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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.31 no.4 Lisboa ago. 2015

 

EDITORIAL

Prática baseada em evidência e seus limites

Paula Broeiro*

*Directora da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

Aprestação de cuidados baseada em evidência é reconhecida como uma competência fundamental para os profissionais de saúde de diversas profissões e culturas.1 Na era da medicina baseada em evidência (MBE) e do crescimento exponencial do conhecimento, a par da sua disponibilidade através de plataformas informáticas, amplia-se o sentimento diário do limite do saber.1 A acessibilidade à informação e o seu uso regular é hoje considerado como recurso major da aprendizagem ao longo da vida.1

Importa, todavia, definir o que se entende por evidência e como se estabelece a ponte com a prática clínica. Existe uma variedade de definições de MBE que, como qualquer definição, se torna redutora e insuficiente para explicar a complexidade do processo subjacente.1 O termo MBE surgiu na literatura médica em 1991 como “uma capacidade de avaliar a validade e a importância das provas, antes de as aplicar, no quotidiano, aos problemas clínicos”.1-2 O conceito inicial de MBE correspondia ao “uso consciente, explícito e judicioso da melhor prova na tomada de decisão no cuidado ao paciente individual”.2

Tendo em conta três pressupostos subjacentes ao paradigma MBE (uma prática clínica equivalente a decisões clínicas; melhores decisões clínicas usando previsões matemáticas; a evidência proveniente de amostras populacionais mapeia decisões sobre pacientes individuais),3 a MBE poderia definir-se como “o uso de estimativas matemáticas de risco, possibilidade de benefício e de dano, através de investigação de alta qualidade em amostras populacionais, para informar o clínico na tomada de decisão”.3

Com a expansão da informação, o conhecimento deveria ser maior e a nossa prática mais efetiva.1 Todavia, a tomada de decisão clínica, que inclui o raciocínio clínico, exige a aplicação de pelo menos dois tipos de conhecimento: o explícito (evidência) e o tácito (saber acumulado).1 A MBE pode ajudar no processo de decisão na incerteza, tornando acessível o conhecimento explícito; no entanto, não substitui o conhecimento tácito adquirido com a experiência, mais difícil de partilhar e que confere a capacidade de reconhecer, por exemplo, uma criança gravemente doente.1 A experiência clínica ou o conhecimento tácito reflete-se num julgamento diagnóstico eficiente.2 Sem experiência clínica, a prática esmagar-se-á por elementos de prova, uma vez que mesmo evidência excelente pode ser inaplicável ou inadequada para um paciente individual.2

O termo MBE tem evoluído para prática baseada em evidência (PBE) no sentido de incluir a aplicação da epidemiologia e a avaliação crítica na tomada de decisão explícita.1 A prática baseada em evidência (PBE) significa integrar experiência individual com a melhor evidência externa disponível proveniente de investigação, aproximando-se da definição inicial de Sackett.2 O processo de PBE foi descrito em etapas: tradução de incerteza numa pergunta; revisão sistemática da melhor evidência disponível; avaliação crítica da evidência (validade, relevância e aplicabilidade); aplicação dos resultados na prática e avaliação do desempenho.1

As três primeiras etapas desta metodologia aproximam-se da estratégia das revisões baseadas em evidência (RBE) que têm sido publicadas na Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar.4 Em geral, nestas revisões os estudos têm sido avaliados qualitativamente e atribuída a força de recomendação com base no corpo de evidência, segundo a Taxonomy Strength of Recommendation (SORT).5 Esta taxonomia aborda a qualidade, quantidade e consistência das provas e valoriza a utilização dos resultados centrados no paciente.5 Outras taxonomias podem ser utilizadas, como a Grading of Recommendations Assessment, Development and Evaluation (GRADE) que, para alcançar simplicidade, classifica a qualidade das provas em quatro níveis: alto, moderado, baixo e muito baixo. Na GRADE, a evidência baseada em ensaios randomizados controlados (RCT) começa como prova de “alta qualidade”, mas a confiança nessa evidência pode diminuir por razões diversas, como limitações do estudo, inconsistência dos resultados, provas indiretas, imprecisões e vieses.6 Pelo contrário, estudos observacionais podem começar com uma classificação de “baixa qualidade” e subir de acordo com magnitude do efeito.6 Existem ainda outras taxonomias, cada qual revelará as suas vantagens, como a SORT com a valorização de resultados orientados para o paciente ou a GRADE com a disponibilização de uma ferramenta facilitadora da interpretação http://www.guidelinedevelopment.org/. Muito embora as taxonomias tenham contribuído para a interpretação de elementos de prova não diminuíram a importância da leitura crítica de cada peça de evidência nem uniformizaram a linguagem de evidência.

A ênfase dada à avaliação crítica da prova tem conduzido a um debate sobre a viabilidade da sua aplicação ao paciente individual.1 As críticas à MBE incluem viés de publicação, pouco ênfase nos resultados relevantes para os pacientes (disease vs illness); no entanto, o seu estatuto científico mantém-se inquestionável.7 A crescente tomada de consciência da necessidade de uma boa evidência levou à perceção da sobrestimação do efeito – se aleatorização inadequada ou viés de publicação.1 A agenda de investigação da MBE é, contudo, mais ampla que a avaliação crítica e enriqueceria se incluísse a experiência da doença do paciente e o ambiente de consulta em diferentes contextos.8 A investigação qualitativa também poderia contribuir para a compreensão da lógica de como os médicos e pacientes pensam, comunicam e interpretam evidência.8

Num editorial, Greenhalgh alerta para o paradoxo do rigor metodológico bem-intencionado da MBE perpetuar o mito de que nos libertamos de incertezas e ambiguidades se reduzirmos a complexidade do tratamento a questões centradas sobre populações, intervenções, comparações e resultados.3 A incerteza é um facto da vida na medicina e na vida real e a sua aceitação pode ajudar-nos a desenvolver estratégias eficazes para lidar com ela. As atitudes face à incerteza encontram-se em mudança, passando de tentativas de dominar ou diminuir a incerteza para a sua gestão.9

Importa assumir com naturalidade a incerteza, bem como os limites da evidência pela dificuldade em obter, por vezes, provas robustas (e.g., RCT como Gold Standard): em grupos especiais (e.g., crianças) ou doenças raras. Algumas doenças raras podem afetar menos de cem pacientes, existindo pois situações em que grandes estudos não são viáveis, podendo ser necessário o recurso a modelos experimentais alternativos e/ou abordagens estatísticas refinadas.10 Deverá, ainda, existir ponderação entre pequenas peças de evidência de alta qualidade e quantidades relativamente maiores de provas de qualidade inferior ou recorrer-se à extrapolação de dados.11 A extrapolação é geralmente definida como a extensão da informação e das conclusões provenientes de estudos num ou mais subgrupos da população e fazer inferências para outro subgrupo (e.g., adultos para crianças).11 Tem como racional subjacente evitar estudos desnecessários na população-alvo, por razões éticas, de eficiência e alocação de recursos.11

Outro dos problemas é a assunção de que a ausência de prova seja sinónimo de ausência de benefício ou dano,12 como é inquestionável que medidas populacionais não suportadas por prova considerada de alta qualidade tenham benefício, como o rastreio universal de doenças metabólicas em recém-nascidos.13

PBE exige organizações comprometidas com as melhores práticas e com acesso universal e célere a bases de dados eletrónicas de MBE (sistemas e sinopses).1 Todos os profissionais de saúde precisam compreender os princípios da PBE e de ter uma atitude crítica sobre a sua própria prática e a própria evidência.1 Em qualquer decisão clínica, a questão inicial deveria ser ‘O que é melhor fazer, para esta pessoa, neste momento, dadas essas circunstâncias?’3 E, como Sackett definiu, um bom médico deve decidir racionalmente, em consciência e criteriosamente sobre a melhor evidência.2-3 E, mais que saber as normas, o médico deve saber decidir qual é a norma mais relevante para cada doente.3

A Medicina Geral e Familiar, através da abordagem holística e generalista, reforçada por aptidões de decisão baseada em evidência e centrada no paciente, poderá responder de forma mais satisfatória e efetiva às questões atuais e antecipar respostas às necessidades futuras da população em cuidados de saúde primários.7

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2. Sackett DL, Rosenberg WM, Gray JA, Haynes RB, Richardson WS. Evidence based medicine: what it is and what it isn’t. Br Med J. 1996;312(7023):71-2.         [ Links ]

3. Greenhalgh T. Why do we always end up here? Evidence-based medicine’s conceptual cul-de-sacs and some off-road alternative routes. J Prim Health Care. 2012;4(2):92-7.         [ Links ]

4. Braga R, Melo M. Como fazer uma revisão baseada na evidência [How to make an evidence-based clinical reviw article]. Rev Port Clin Geral. 2009;25(6):660-6. Portuguese

5. Ebell MH, Siwek J, Weiss BD, Woolf SH, Susman J, Ewigman B, et al. Strength of Recommendation Taxonomy (SORT): a patient-centered Approach to grading evidence in the medical literature. Am Fam Physician. 2004;69(3):548-56.         [ Links ]

6. Guyatt GH, Oxman AD, Vist GE, Kunz R, Falck-Ytter Y, Alonso-Coello P, et al. GRADE: an emerging consensus on rating quality of evidence and strength of recommendations. BMJ. 2008;336(7650):924-6.         [ Links ]

7. Premji K, Upshur R, Légaré F, Pottie K. Future of family medicine: role of patient centred-care and evidence-based medicine. Can Fam Physician. 2014;60(5):409-12.         [ Links ]

8. Greenhalgh T, Howick J, Maskrey N, Evidence Based Medicine Renaissance Group. Evidence based medicine: a movement in crisis? BMJ. 2014;348:g3725.         [ Links ]

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11. European Medicines Agency. Concept paper on extrapolation of efficacy and safety in medicine development (Internet). London: EMA; 2013. Available from: http://www.ema.europa.eu/docs/en_GB/document_library/Scientific_guideline/2013/04/WC500142358.pdf         [ Links ]

12. Alderson P. Absence of evidence is not evidence of absence. BMJ. 2004;328(7438):476-7.         [ Links ]

13. Sedgwick P. Understanding why ‘absence of evidence is not evidence of absence’. BMJ. 2014;349:g4751.         [ Links ]

 

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