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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.30 no.3 Lisboa maio 2014

 

CLUBE DE LEITURA

Aspirina: prevenção primária de doenças cardiovasculares e do cancro?

Aspirin: primary prevention of cardiovascular disease and cancer?

Ana Maia Marques*, Raquel Aires Pereira**

*Médica Interna de Medicina Geral e Familiar, USF Modivas, ACES Póvoa do Varzim/Vila do Conde

**Médica Interna de Medicina Geral e Familiar, USF Ponte Velha, ACES Santo Tirso/Trofa


 

Sutcliffe P, Connock M, Gurung T, Freeman K, Johnson S, Ngianga-Bakwin K, et al. Aspirin in primary prevention of cardiovascular disease and cancer: a systematic review of the balance of evidence from reviews of randomized trials. PLoS One. 2013;8(12):1-11.

Introdução

O cancro e as doenças cardiovasculares (DCV) apresentam um grande peso a nível mundial, nomeadamente em termos de morbilidade, mortalidade e custos. Como tal, as medidas de prevenção primária poderão ter um grande impacto. Diversos estudos têm sido publicados sobre o uso de aspirina na prevenção primária das doenças cardiovasculares e do cancro, especialmente o cancro colorretal, embora os mecanismos subjacentes a um potencial benefício não estejam claros. Por outro lado, o uso da aspirina poderá estar associado a efeitos secundários, como hemorragia e epigastralgias. Assim, pretende-se determinar os benefícios e riscos do uso da aspirina na prevenção primária das doenças cardiovasculares e do cancro.

Métodos

Foi realizada uma revisão sistemática que incluiu ensaios clínicos randomizados, meta-análises e revisões sistemáticas desde 2008 até setembro de 2012, com as palavras-chave aspirina e prevenção. Foram pesquisadas as bases de dados MEDLINE, Embase, Cochrane Database, CENTRAL, NHS-CRD, United Kingdom Clinical Research Network, plataformas científicas (Web of Science) e referências bibliográficas dos artigos selecionados e contactados especialistas na área. Os títulos e os resumos foram avaliados por dois revisores diferentes, com a leitura da totalidade do artigo e discussão de um terceiro revisor sempre que não existia consenso. Os artigos que foram excluídos pelo resumo foram revistos.

Os critérios de inclusão dos artigos consistiram numa população constituída por indivíduos com mais de 18 anos, sem doença cardiovascular ou cancro estabelecidos ou sintomáticos (ou presentes em < 20% dos participantes incluídos) e cuja intervenção foi a toma profilática de aspirina em qualquer dose (incluindo a administração em dias alternados) como prevenção primária das doenças cardiovasculares e do cancro, comparativamente ao placebo. Os resultados foram medidos através do efeito da aspirina no número de eventos, como incidência e mortalidade da doença cardiovascular ou cancro, bem como mortalidade por outras causas ou qualquer outro dano.

Resultados

Foram identificados 2.572 artigos relevantes, sendo que desses apenas 27 cumpriram os critérios de inclusão:

• 22 revisões sistemáticas e meta-análises referentes à prevenção primária de DCV (n = 9), de cancro (n = 6) e de DCV em doentes com diabetes (n = 7);

• Cinco ensaios clínicos aleatorizados não incluídos nas revisões sistemáticas previamente encontradas, relativos à prevenção primária de DCV (n = 3) e de DCV em doentes com diabetes (n = 2).

Os efeitos relativos benéficos encontrados na prevenção primária de DCV corresponderam a uma diminuição do risco em 6% para mortalidade por qualquer causa [risco relativo (RR): 0,94, intervalo de confiança (IC) 95%: 0,88 - 1,00] e 10% para mortalidade por eventos cardiovasculares (RR: 0,90, IC 95%: 0,85 - 0,96). Na prevenção de cancro, por sua vez, os benefícios surgiram cerca de cinco anos após o início do tratamento.

Os efeitos relativos prejudiciais estavam relacionados com um aumento entre 54 a 66% do risco de hemorragia major, de 37% do risco de hemorragia gastrointestinal e entre 32 a 37% de acidente vascular cerebral (AVC) hemorrágico.

Relativamente à prevenção primária de DCV em doentes com diabetes, os estudos em análise revelaram não existir melhoria, sendo que em alguns casos os intervalos de confiança indicavam a possibilidade de aumento do risco resultante da toma de aspirina.

Discussão

Os benefícios do uso da aspirina na prevenção primária de DCV são modestos, estatisticamente inconclusivos e de magnitude inferior aos observados para a prevenção secundária. Por outro lado, os riscos associados ao seu uso, em particular a ocorrência de hemorragia, ocorreram com elevada frequência, sendo as taxas estimadas baseadas em evidência mais forte.

As investigações apontam, por sua vez, para uma possível proteção primária contra diversos tipos de cancro (em especial do cólon) após uso continuado de aspirina por um período de cinco anos.

Como limitação foi apontada a inclusão de revisões sistemáticas nas quais não existia descrição do número de anos de seguimento, ainda que o número de eventos |adversos não tenha diferido substancialmente de outros estudos onde o número de anos de seguimento foi referido.

Conclui-se que seriam necessários novos estudos que investigassem o impacto de diferentes doses de aspirina, subgrupos populacionais específicos estratificados de acordo com instrumentos de avaliação do risco e a análise

custo-efetividade.

Conclusões

O benefício do uso regular da aspirina na prevenção primária de DCV é modesto, quando comparado com aumento do risco de desenvolvimento de hemorragia minor, major ou de AVC hemorrágico.

Relativamente à prevenção de cancro, novos estudos são necessários para clarificar a extensão do benefício do uso da aspirina na sua incidência e mortalidade.

COMENTÁRIO

Segundo os dados dos Censos de 2011, em Portugal verificou-se cerca de 30% de óbitos por doenças cardiovasculares e 25% por neoplasias.1 Assim, a elevada mortalidade associada a estas doenças conduziu a esforços crescentes para a sua diminuição.

As recomendações encontradas nos diversos estudos relativamente ao uso da aspirina na prevenção primária de doenças cardiovasculares e do cancro são contraditórias.2 Por um lado, argumentos teóricos de que a aspirina pode prevenir a propagação de trombos são contrapostos pelo risco do aumento e instabilidade da placa aterosclerótica, bem como de eventos hemorrágicos. Por outro lado, o eventual efeito benéfico antineoplásico permanece duvidoso.3

A American Heart Association recomenda o uso de aspirina apenas em indivíduos com risco cardiovascular alto (6 a 10%).4 A European Society of Cardiology defende que a aspirina não deverá ser usada na prevenção primária devido ao risco aumentado de hemorragia major.5

A United Service Preventive Task Force (USPTF) reforçou, em 2009, que a aspirina está recomendada na prevenção primária de DCV quando os benefícios ultrapassam os riscos. A USPTF encontrou boa evidência de que o uso de aspirina diminui o risco de enfarte agudo do miocárdio em homens entre os 45 e os 79 anos e de AVC isquémico em mulheres entre os 55 e os 79 anos, desde que tenham risco aumentado (Grau de Recomendação A).6 Quanto à prevenção primária do cancro, nomeadamente do colorretal, atualmente mantêm-se as recomendações da USPTF, de 2007, contra o seu benefício (Grau de Recomendação D).7

Assim, as autoras são da opinião de que não existe evidência do uso da aspirina na prevenção primária da DCV e do cancro.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Instituto Nacional de Estatística. Censos 2011: resultados definitivos - Portugal. Lisboa: INE; 2012 (cited 2014 Apr 1). Available from: http://censos.ine.pt/xportal/xmain?xpid=CENSOS&xpgid=censos2011_apresentacao. Portuguese         [ Links ]

2. Matthys F, Backer T, Backer G, Stichele RV. Review of guidelines on primary prevention of cardiovascular disease with aspirin: how much evidence is needed to turn a tanker? Eur J Prev Cardiol. 2014;21(3):354-65.         [ Links ]

3. Cleland J. Is aspirin useful in primary prevention? Eur Heart J. 2013;34(44):3412-8.         [ Links ] 

4. Goldstein LB, Bushnell CD, Adams RJ, Appel LJ, Braun LT, Chaturvedi S, et al. Guidelines for the primary prevention of stroke: a guideline for healthcare professionals from the American Heart Association/American Stroke Association. Stroke. 2011;42(2):517-84.         [ Links ]

5. Perk J, Backer GD, Gohke H, Graham I, Reiner Z, Verschuren WM, et al. European guidelines on cardiovascular disease prevention in clinical practice (version 2012): the Fifth Joint Task Force of the European Society of Cardiology and Other Societies on Cardiovascular Disease Prevention in Clinical Practice. Eur Heart J. 2012;33(13):1635-701.         [ Links ]

6. US Preventive Service Task Force. Routine aspirin use for the primary prevention of cancer. Ann Intern Med. 2007;146(5):361-4.         [ Links ]

7. US Preventive Service Task Force. Aspirin for the prevention of cardiovascular disease: U.S. Preventive Services Task Force recommendation statement. Ann Intern Med. 2009;150(6):396-404.         [ Links ]

 

Conflitos de interesse

As autoras declaram não ter conflito de interesses.

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