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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.31 no.3 Lisboa jun. 2015

 

CLUBE DE LEITURA

Multimorbilidade em cuidados de saúde primários: o que há de novo?

Multimorbidity in primary care: what is new?

Soraia Reis*, Sara Cardoso**

*Médica Interna de Medicina Geral e Familiar. Unidade de Saúde Familiar do Arco, ACES Lisboa Central

**Médica Interna de Medicina Geral e Familiar. Unidade de Saúde Familiar das Conchas, ACES Lisboa Norte


 

Wallace E, Salisbury C, Guthrie B, Lewis C, Fahey T, Smith SM. Managing patients with multimorbidity in primary care. BMJ. 2015;350:h176.

Introdução

A multimorbilidade, frequentemente definida como a presença de duas ou mais doenças crónicas,1 associa-se à diminuição da qualidade de vida, ao declínio funcional do indivíduo e a um aumento da utilização dos cuidados de saúde, acarretando vários desafios que podem parecer insuperáveis.

Métodos

Foi efetuada uma pesquisa na PUBMED e na Cochrane, usando os termos co-morbidity ou comorbidity ou multimorbid ou multimorbidity ou multi-morbidity (não existe termo MeSH para multimorbilidade). A pesquisa foi enriquecida com revisão dos artigos relevantes da Comunidade Internacional de Pesquisa em Multimorbilidade, sediada na Universidade de Sherbrooke (Canadá).

É comum?

A multimorbilidade é frequente, atingindo uma prevalência de 82% em idades superiores a 85 anos.2 Apesar de a sua prevalência aumentar substancialmente com a idade, em termos absolutos é mais prevalente em áreas socialmente desfavorecidas.2 As patologias mais frequentemente associadas são a osteoartrose e patologia cardiometabólica, nomeadamente a hipertensão, diabetes, obesidade ou doença cardíaca isquémica.3

Qual é o impacto da multimorbilidade?

As principais dificuldades na gestão da multimorbilidade relacionam-se com a desorganização e fragmentação dos cuidados, a inaplicabilidade das guidelines orientadas para doenças específicas, as dificuldades na aplicação dos cuidados centrados na pessoa e as barreiras no processo de partilha de decisão.4

Quais são os desafios da gestão das doenças crónicas na multimorbilidade?

a) Inadequação de guidelines desenhadas para doenças específicas

Atualmente as guidelines raramente abordam este tópico, sobretudo porque se baseiam em ensaios clínicos randomizados que excluem indivíduos idosos e com múltiplas doenças crónicas. Assim, embora cada recomendação seja racional e baseada em evidência, a soma das recomendações para determinada pessoa pode não o ser. Um caminho possível para a resolução desta lacuna seria a criação de guidelines para conjuntos de patologias mais frequentemente associadas. Contudo, dado o elevado número de combinações possíveis de doenças crónicas, este objetivo seria difícil de alcançar. Um adequado julgamento clínico torna-se essencial, permitindo estabelecer alvos realistas para cada indivíduo. Os decisores políticos, que baseiam os pagamentos em indicadores de cuidados centrados em alvos de doenças específicas, necessitam de estar conscientes de que o julgamento clínico individualizado é a melhor opção.

b) O objetivo deve ser a funcionalidade e não a doença

Os resultados de uma revisão sistemática da Cochrane,5 realizada com o objetivo de identificar intervenções para melhorar resultados na presença de multimorbilidade, foram inconclusivas, embora as estratégias dirigidas para fatores de risco partilhados por várias doenças crónicas ou para dificuldades funcionais tenham sido promissoras. Um dos estudos incluídos mostrou redução da mortalidade dois anos após intervenção de terapeutas ocupacionais e fisioterapeutas, sugerindo vantagens na abordagem multidisciplinar.6

c) Gestão das terapêuticas

A prevalência da polimedicação tem aumentado em consequência da alteração demográfica e do aumento da multimorbilidade. Uma das maiores dificuldades identificadas pelos médicos de família (MF) é a interrupção de medicação iniciada por outro médico especialista. Sem uma linha de comunicação clara, a decisão do custo-benefício da manutenção da prescrição pode não ser fácil. A revisão terapêutica deve ser frequente e existem instrumentos que podem ajudar na “deprescrição” como o STOPP-START (Screening Tool of Older Person’s Potentially Inappropriate Prescriptions-Screening Tool of Alert doctors to the Right Treatment)7 ou o PROMPT (PRescribing Optimally in Middle-aged People’s Treatments).8

Como melhorar a prestação e a continuidade de cuidados?

Os MF estão numa posição privilegiada para prestar cuidados de continuidade. A grande acessibilidade dos cuidados de saúde primários (CSP) permite revisões regulares e planeadas, úteis na organização do “caos” que o cuidado destes doentes com multimorbilidade pode significar. Outro aspeto essencial é a racionalização da referenciação aos cuidados de saúde secundários, priorizando aqueles que terão maior impacto no bem-estar do doente.9-10

Os doentes que demonstraram uma maior necessidade de cuidados apresentavam multimorbilidade “complexa” (três ou mais doenças crónicas afetando três ou mais sistemas), doença física e depressão, dez ou mais fármacos prescritos e/ou encontravam-se acamados e/ou residentes em lares.11-13

Quais as medidas que podem promover o cuidado centrado no paciente?

Na multimorbilidade é essencial perceber o que é mais importante para o doente. Fazer esta pergunta no início da consulta permite que o restante tempo seja utilizado de forma mais eficiente. O modelo dos três passos14 (explicar escolhas, detalhar as opções e aplicar as decisões) e o “princípio de Ariadne”15 (escolha de objetivos, através do estabelecimento de prioridades, que permitam a prestação de cuidados individualizados) são ferramentas que visam auxiliar o médico no processo de decisão clínica partilhada em situações de multimorbilidade e que tentam colocar o utente no centro dessa decisão.

O que é que pode ser atingido numa consulta de 10 minutos?

É difícil gerir todas as necessidades apresentadas numa consulta de 10 minutos e existe alguma evidência de que consultas mais longas permitem um maior ênfase nas atividades preventivas, menos prescrição e um maior índice de satisfação dos doentes.16 A nível internacional, os MF sublinham que a limitação de tempo é uma barreira à prestação de cuidados a utentes com multimorbilidade. Enfermeiros ou outros membros da equipa multidisciplinar podem ajudar a contribuir para a minimização desta limitação de tempo.

COMENTÁRIO

A publicação do conceito de multimorbilidade ocorreu, pela primeira vez, em 1976 na Alemanha, mas apenas na década de 90 se tornou internacionalmente reconhecido.17

A medicina geral e familiar (MGF) caracteriza-se pela prestação de cuidados longitudinais centrados no doente e pela gestão dos recursos de saúde, o que a torna numa das especialidades mais aptas para compreender e gerir a multimorbilidade.

Um dos temas que mais tem sido debatido é a inadequação da definição de multimorbilidade da Organização Mundial da Saúde (duas ou mais patologias crónicas) na prática da MGF. Em 2013, a European General Practice Research Network (EGPRN) publicou uma definição mais adaptada aos cuidados de saúde longitudinais: a multimorbilidade é definida como qualquer combinação de doença crónica com pelo menos outra doença (aguda ou crónica), fator biopsicossocial ou fator de risco somático.17 A rede de apoio social, a carga global de doença, o consumo de serviços de saúde e a capacidade de coping do doente podem também funcionar como modificadores do efeito da multimorbilidade. Por sua vez, a multimorbilidade pode modificar os resultados de saúde e levar a um aumento da incapacidade, a uma menor qualidade de vida ou a um maior grau de fragilidade do indivíduo.17 A nova definição permitirá que futuros estudos sejam mais homogéneos e os seus resultados mais robustos.

Os princípios de Ariadne são uma ferramenta útil à decisão clínica durante a consulta de CSP dos utentes com multimorbilidade,15 caracterizando-se fundamentalmente pela partilha de um plano realista entre médico e utente. A interação entre problemas e tratamentos levará à priorização de certos aspetos tendo em conta as preferências do utente com subsequente individualização das opções de tratamento.15 A ocorrência de um novo problema, a alteração da gravidade de patologias pré-existentes ou a modificação do contexto individual podem levar ao reinício do processo.15

Guidelines disease oriented não têm em consideração as interações entre as diferentes doenças,15 o que torna a consulta do doente com multimorbilidade mais exigente.15 Alguns autores defendem a aplicação de uma matriz de interações de uma doença crónica e patologias associadas, de modo a apoiar a avaliação e ponderação dos potenciais benefícios e riscos.19

Assim, a prescrição racional centrada no paciente, em oposição à centrada na doença com objetivos terapêuticos fixos, reveste-se de particular importância em utentes com multimorbilidade.20 Os incentivos financeiros atualmente existentes podem não facilitar a aplicação destes princípios, uma vez que dificilmente avaliarão a qualidade de comportamentos complexos.21

Apesar destas propostas, a base de evidência sobre multimorbilidade é relativamente escassa12,20 e não existem, até à data, orientações claras sobre como abordar a multimorbilidade.22

No entanto, o futuro parece promissor, aguardando-se pela publicação das guidelines do National Institute for Health and Care Excellence, acerca da multimorbilidade, previstas para setembro de 2016 e que incluirão já a nova definição da EGPRN.12

Atualmente decorre em Portugal um estudo que tem como objetivo identificar a prevalência e padrões de multimorbilidade nacionais, assim como a caracterização do conhecimento dos MF relativamente ao tema,18 o que poderá permitir obter uma visão desta questão mais adaptada à realidade portuguesa.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Conflitos de interesse

A autora Sara Cardoso declara ser editora da RPMGF, não tendo participado no processo editorial deste artigo.

Artigo escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.

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