemas)11. Todas estas ferramentas ajudam-nos a compreender a realidade; contudo, são meras aproximações da realidade de acordo com uma ou mais perspetivas de análise. A abordagem instrumental da complexidade revela-se uma tarefa apenas tangível por se tratar de uma realidade pluridimensional. Os desafios socioecológicos atuais conduzem a que a complexidade deva ser interiorizada não apenas como conceito “complexidade intelectual” (saber), mas como vivência “complexidade vivida” (ser e agir).5

Em MGF, o método clínico centrado no paciente, a medicina narrativa e o trabalho em equipa são ferramentas indispensáveis à definição de um plano individualizado de cuidados em contexto de complexidade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Peek CJ, Baird MA, Coleman E. Primary care for patient complexity, not only disease. Fam Syst Health. 2009;27(4):287-302.         [ Links ]

2. Sturmberg JP, Martin CM, Katerndahl DA. Systems and complexity thinking in the general practice literature: an integrative, historical narrative review. Ann Fam Med. 2014;12(1):66-74.         [ Links ]

3. Plsek PE, Greenhalgh T. Complexity science: the challenge of complexity in health care. BMJ. 2001;323(7313):625-8.         [ Links ]

4. Kannampallil TG, Schauer GF, Cohen T, Patel VL. Considering complexity in healthcare systems. J Biomed Inform. 2011;44(6):943-7.         [ Links ]

5.  Ventres WB. How I think: perspectives on process, people, politics, and presence. J Am Board Fam Med. 2012;25(6):930-6.         [ Links ]

6. Martin D, Pollack K, Woollard RF. What would an Ian McWhinney health care system look like? Can Fam Physician. 2014;60(1):17-9.         [ Links ]

7. Jayasinghe S. Complexity science to conceptualize health and disease: is it relevant to clinical medicine? Mayo Clin Proc. 2012;87(4):314-9.         [ Links ]

8. Bowman MA. The complexity of family medicine care. J Am Board Fam Med. 2011;24(1):4-5.         [ Links ]

9. Stange KC, Ferrer RL. The paradox of primary care. Ann Fam Med. 2009;7(4):293-9.         [ Links ]

10. Stacey R, Griffin DS. Complexity and management: fad or radical challenge to systems thinking? London: Routledge; 2000.         [ Links ] ISBN 9780415247610

11. Broeiro P, Ramos V, Barroso R. O mapa de problemas: um instrumento para lidar com a morbilidade múltipla. Rev Port Clin Geral. 2007;23(2):209-15.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

E-mail: director@rpmgf.pt

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons