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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.32 no.1 Lisboa fev. 2016

 

CLUBE DE LEITURA

Qual o alvo ideal para o tratamento da hipertensão?

What is the ideal target for control of hypertension?

Ana Rita Domingues*, Ângela Pacheco*, Paulo Faria de Sousa*, Catarina Viegas Dias**

*Médicos Internos de Medicina Geral e Familiar. USF Alphamouro

**Médica Interna de Medicina Geral e Familiar. USF Dafundo


 

SPRINT Research Group, Wright JT Jr, Williamson JD, Whelton PK, Snyder JK, Sink KM, et al. A randomized trial of intensive versus standard blood-pressure control. N Engl J Med. 2015;373(22):2103-16. doi: 10.1056/NEJMoa1511939

Introdução

Os alvos de tensão arterial sistólica (TAS) no tratamento da hipertensão arterial (HTA) que conferem uma maior redução de morbimortalidade cardiovascular (CV) permanecem incertos.

O objetivo do estudo foi comparar o impacto do tratamento intensivo da HTA (alvo de TAS <120mmHg) com tratamento standard (<140mmHg) na morbimortalidade cardiovascular de pessoas acima dos 50 anos, com risco cardiovascular aumentado mas sem diabetes.

Métodos

Trata-se de um estudo aleatorizado, controlado, open-label que decorreu em 102 clínicas nos EUA e Porto Rico. Incluíram-se pessoas que cumpriam os três seguintes parâmetros: 50 anos ou mais, TAS 130-180mmHg, risco cardiovascular alto. Este último foi definido por um ou mais dos seguintes critérios: doença cardiovascular clínica ou subclínica, doença renal crónica (DRC) com taxa de filtração glomerular estimada (TFGe) 20-60 ml/min/1,73m2, score de Framingham ≥ 15%, idade ≥ 75 anos. Foram excluídas pessoas com diabetes, acidente vascular cerebral (AVC) prévio, doença renal poliquística.

A aleatorização foi estratificada de acordo com o local, estando os participantes e os intervenientes informados dos grupos atribuídos.

O outcome primário era composto por enfarte agudo do miocárdio, outros síndromas coronários, AVC, insuficiência cardíaca ou morte de causa cardiovascular. Os outcomes secundários incluíam também a mortalidade global. Foram considerados também outcomes de segurança, nomeadamente eventos adversos e outcomes renais. A classificação dos eventos foi realizada por um comité de adjudicação oculto do grupo dos participantes.

Foi realizada análise estatística por intenção de tratar de todos os outcomes.

Resultados

Foram recrutados 9.361 participantes, que foram aleatorizados para tratamento intensivo ou standard. Não havia diferenças estatisticamente significativas nas características basais dos dois grupos. Ao fim de um ano, o grupo intensivo tinha uma TAS média de 121,4mmHg e o grupo standard 136,2mmHg. A diferença de TAS entre os dois grupos foi em média 13,1mmHg, sendo que o grupo intensivo tinha 2,8 fármacos e o grupo standard 1,8.

Após cerca de 3,26 anos de seguimento, o estudo foi interrompido por se verificar um taxa inferior do outcome primário no grupo de tratamento intensivo (hazard ratio, 0,75; intervalo de confiança ((IC) 95% - 0,64 a 0,89; redução de risco relativo (RRR) de 25%; número necessário de tratar (NNT) de 61). A mortalidade global também foi significativamente mais baixa no grupo do tratamento intensivo (hazard ratio, 0,73; IC 95% - 0,60 a 0,90, RRR de 27%; NNT de 90).

As taxas de eventos adversos de hipotensão, síncope, alterações hidroeletrolíticas e lesão renal aguda foram mais elevadas no grupo intensivo, com exceção da taxa de quedas.

Conclusões

Entre doentes com risco CV aumentado, mas sem diabetes, um alvo de TAS <120mmHg, comparado com um alvo de TAS <140mmHg, resultou em menores taxas de eventos CV fatais e não fatais e morte por qualquer causa. Contudo, as taxas de alguns eventos adversos foram significativamente superiores no grupo do tratamento intensivo.

COMENTÁRIO

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a HTA é o fator de risco mais importante para morte prematura.1-2 Em Portugal, a sua prevalência é de 26,9% (dados de 2013).3 No entanto, os alvos para controlo da TA não são consensuais. Uma revisão sistemática da Cochrane de 2009, que analisou sete ensaios clínicos, incluindo 22.089 participantes, não encontrou evidência de que uma redução do alvo da TA para valores ≤135/85mmHg diminuísse a morbimortalidade.4 A norma de orientação de HTA do National Institute for Health and Care Excellence (NICE), de 2011, baseada em oito ensaios clínicos aleatorizados, recomenda um alvo tensional de 140/80mmHg para indivíduos com menos de 80 anos, mas realça que a evidência que avalia especificamente o alvo ideal de tratamento é insuficiente e não permite certezas quanto ao mesmo.5 Em relação aos doentes com diabetes mellitus, o estudo ACCORD mostrou que um alvo de TAS <120mmHg não se traduziu em benefício cardiovascular.6

O estudo SPRINT vem desafiar a evidência prévia e levantar questões pertinentes sobre o alvo terapêutico ideal da HTA. O resultado principal foi a diminuição de eventos cardiovasculares fatais e não-fatais, apresentado sob a forma de uma RRR de 25%. Contudo, olhando para a redução do risco absoluto de mortalidade global, que traduz de forma mais realista os ganhos em saúde, verificamos que em relação ao outcome primário a redução foi de 0,54% e que a taxa de mortalidade global diminuiu apenas cerca de 0,37% por ano. Isto significa que para salvar uma vida a cada três anos precisaríamos de tratar intensivamente 90 pessoas (NNT 90).

Dos restantes outcomes, importa assinalar que se verificaram mais casos de lesão renal aguda reversível no grupo intensivo, bem como maior redução da TGF e nos doentes sem DRC prévia. No entanto, os outcomes renais não puderam ser avaliados adequadamente, uma vez que seriam calculados apenas no final do follow-up planeado de cinco anos.

Em relação aos efeitos adversos, a síncope e hipotensão foram significativamente mais frequentes no grupo intensivo (3,5% vs. 2,4% e 3,4% vs. 2,0%, respetivamente), mas a taxa de quedas com lesões subsequentes manteve-se semelhante nos dois grupos.

Relativamente aos pontos fortes do estudo, considere-se a amostra de grandes dimensões, com boa representação de grupos frequentemente subrepresentados em ensaios clínicos, como mulheres, idosos e minorias étnicas. A análise por intenção de tratar garante uma perspetiva mais real dos outcomes, pois analisa os doentes no grupo em que foram inicialmente alocados (independentemente do seu cumprimento terapêutico). Apesar da natureza open-label do estudo, a equipa de estatística e o comité de adjudicação de outcomes estavam cegos para a alocação.

Um dos aspetos a salientar é o da população incluída no estudo não corresponder à maioria dos doentes que observamos nos cuidados de saúde primários (CSP) - a amostra incluía apenas doentes com 50 anos ou mais, com alto risco CV, com ou sem doença arterial coronária prévia, tendo sido excluídos doentes com diabetes, AVC prévio, idosos institucionalizados e doentes com antecedentes de má adesão terapêutica.

O valor médio da PAS nos dois grupos foi de 139,7mmHg, pois foram incluídos doentes pré-hipertensos e excluídos hipertensos polimedicados com mau controlo tensional. Além disso, os valores de TA foram medidos em contexto de consulta, o que pode condicionar uma avaliação menos fidedigna da TA em comparação com os valores no domicílio.7

Uma das principais limitações do estudo é o formato open-label (os médicos e os doentes sabiam da sua alocação). Isto pode influenciar a intensidade da abordagem terapêutica (não exclusivamente farmacológica) por parte dos médicos, condicionando um potencial viés. Aliás, o grupo intensivo teve um protocolo de seguimento mais apertado: bastava uma medição da TA elevada para agendar uma reavaliação em um mês, em vez dos três meses programados, enquanto no grupo de controlo só após duas medições elevadas em consultas diferentes é que era programada uma reavaliação mensal.8 Verificamos ainda que mais de metade das mortes “em excesso” no grupo controlo foram devidas a causas não-cardiovasculares, sugerindo um efeito protetor que vai além da redução da TA - relacionar-se-á com esta vigilância mais frequente do grupo de tratamento intensivo?1

Em conclusão ao comentário, este estudo não se aplica à maioria dos doentes do nosso contexto de CSP e não deve levar à mudança do alvo tensional em todos os hipertensos. Foram incluídos apenas doentes com alto risco cardiovascular e sem diabetes ou AVC prévio, sendo que nos restantes não há qualquer evidência para alterar o tratamento. Além disso, mesmo nesta população selecionada, o benefício do controlo intensivo da TA na mortalidade parece reduzido e não existe evidência que ultrapasse os potenciais riscos e custos do tratamento. A decisão deve ser, em última instância, partilhada entre médico e doente, uma vez explicada a evidência disponível, sem esquecer o impacto dos estilos de vida saudáveis no controlo da HTA.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. SPRINT Research Group, Wright JT Jr, Williamson JD, Whelton PK, Snyder JK, Sink KM, et al. A randomized trial of intensive versus standard blood-pressure control. N Engl J Med. 2015;373(22):2103-16.         [ Links ]

2. Mathers C, Stevens G, Mascarenhas M. Global health risks: mortality and burden of disease attributable to selected major risks (Internet). Geneva: World Health Organization; 2009 (cited 2015 Dec 17). ISBN 9789241563871. Available from: http://www.who.int/healthinfo/global_burden_disease/GlobalHealthRisks_report_full.pdf        [ Links ]

3. Espiga de Macedo M, Ferreira RC. A hipertensão em Portugal 2013: análise epidemiológica nos cuidados de saúde primários (Internet). Lisboa: Direção-Geral da Saúde; 2015 (cited 2015 Dec 18). Available from: http://www.dgs.pt/em-destaque/a-hipertensao-arterial-em-portugal-.aspx        [ Links ]

4. Arguedas JA, Perez MI, Wright JM. Treatment blood pressure targets for hypertension. Cochrane Database Syst Rev. 2009;(3):CD004349.         [ Links ]

5. National Institute for Health and Care Excellence. Hypertension: clinical management of primary hypertension in adults (Internet). London: NICE; 2011 Aug (updated 2013 Oct; cited 2015 Dec 17). Available from: https://www.nice.org.uk/guidance/cg127         [ Links ]

6. Margolis KL, O’Connor PJ, Morgan TM, Buse JB, Cohen RM, Cushman WC, et al. Outcomes of combined cardiovascular risk factor management strategies in type 2 diabetes: the ACCORD randomized trial. Diabetes Care. 2014;37(6):1721-8.         [ Links ]

7. Aguiar H, Silva AI, Pinto F, Catarino S. Avaliação da pressão arterial no ambulatório: revisão baseada na evidência (Ambulatory evaluation of blood pressure: an evidence-based review). Rev Port Clin Geral. 2011;27(4):362-76. Portuguese

8. Systolic Blood Pressure intervention Trial (SPRINT): protocol version 4.0 (Internet). Sprint Trial; 2012 (cited 2015 Dec 17). Available from: https://www.sprinttrial.org/public/Protocol_Current.pdf         [ Links ]

 

Conflitos de interesse

Os autores declaram não ter conflito de interesses.

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