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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.29 no.3 Lisboa maio 2013

 

OPINIÃO E DEBATE

Atestados para carta de condução - visão crítica do Decreto-Lei n.º 138/2012

Medical certificates for drivers’ licenses: a critique of law No. 138/2012

Mónica Granja*

*Médica de família, Centro de Saúde de S. Mamede Infesta, Unidade Local de Saúde de Matosinhos

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

A legislação relativa ao exame médico a realizar aos candidatos à obtenção e renovação de carta de condução foi recentemente alterada pelo Decreto-Lei nº 138/2012, de 5 de Julho. Tem gerado controvérsia, porque ‘empurra’ para os médicos de família (MF) a emissão de um atestado com especificações não passíveis de ser realizadas num centro de saúde. Ao mesmo tempo, pacientes com problemas de saúde integralmente manejados pelos seus MF necessitam de pareceres de médicos de outras especialidades. Igualmente, a aptidão médica de condutores profissionais e de pessoas com deficiência é uma tarefa específica não contida no perfil funcional dos MF. Há ainda quem argumente que a aptidão para a condução não deve ser considerada uma necessidade de saúde incluída na carteira de serviços do Serviço Nacional de Saúde. Existe um potencial para conflito entre diferentes papéis a desempenhar pelo MF, nomeadamente o de autoridade sobre a aptidão médica para a condução e o de prestador de cuidados no contexto de uma relação médico-paciente personalizada, tal como é concebida em Medicina Geral e Familiar.

Propõe-se a revogação da nova legislação e a sua substituição por um texto que cumpra as directivas comunitárias sem excesso de zelo. Devem ser criados Centros de Avaliação Médica Psicológica. Nestes centros, as avaliações devem ser realizadas por médicos e outros técnicos com competência e treino adequados mas sempre desvinculados de qualquer relação terapêutica com os pacientes a avaliar.

Palavras-chave: Condução Automóvel; Acidentes de Trânsito; Veículos a Motor; Segurança; Medicina Geral e Familiar; Perfil Funcional do Médico.


 

ABSTRACT

Legislation on medical examinations for obtaining and renewing of drivers’ licenses was recently amended by law no. 138/July 5, 2012. It has generated controversy because it ’pushes‘ family physicians (FP) to issue certificates with specifications that they cannot achieve in a family practice. Patients with health problems managed by their FP will require opinions from other doctors. The evaluation of the fitness to drive of professional drivers and of people with disabilities is not a usual task for FP. Some argue that assessment of fitness to drive is not a health need and should not be covered by the National Health Service. There is a potential for conflict between the different roles played by FP namely between the authority to determine medical fitness to drive and the caregiver role in the context of a doctor-patient relationship.

Repeal of the law is proposed. The text should comply with European Community directives without being overzealous. Medical and Psychological Assessment Centers for drivers should be established. In these centers, physicians and other health professionals with necessary expertise and training can conduct driver evaluations uncomplicated by a therapeutic relationship.

Key-words: Automobile Driving; Accidents; Traffic; Motor Vehicles; Safety; General Practice; Roles, physician’s.


 

Entrou em vigor a 2/11/2012 uma nova legislação (Decreto-Lei n.º 138/2012, de 5 de Julho) relativa ao exame médico a realizar aos candidatos à obtenção e renovação de carta de condução.1 Das alterações introduzidas face à anterior legislação, salienta-se:

1. A emissão dos atestados médicos necessários passa a ser possível ser realizada por qualquer médico, seja para condutores de veículos ligeiros não profissionais (vulgo grupo 1), seja para condutores de pesados e profissionais (incluindo ambulâncias e transporte escolar, vulgo grupo 2), seja ainda para pessoas portadoras de deficiência ou limitação que requeiram adaptação do veículo;

2. A autoridade de saúde (médicos especialistas em Saúde Pública) dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS) deixa de ser responsável pela emissão de atestados destinados a condutores do grupo 2 ou com deficiência/necessidade de veículo adaptado;

3. Os itens do exame médico obrigatório, definidos, de acordo com o art.o 26.o, pela Direcção-Geral da Saúde, incluem dados do exame oftalmológico (por exemplo, medição do campo visual) passíveís de serem avaliados apenas por um oftalmologista ou optometrista (apesar de tal não ser explícito);

4. Pessoas com problemas de saúde frequentes que podem ser integralmente vigiadas pelo médico de família (MF), como hipertensão ou diabetes, passam a necessitar não só de exame médico global mas também de pareceres médicos de especialidades hospitalares (no exemplo, Cardiologia na hipertensão e Endocrinologia na diabetes).

Esta nova legislação tem gerado polémica, entre os MF2 e pacientes, mas também na Ordem dos Médicos3,4 e nos sindicatos da profissão.5-7 As questões levantadas prendem-se com:

1. O paradoxo de se ’empurrar‘2 para os MF (os únicos «médicos no exercício da sua profissão» a quem a maioria das pessoas pode recorrer) a emissão de um atestado legalmente sujeito a especificações tais que não são passíveis de ser realizadas num centro de saúde, ao mesmo tempo que pacientes com problemas de saúde integralmente manejados pelos seus MF necessitam de pareceres de médicos de outras especialidades;2,3,5

2. A aptidão médica de condutores profissionais e de pessoas com deficiência ou limitações, bem como a prescrição das cerca de 80 possíveis adaptações aos veículos, ser considerada uma tarefa específica não contida no perfil funcional dos MF (situação que, desde a publicação da nova legislação, e de acordo com o discutido em vários fora de MF, gera mais discórdia e recusas de emissão de atestados);

3. O potencial conflito entre diferentes papéis a desempenhar pelo MF: o de autoridade sobre a aptidão médica para a condução e o de prestador de cuidados no contexto de uma relação médico-paciente personalizada, tal como ela é concebida em Medicina Geral e Familiar (MGF).2,5

4. O argumento de que a aptidão para a condução não deve ser considerada uma necessidade de saúde incluída na carteira de serviços do Serviço Nacional de Saúde (SNS);2,5-7

O conflito entre o papel de médico de família e o de autoridade de saúde

Entre as características primordiais da especialidade de MGF e as competências dos MF, são inquestionáveis a prestação de cuidados centrados na pessoa que cada paciente é. Estes cuidados são altamente dependentes de um processo de consulta próprio e do estabelecimento de uma relação médico-paciente ao longo do tempo.8 Desta relação personalizada, em que um bom MF deve investir especiais aptidões de comunicação, sabe-se que é «terapêutica por si só».8

Por outro lado, é também assumido que o MF é responsável tanto pelo paciente individual como pela comunidade mais alargada (família incluída), assumindo-se que «ocasionalmente, tal gerará tensão, podendo levar a conflitos de interesse que terão de ser adequadamente abordados».8 Ora, com a presente legislação, esta tensão não será certamente ocasional mas tenderá a ser sistemática, pelo menos perante os pacientes mais vulneráveis (idosos e/ou doentes). Além disso, na ponderação e resolução destes conflitos, não pode deixar de ser tido em conta o «papel de advocacia pelo doente» também preconizado pela WONCA (The World Organization of National Colleges, Academies and Academic Associations of General Practitioners/Family Physicians) que, a este respeito, é clara «(…) [os MF] prestam cuidados a indivíduos no contexto familiar, comunitário e cultural dos mesmos, respeitando sempre a sua autonomia», acrescentando «ao negociarem os planos de acção com os seus pacientes, [os MF] integram factores físicos, psicológicos, sociais, culturais e existenciais, recorrendo ao conhecimento e à confiança resultantes dos contactos repetidos».8 Só dificilmente autonomia, conhecimento e confiança conviverão com autoridade, fiscalização, tensão e conflito repetido.

Ian McWhinney vai ainda mais longe nesta concepção do papel do MF: «O médico de família compromete-se com a pessoa e não com um conjunto de conhecimentos, grupo de doenças, ou técnica especial. (…) A primazia é dada à pessoa. O médico de família interessa-se pelos doentes de um modo que transcende a doença de que possam sofrer».9 Como pode o médico empático e terapêutico ser, simultaneamente, o que vigia e sanciona (com consequências potencialmente devastadoras para o paciente) a aptidão para a condução? Como, se se espera que este médico conheça não só a biologia (o valor da glicémia, das tensões arteriais e o calibre das coronárias) mas também a biografia do seu paciente (o medo que sentiu quando soube da diabetes, a falta de dinheiro para ir comprar os óculos ou os medicamentos necessários, a necessidade absoluta de guiar para continuar a trabalhar)?

A autoridade de saúde é «a entidade à qual compete a decisão de intervenção do Estado na defesa da saúde pública, na prevenção da doença e na promoção e protecção da saúde, bem como no controlo dos factores de risco e das situações susceptíveis de causarem ou acentuarem prejuízos graves à saúde dos cidadãos ou dos aglomerados populacionais».10 De acordo com esta definição, o controlo da aptidão médica para a condução, interferindo na segurança rodoviária em geral e na segurança das populações transportadas no caso dos condutores profissionais, caberia inteiramente nas suas competências.

Pode alegar-se que a aptidão médica para a condução é também uma matéria de saúde individual, o que, sendo verdade, leva a que se espere dos MF o mesmo tipo de actuação que os demais aspectos da saúde individual: avaliação, informação, aconselhamento e, eventualmente, prescrição, sempre no respeito pela autonomia do paciente, usando técnicas motivacionais e accionando medidas compulsivas (via autoridade de saúde) apenas em casos extremos de perigo para a saúde do próprio ou de terceiros. Além disso, como se verá adiante, na perspectiva da saúde individual, parar de conduzir pode traduzir-se em importantes prejuízos para os pacientes.

Alega-se também que o MF é quem melhor conhece o paciente. Tal, sendo possível para aqueles que têm um MF e o frequentam, não se verifica obrigatoriamente. Um bom conhecimento do paciente depende, entre outros, da existência de uma relação de grande confiança e esta pode perigar se o paciente tiver a percepção de que veicular determinada informação pode jogar a seu desfavor.

Existindo várias e ponderosas razões a favor de que a avaliação da aptidão para a condução possa ocorrer fora da relação MF-paciente e seja também da responsabilidade da autoridade de saúde, não é avançada nenhuma justificação para a retirada dessa responsabilidade aos médicos de Saúde Pública dos ACeS. No entanto, é sugestivo que quase ao mesmo tempo seja atribuída em exclusividade aos médicos de Saúde Pública a avaliação de incapacidade para isenção de taxas moderadoras. Já não colhem aqui os argumentos do foco na saúde individual (actualmente tantas vezes posta em causa por dificuldades em pagar as taxas moderadoras), nem os do melhor conhecimento que o MF tem dos pacientes, sugerindo que na origem desta distribuição de tarefas e competências dentro do SNS estão contingências várias e não estritas preocupações de saúde (individual e pública).

A dimensão do problema em perspectiva

A revalidação médica da aptidão para a condução (requerida no nosso país a intervalos cada vez mais curtos a partir dos 50 anos) põe questões diferentes das da avaliação inicial (geralmente a jovens saudáveis), pois a perda de aptidão é empiricamente mais provável à medida que a idade avança, sobretudo por doenças degenerativas afectando a visão, a audição, a locomoção e a cognição. Considerando quer a evolução demográfica, quer a evolução da proporção de portugueses com carta de condução, com a legislação em vigor os problemas com a aptidão médica para a condução invadirão a consulta.

Senão vejamos: o Instituto Nacional de Estatística prevê que até 2060 a proporção de pessoas com 65 ou mais anos quase duplique, atingindo os 32,3% (numa lista média de 1750 utentes, 525 estarão nesta faixa etária, contra os 324 que estavam em 2008).11 Simultaneamente, o número de cartas de condução emitidas em Portugal aumentou muito na segunda metade do passado século: da ordem dos 6.000 em 1950, para 120.000 em 1974 e para 260.000 em 1993 (ano em que mais títulos foram emitidos, caindo desde então e chegando aos 110.000 em 2009).12 Face a estes números, não é difícil prever que o aumento de emissão de cartas e, em particular, o boom dos anos 90, se reflectirá muito em breve nos centros de saúde numa proporção de utentes progressivamente maior a necessitar, com uma periodicidade cada vez mais curta, de exames médicos para a revalidação da sua carta.

As directivas europeias e as práticas de outros países

A nova legislação terá surgido para responder à necessidade de transposição nacional de directivas europeias sobre as cartas de condução,13,14 transposição essa, no entanto, levada a cabo por Portugal com manifesto excesso de zelo.3 Por exemplo, as directivas estipulam exames médicos obrigatórios apenas para condutores de veículos pesados (grupo 2), referindo que para os condutores de grupo 1 só será necessária uma avaliação médica «se, aquando do cumprimento das formalidades necessárias ou no decurso das provas que tenham de prestar antes de obter a carta, se notar que sofrem de uma ou mais das incapacidades mencionadas no presente anexo».13,14 No entanto, Portugal determinou que todo o candidato à obtenção ou renovação de carta para qualquer grupo necessita de uma avaliação médica.

Outro exemplo: segundo a directiva europeia, os condutores do grupo 1 com determinados problemas de saúde deveriam ser avaliadas por «autoridades médicas competentes» e/ou alvo de «parecer médico abalizado»,13,14 sendo que a transposição para Portugal decretou a necessidade de o médico que emite o atestado obter pareceres de outros médicos, de especialidades hospitalares diferentes para cada tipo de problema (por ex., de um cardiologista no caso de um paciente com hipertensão, de um endocrinologista no caso de diabetes, etc.).

A maioria dos países* (a excepção europeia é a Alemanha, assim como a não alinhada Suíça e os Estados Unidos) optou, como Portugal, por exigir uma avaliação médica também aos condutores do grupo 1, mas nos diversos países difere muito a operacionalização destes exames. Em quase todos existem requisitos médicos mínimos pré-definidos (as excepções são a Grécia, Israel e a Geórgia), sendo a responsabilidade pelo exame médico atribuída a qualquer médico (caso dos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e Malta), a centros de avaliação especializados (caso da Espanha e Brasil), exclusivamente a médicos de especialidade de Saúde Pública/Ocupacional (Itália e Croácia), exclusivamente a médicos de especialidades hospitalares pré-definidas (caso da Grécia, em que cada candidato é observado obrigatoriamente por dois médicos, um dos quais oftalmologista) ou exclusivamente por especialistas em MGF (caso da Dinamarca, Alemanha e Israel). Na Áustria os exames são levados a cabo exclusivamente por especialistas em MGF com formação específica para esta função. Apenas na Dinamarca, na Eslováquia e em Israel os especialistas de MGF são obrigados a emitir estes atestados, salientando-se que, pelo contrário, na Holanda, estes médicos são aconselhados pela associação que os representa a não fazerem os exames aos seus próprios pacientes. As idades a partir das quais uma avaliação médica é necessária e a respectiva periodicidade variam muito, mas na generalidade dos países a emissão destes atestados é alvo de pagamento diferenciado. No quadro 1 compara-se o modus operandi de alguns países relativamente à avaliação médica para a condução.

 


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Alguns artigos publicados sobre o tema

Em Portugal, os acidentes de viação são a primeira causa de morte em termos de anos de vida perdidos;15 no entanto, não foram encontrados estudos de investigação portugueses sobre os exames médicos de aptidão para a condução ou sobre questões relacionadas. É de salientar que, na década 1998-2007, 62,3% destas vítimas mortais seguiam como condutores dos veículos acidentados e eram maioritariamente (37,2%) jovens até aos 29 anos.16 Os idosos (de 65 e mais anos) pereceram sobretudo na condição de peões (43,1%), representando apenas 12,8% das vítimas enquanto condutores;16 no entanto, o único artigo português encontrado (de revisão clássica) é sobre o exame médico de aptidão para condução nesta faixa etária.17

Já na literatura científica internacional o tema está na ordem do dia em artigos de opinião publicados.18-25 É questionada a validade dos exames médicos, e dados alertas para o facto de se negligenciar a questão da mobilidade e as consequências negativas que o deixar de conduzir tem nos idosos.18,19,20 Argumenta-se quer contra a aptidão dos MF para a realização destes exames (por estarem em causa mais do que diagnósticos, a avaliação de aptidões motoras, viso-espaciais e cognitivas),20,21 quer a favor (por os MF estarem na posse do melhor conhecimento do paciente e da sua família e mais treinados no aconselhamento).22 É referida a tensão que estes exames exercem sobre a relação médico-paciente,20 e apontados os exames práticos de condução como o método mais fidedigno de avaliação desta aptidão.24,25

Uma revisão da Cochrane26 de 2009 sobre a eficácia da avaliação médica (e de testes em estrada) em pessoas com demência encontrou apenas estudos retrospectivos e concluiu pela ausência de evidência, salientando como preocupante o facto de a grande maioria dos estudos se focar apenas na segurança (redução dos acidentes de viação), ignorando a importante questão da mobilidade dos idosos. De facto, o que mostram os estudos que se focam na mobilidade é que após a proibição de conduzir ela se reduz,27 reduzindo-se também as actividades no exterior,28 o que se associa a depressão e deterioração da saúde em geral29 e (num estudo com controlo para factores de confundimento) a ingresso em lar.30 Ainda mais grave, um estudo dinamarquês que comparou os acidentes envolvendo idosos antes e após a instituição de um programa de rastreio cognitivo de aptidão, revelou que os acidentes de viação não diminuíram, mas aumentaram os acidentes com idosos como peões ou ciclistas.31

Por outro lado, um estudo revelou que os problemas médicos auto-reportados pelos candidatos (maioritariamente oftalmológicos e diabetes) se associaram a um risco aumentado de multas e acidentes, sendo este risco mais marcado para os problemas neurológicos e os ligados ao álcool,32 o que sugere validade dos inquéritos de auto-resposta como instrumentos de avaliação de aptidão para a condução.

No Canadá, um inquérito realizado em 2006 revelou que mais de 45% dos MF não se sentem confiantes na sua capacidade para avaliar aptidão para a condução dos seus pacientes, cerca de 75% sentem que fazê-lo afecta negativamente a relação com os pacientes, referindo 40% que esta avaliação demora entre 20 a 30 minutos a realizar. Este mesmo estudo revelou práticas de avaliação não uniformes, apesar da existência de orientações específicas (aliás desconhecidas pela maioria dos respondentes).33 Mesmo em regiões do Canadá onde os médicos são obrigados a reportar às autoridades quando um paciente apresenta determinados problemas de saúde pré-definidos, há evidência que sugere a ineficácia do sistema.34

A actual situação nos centros de saúde

Face à nova legislação, as actuações dos MF são muito variadas: alguns fazem vista grossa e passam atestados como antes, apenas de acordo com o bom senso clínico; uns cumprem-na à risca, entupindo consultas hospitalares com pedidos de pareceres, enquanto outros encaminham pacientes para a privada, por falta de resposta (assumida em alguns casos) dos hospitais de referência; muitos recusam-se a passar atestados para o grupo 2; alguns recusam-se a passar todo e qualquer atestado.

Muitos dos pacientes que precisam de um atestado têm dificuldade em compreender o que se passa. Alguns gastam o dinheiro, que lhes faz falta, em consultas privadas (os que têm subsistemas são os que melhor reagem), outros prescindem de cartas profissionais de que já não precisam, alguns (dizem-nos à boca cheia) compram atestados sem necessidade de consulta. E muitos, alguns dos quais certamente em desespero, reclamam.

Foi na sequência de uma reclamação que, ainda anteriormente à nova legislação (em Janeiro de 2012), um parecer da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), preconizou «a adopção urgente de todas as medidas necessárias a garantir uma actuação unívoca e uniforme de todos os profissionais de saúde (em especial dos médicos de família)» a exercer no SNS no que se refere à obrigação de emissão de atestados médicos para obtenção ou renovação de cartas de condução.35 A Administração Regional de Saúde (ARS) do Norte acatou este parecer da ERS publicando seguidamente uma circular informando «da obrigação de emissão de atestados médicos pelos profissionais médicos a exercer funções nas unidades de cuidados primários integrados no Serviço Nacional de Saúde».36 Essa circular informativa, saída à luz do já revogado Decreto-Lei n.o 313/2009,37 referia, inclusive, que tal obrigação existiria apenas «enquanto não forem criados os Centros de Avaliação Médica Psicológica».

Revogada essa legislação e gorada a expectativa de criação dos referidos centros, ainda não surgiram novas orientações. É essencial determinar claramente até que ponto o SNS considera obrigação dos seus serviços assegurar a emissão dos atestados em causa. É importante explicitar a quem podem os MF referenciar em caso de dúvida sobre a aptidão dos pacientes ou sobre eventuais restrições a impor-lhes ou em caso de ameaça à relação médico-paciente. É necessário saber se os colegas hospitalares são obrigados a emitir os pareceres necessários e se os psicólogos do ACeS são obrigados a realizar os necessários testes psicotécnicos (ou se, pelo contrário, seria aceitável que as considerações da ERS se pudessem aplicar apenas a MF).

Conclusão

Pessoalmente, como MF e face à nova legislação, recuso a emissão de quaisquer atestados para obtenção e renovação da carta de condução dos meus pacientes, porque: i) já não posso, como podia até 31/10/2012, referenciar à autoridade de saúde em caso de dúvida ou de potencial interferência na relação médico-paciente; ii) passam a ser, também, minha responsabilidade as cartas de condução de profissionais, as quais têm repercussões na saúde pública e perante as quais um parecer negativo tem consequências dramáticas para o paciente e sua família; iii) em caso de incapacidade parcial para a condução, passa também a ser minha responsabilidade a prescrição de restrições e de adaptações dos veículos (de entre cerca de 80 possíveis), muito específicas e que extravasam claramente as minhas competências; iv) é exigido um exame oftalmológico que não tenho competência técnica nem material para realizar; v) a um grande número de pessoas da minha lista afectadas por condições de saúde que são por mim tratadas e vigiadas, é exigido um parecer de médicos de especialidades cujas consultas essas pessoas não frequentam.

Os problemas criados pela presente legislação recomendam, em primeiro lugar, a sua revogação e substituição por um texto que cumpra as directivas comunitárias, sem excesso de zelo, considerando a escassa evidência científica disponível e o problema particular da mobilidade dos idosos. Em segundo lugar, é urgente a criação dos Centros de Avaliação Médica Psicológica ou dos seus análogos. Se se entender ser essa uma missão do SNS, estes centros devem ser criados em cada ARS ou em cada ACeS (tal como organizam, por exemplo, consultas do viajante) e as avaliações devem ser realizadas por médicos e outros técnicos com competência e treino para as necessárias avaliações (incluindo oftalmológica/optométrica, audiométrica, psicométrica) e prescrições (de restrições e adaptações em veículos) mas sempre desvinculados de qualquer relação terapêutica com os pacientes a avaliar.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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35. Entidade Reguladora da Saúde. Processo de Inquérito n.o ERS/056/11. Disponível em: http://www.ers.pt/uploads/writer_file/document/407/ERS_056_11.pdf (acedido em 25/03/2013).         [ Links ]

36. Ministério da Saúde. Administração Regional de Saúde do Norte. Circular informativa n.o 1/2012. Obrigação de emissão de atestados para fins de obtenção ou renovação de cartas de condução. Porto 05/01/2012. Disponível em: http://portal.arsnorte.min-saude.pt/portal/page/portal/ARSNorte/Documentos/Circulares%20da%20ARSNorte/Circulares%20Informativas%202012/Circular%20Informativa%201_2012.pdf (acedido em 25/03/2013).         [ Links ]

37. Decreto-Lei n.º 313/2009, de 27 de Outubro. «Diário da República – 1.ª Série. p. 8063-80.

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Mónica Granja

R. Godinho de Faria, 731

4465-156 S. Mamede Infesta

monica.granja@ulsm.min-saude.pt

 

AGRADECIMENTOS

Ao Luís Filipe Gomes, até ao início de 2013 representante de Portugal no conselho do EURACT (European Academy of Teachers in General Practice and Family Medicine), pela articulação com os restantes responsáveis europeus na recolha da informação sobre as práticas nos diferentes países.

CONFLITOS DE INTERESSE

A autora é médica de família numa unidade de cuidados de saúde personalizados, não faz medicina privada e não emite atestados médicos relativos a cartas de condução desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 138/2012.

A autora é editora da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar e não participou no processo editorial deste artigo.

 

Recebido em 01/04/2013

Aceite para publicação em 17/06/2013

 

*Os dados relativamente às práticas de outros países foram obtidos por contacto directo com médicos de família locais (membros do European Academy of Teachers in General Practice and Family Medicine - EURACT), no caso dos europeus, e da WONCA ou autores de artigos publicados, nos restantes).

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