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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.29 no.1 Lisboa jan. 2013

 

ARTIGOS BREVES

Doença mão-pé-boca no adulto - a propósito de um caso clínico

Hand, food and mouth disease in the adult - case report

Ana Dantas,*† Maria João Oliveira,*†† Olena Lourenço,*†† Paulo Baptista Coelho*†

*Interna/o do Internato de Medicina Geral e Familiar

† USF Tílias, ACES Lisboa Norte

†† UCSP Sete Rios, ACES Lisboa Norte

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

Introdução: A doença mão-pé-boca (DMPB) é a segunda infeção viral mais frequente (logo a seguir às infeções respiratórias comuns) e é causada pelo grupo dos enterovírus, incluindo o vírus Coxsackie A e o Enterovirus 71. É mais comum nas crianças entre os três e os dez anos de idade, sendo rara nos adultos. A maioria dos casos é autolimitada mas podem surgir complicações cardíacas e neurológicas potencialmente fatais.

Descrição do caso: Relata-se o caso de um homem de 35 anos de idade que recorreu à consulta do seu médico de família por queixas de febre, dor, parestesias nas extremidades das mãos e pés, odinofagia e lesões ulceradas na cavidade oral que não melhoraram após vários ciclos de antibioterapia. Por forte suspeita de um quadro viral, foram solicitados exames complementares de diagnóstico que confirmaram a DMPB e permitiram uma abordagem terapêutica adequada e a vigilância das possíveis complicações.

Comentário: Sendo a DMPB uma doença rara na idade adulta, mesmo as manifestações clínicas típicas, por serem inespecíficas numa primeira fase, podem induzir ao diagnóstico errado. Uma forte suspeita clínica pode garantir uma abordagem e vigilância corretas.

Palavras-chave/Keywords (terminologia DeCS): Doença mão-pé-boca; Enterovirus; Coxsackievirus.


 

ABSTRACT

Introduction: Hand, food and mouth disease (HFMD) is a common infection caused by the Enteroviruses group, including Coxsackievirus A and Enterovirus 71. It usually affects children between the ages of three and ten years old and is rare in adults. In most cases it is self-limited but cardiac and neurological complications or even death may ensue.

Case Report: We report the case of a 35 year old man who went to his general practitioner with complaints of fever, pain, paresthesias of the hands and feet, odynophagia, and ulcerated lesions in the oral cavity that did not improve with antibiotic treatment. Suspecting a viral disease, the physician ordered tests that confirmed the diagnosis of HFMD, allowing for appropriate management and follow-up.

Comment: HMFD is rare in adults and even typical manifestations can be misdiagnosed. Maintaining a strong clinical suspicion can ensure correct management and follow-up.

Termos MeSH/MeSH terms: Hand, foot and mouth disease, Enterovirus, Coxsackievirus.


 

Introdução

A doença mão-pé-boca (DMPB) é a segunda infeção viral mais frequente (sendo apenas precedida pelas infeções respiratórias comuns) e é causada pelo grupo dos enterovírus, incluindo o vírus Coxsackie A e o Enterovirus 71.1,3 O quadro clínico carateriza-se pelo aparecimento de máculas na mucosa oral que evoluem para vesículas rodeadas por um halo eritematoso. As lesões cutâneas são papulo-vesiculares e ocorrem nas extremidades distais dos membros. Pode ocorrer febre durante 24 a 48 horas. O diagnóstico diferencial inclui herpangina, estomatite aftosa, varicela, sífilis secundária, sarampo e outras doenças exantemáticas,3,5 pelo que uma forte suspeita clínica é essencial para um diagnóstico precoce. O tratamento baseia-se na administração de analgésicos, hidratação oral e vigilância dos sinais e sintomas de possíveis complicações.2-4

Relata-se um caso clínico de DMPB no adulto cujas manifestações clínicas, por serem inespecíficas numa fase inicial, levaram a uma abordagem dispersa e confusa.

Descrição do caso: NM, sexo masculino, 35 anos, casado, técnico de ambiente, natural e residente em Lisboa. Encontrava-se na fase III do ciclo de vida familiar de Duvall e na classe II da classificação social de Graffar. Entre os problemas de saúde, destacava-se a hipertensão arterial, com 3 anos de evolução, medicada e controlada com nifedipina 30 mg (1id). O seu plano nacional de vacinação estava atualizado e não havia história de viagens recentes nem contacto com doenças potencialmente contagiosas. O utente negava também existência de risco de doença profissional biológica.

Em março de 2011, NM iniciou um quadro de pequenas úlceras dolorosas na cavidade oral (Figura 1), mialgias e temperatura sub-febril (≤38ºC) que cedia aos antipiréticos. Por dor na cavidade oral e odinofagia e mialgias refratárias ao paracetamol, o doente solicitou uma consulta no domicílio a uma empresa particular de prestação de serviços médicos. Foi-lhe diagnosticada uma faringite aguda e prescrita azitromicina 500 mg durante 3 dias, associação de paracetamol 500 mg com tiocolquicosido 2 mg e nimesulida 100 mg em SOS. Não havendo história de alergia à penicilina, a razão pela qual foi prescrita a azitromicina é desconhecida, assim como os critérios diagnósticos de uma faringite na primeira abordagem deste utente.

 

 

Por manutenção das queixas, agravamento significativo da odinofagia, aparecimento de sensação de «feridas na garganta» (sic), dor nas extremidades das mãos e dos pés, que o doente descrevia como «sensação de vidro espetado» (sic), recorreu ao seu médico de família oito dias após o início do quadro. Do exame objetivo salientava-se: mau estado geral, temperatura axilar de 38º C com antipirético, hiperemia conjuntival bilateral, múltiplas lesões ulcerosas na cavidade oral, adenopatias cervicais (volumosas, moles, dolorosas à palpação e não aderentes aos planos profundos), múltiplas máculas nas mãos e nos pés (Figura 2), parestesias e alodinia nas extremidades. Sem outras alterações do foro neurológico, respiratório ou cárdio-vascular.

 

 

Tendo em conta o tempo de evolução da doença e o estado debilitado do doente, requisitou-se estudo analítico [hemograma, proteína C reactiva (PCR), velocidade de sedimentação (VS), Veneral Disease Research Laboratory (VDRL), serologias virais (anti- Vírus Ebstein-Barr, Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) 1 e 2)], eletrocardiograma e radiografia do tórax postero-anterior. O doente foi aconselhado a reduzir os contactos com os coabitantes e a lavar as mãos com frequência. O plano terapêutico consistiu em repouso, hidratação oral, medicação sintomática com paracetamol 1 g (3id) e vigilância dos sintomas até à consulta programada para a semana seguinte.

Devido à impossibilidade de se alimentar, por odinofagia intensa e aumento do volume das adenopatias cervicais, dois dias depois da consulta do médico de família o doente recorreu a uma consulta particular de Otorrinolaringologia, tendo sido excluída patologia deste foro (abcesso periamigdalino) e reforçada a suspeita de doença viral, nomeadamente DMPB. O doente foi encaminhado para o seu médico de família com alteração da terapêutica analgésica para metamizol magnésio 575 mg (2id) e indicação de repouso e hidratação oral. Foram, então, acrescentadas ao estudo analítico as serologias para o Coxsackie e Enterovirus humano.

Com resultados de análises (hemograma com fórmula leucocitária, PCR 8,0 mg/dl, VS 24 mm), electrocardiograma e radiografia do tórax sem alterações e ainda aguardando o resultado das serologias, o doente recorreu ao serviço de urgência hospitalar cinco semanas após o início do quadro clínico. Por persistência das queixas, progressivamente mais exuberantes, foi medicado, sem o efeito terapêutico desejado, com ciprofloxacina 500 mg 2id durante 10 dias, não havendo qualquer sustentação científica para a escolha deste antibiótico.

A remissão das queixas álgicas coincidiu com o início da descamação da pele nas extremidades das mãos e dos pés (Figura 3 e 4), sete semanas após o início do quadro. O resultado das serologias revelou infeção recente pelo vírus Coksackie A9 e Enterovirus 71 humano (IgG e IgM aumentadas).

 

 

 

 

Na consulta de vigilância, oito semanas após o início do quadro, o doente referiu cansaço fácil, sensação de «falta de ar» (sic) e toracalgia com irradiação para o dorso com dois dias de evolução, o que levou a colocar a hipótese diagnóstica de pericardite. O eletrocardiograma, efetuado no centro de saúde, apresentava bradicardia sinusal, ondas T invertidas em DII, DIII e AVF, o que reforçou a suspeita e justificou a referenciação ao serviço de urgência hospitalar, onde foi efetuado o diagnóstico de miopericardite viral.

Após nove dias de internamento, o doente teve alta, assintomático, e foi encaminhado para o seu médico de família.

Comentário: Na maioria dos casos de DMPB as crianças são as mais atingidas e as manifestações clínicas são típicas: febre, erupção cutânea nas palmas das mãos e planta dos pés, com ou sem presença de vesículas na cavidade oral. Normalmente a infeção é auto-limitada mas podem surgir complicações cardíacas (miocardiopatia, pericardite) e neurológicas (meningite viral, encefalite), potencialmente fatais.

O problema mais comum na DMPB é a desidratação secundária a odinofagia intensa causada por úlceras orais dolorosas, pelo que deve ser realizada administração de analgésicos para alívio das queixas e reforçada a necessidade da hidratação oral (preferencialmente a ingestão de líquidos frios que são analgésicos).

Perante um quadro clínico de uma doença exantemática com febre prolongada num doente jovem, foi feito estudo analítico excluindo a infeção por HIV, sífilis e Vírus Epstein-Barr. Devido ao hemograma com fórmula leucocitária normal, a possibilidade das queixas serem causadas por uma infeção bacteriana ou febre neutropénica era muito reduzida.

No caso apresentado as primeiras manifestações clínicas, embora típicas de uma doença viral, foram interpretadas como uma infeção bacteriana, o que levou a terapêuticas inapropriadas e até prejudiciais para o doente. Apenas uma forte suspeita clínica e a vigilância da evolução da doença podem garantir uma abordagem correta desta patologia. O médico de família encontra-se numa posição privilegiada para assumir esta vigilância.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. World Health Organization. A Guide to Clinical Management and Public Health Response for Hand, Food and Mouth Disease (HFMD). Geneva: WHO; 2011.         [ Links ]

2. Habif TP. Exhantems and drug eruptions. In Habif TP, ed. Clinical Dermatology. 5th ed. St. Louis, MO: Mosby Elsevier; 2009. chap 14.         [ Links ]

3. Abzug MJ. Nonpolio enteroviruses. In: Kliegman RM, Stanton BF, St. Geme III JW, Schor NN,Behrman RE, eds. Nelson Textbook of Pediatrics. 19th ed. Philadelphia, PA: Saunders Elsevier; 2011. chap 242.         [ Links ]

4. Solomon T, Lewthwaite P, Perera D, Cardosa MJ, McMinn P, Ooi MH. Virology, epidemiology, pathogenesis and control of enterovirus 71. Lancet Infect Dis 2010 Nov; 10 (11): 778-90.         [ Links ]

5. Suzuki Y, Taya K, Nakashima K, Ohyama T, Kobayashi JM, Ohkusa Y, et al. Risk factors for severe hand, food and mouth disease. Pediatr Int 2010 Apr; 52 (2): 203-7.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Olena Lourenço

Rua de Santo Estevão nº1, 2580-285 Alenquer

olenalourenco@gmail.com

 

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir qualquer tipo de conflitos de interesse.

 

Recebido em 04/06/2012

Aceite para publicação em 17/02/2013

 

Artigo escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.

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