SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28 número3A empatia na intersubjectividade da relação clínicaIngestão de sal na hipertensão arterial: quem e quanto deve reduzir? índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.28 no.3 Lisboa maio 2012

 

CLUBE DE LEITURA

Morte súbita cardíaca em crianças assintomáticas: qual o papel do electrocardiograma?

Ana Carolina Cruz*; Lisa Amaro**

*Médica Interna de Medicina Geral e Familiar, Centro de Saúde Dr. Arnaldo Sampaio – ACES Pinhal Litoral II

**Médica Interna de Medicina Geral e Familiar, Centro de Saúde Dr. Arnaldo Sampaio – ACES Pinhal Litoral II

 


Rodday AM, Triedman JK, Alexander ME, Cohen JT, Stanley IP, Newburger JW, et al. Electrocardiogram screening for disorders that cause sudden cardiac death in assymptomatic children: a meta-analysis. Pediatrics. 2012;129(4): e999-e1010.

Introdução

A morte súbita cardíaca (MSC) em idade pediátrica tem uma incidência anual de 0,8-6,2 por 100.000 crianças assintomáticas. Embora seja rara, trata-se de um evento trágico, com consequências devastadoras e de grande preocupação pública. O Japão é o único país que realizou um rastreio em massa dirigido a crianças em idade escolar. Outros países defendem o rastreio dirigido a subgrupos específicos, nomeadamente a crianças com diagnóstico de perturbação de hiperactividade e défice de atenção, antes de iniciar medicação, ou praticantes de desporto.

Inúmeras doenças raras podem causar MSC em crianças mas nem todas apresentam alterações no electrocardiograma (ECG). As patologias mais frequentes detectáveis por ECG são a Cardiomiopatia Hipertrófica (CMH), o Síndrome do QT longo (SQTL) e o Síndrome de Wolff-Parkinson-Whitte (WPW). Na verdade, sabe-se que as taxas de prevalência estimadas destas patologias em crianças saudáveis e assintomáticas são baixas e, além disso, o valor do ECG como teste de rastreio não está ainda bem estabelecido.

Os autores deste artigo realizaram uma revisão sistemática e meta-análise da literatura destas três patologias que causam MSC, com dois objectivos principais. O primeiro foi sistematizar a frequência com que o exame electrocardiográfico ou o ecocardiograma (expressão/prevalência fenotípica) sugerem CMH, SQTL ou WPW em crianças assintomáticas, não diagnosticadas, que pudessem vir a ser identificadas por rastreio em massa. Os autores focalizaram-se na prevalência fenotípica em vez da prevalência genética, porque os testes genéticos no âmbito de programas de rastreio são impraticáveis e de utilização limitada como diagnóstico ou estratificação de risco. O segundo objectivo foi analisar a sensibilidade e especificidade do ECG, isolado ou associado ao ecocardiograma, e determinar os valores preditivos.

Métodos

Foi realizada uma pesquisa de artigos na Medline, publicados entre 1950 e Dezembro de 2010, sobre CMH, SQTL e WPW. Seis revisores independentes analisaram os artigos relevantes.

Para responder ao primeiro objectivo, os autores incluíram estudos transversais e de coorte. Foram excluídos estudos cuja média de idades dos indivíduos fosse superior a 2 desvios-padrão de 25 anos, subgrupos seleccionados, estudos com amostras de conveniência não representativas ou que abordassem a frequência das variações genéticas para cada doença. Para o segundo objectivo, os autores incluíram estudos que abordassem os valores de sensibilidade e especificidade do ECG.

A taxa de prevalência fenotípica (por 100.000) e o intervalo de confiança (IC) a 95% para a CMH, SQTL e WPW foram calculados pela distribuição binominal. Para avaliar até que ponto a variação dos resultados obtidos podiam resultar do acaso, os autores usaram a Cochran Q de modo a determinar a heterogeneidade e quantificar a sua magnitude em termos de I2 (0 e 100%). A heterogeneidade foi considerada significativa para valores de I2>75%.

Resultados

De 6.954 artigos encontrados foi avaliado o texto completo de 396. Destes, foram seleccionados trinta: oito estudos de prevalência, dois de análise da sensibilidade e prevalência, dezanove de sensibilidade e especificidade e um simultaneamente de sensibilidade, especificidade e também de prevalência.

A população dos onze estudos de prevalência fenotípica variou entre a população geral e subgrupos de atletas universitários e recrutas militares (amostras de 1.369 a 1.336.377 indivíduos). A população dos vinte estudos que incidiram sobre a sensibilidade e a especificidade incluiu grupos de indivíduos afectados com estas patologias e os seus familiares (amostras de 23 a 2.770 indivíduos).

A prevalência fenotípica de CMH, baseada em sete estudos, variou de 0 a 170/100.000, com uma taxa resumida de prevalência fenotípica de 45/100.000 (IC 95%: 10-79) e uma variação significativa entre os estudos (I2=91%, P<0,001).

Relativamente ao SQTL (três estudos), as taxas de prevalência fenotípica variaram entre 1 a 12/100.000, com uma taxa resumida de 7/100.000 (IC 95%: 0-14), com significativa heterogeneidade (I2=93%, P<0,001).

As taxas de prevalência fenotípica da patologia WPW, baseada em três estudos, oscilaram entre 68 e 222/100.000 (IC 95%: 55-218), com uma taxa resumida de 136/100.000 (I2=95%, P<0,001).

O valor preditivo negativo (VPN) do ECG, tanto para CMH como para o SQTL, foi elevado. Contudo, o valor preditivo positivo (VPP) variou com os diferentes valores estabelecidos de sensibilidade e especificidade e da verdadeira prevalência das patologias.

Discussão

Verificou-se que as prevalências fenotípicas estimadas apresentaram grande variação entre os estudos e foram inferiores às de outros estudos da bibliografia. Estes achados ajudam a definir limites à utilização teórica do ECG e/ou Ecocardiograma como exame de rastreio de MSC. Contrariamente aos programas de rastreio habituais, que valorizam incluir os indivíduos que podem vir a ter patologia (sensibilidade), verificou-se que, quando a prevalência fenotípica é reduzida, dar prioridade à especificidade sobre a sensibilidade pode melhorar o VPP sem afectar o VPN.

Os autores realizaram outros cálculos para perceber como estas estimativas se poderiam adequar ao rastreio populacional baseado no ECG. A prevalência combinada estimada da CMH, SQTL e WPW desta meta-análise foi 188/100.000. Quando optimizaram a precisão, o VPN atingiu os 100%, indicando uma falsa taxa de certeza. Contudo, o VPP do ECG para rastrear uma destas três doenças foi de 1%, o que significa que 99% das crianças com um ECG positivo não teriam nenhuma das doenças. Contrariamente, quando optimizaram a especificidade, o VPN ainda se aproximou de 100% mas o VPP foi 41%.

Embora estes resultados sugiram que o ECG possa ser utilizado para rastreio em massa, sob um ponto de vista estatístico e de acordo com os critérios da U.S. Preventive Services Task Force, não permitem avaliar outros componentes dos programas de rastreio (mortalidade, morbilidade, custos, qualidade de vida e avaliação do desempenho).

Devido à prevalência fenotípica muito baixa e à imprecisão inerente a quase todos os exames médicos (incluindo os cardiologistas pediátricos que relatam o ECG), o rastreio de doenças raras leva a muitos falsos positivos. Estes conduzem a avaliações diagnósticas adicionais, que por sua vez resultam em terapêuticas e restrição de actividade física desnecessárias e, além disso, podem desencadear ansiedade nas crianças e nos pais. As famílias devem ter consciência de que um ECG negativo não exclui o risco de MSC e que outras doenças cardíacas raras a podem causar.

Este estudo tem várias limitações, nomeadamente: a pesquisa foi limitada à literatura da Medline; as estimativas podem reflectir viés de publicação; os estudos são bastante heterogéneos; os cálculos elaborados não tiveram em consideração a história clínica e o exame físico; os autores basearam-se apenas na prevalência fenotípica e focalizaram-se apenas nas três patologias descritas.

Conclusão

Atendendo à baixa prevalência fenotípica e à variação na taxa de falsos positivos, são necessários estudos adicionais de custo-efectividade para determinar se os programas de rastreio de MSC em crianças assintomáticas devem ser instituídos como medida de saúde pública.

Comentário

A MSC em crianças é uma situação rara, de muito mau prognóstico e com um impacto social significativo. A sobrevivência a uma paragem cardíaca situa-se entre os 8 e 9% e cerca de metade dessas crianças podem ficar com graves sequelas neurológicas.1 O diagnóstico precoce em indivíduos sintomáticos, familiares ou por rastreio pode reduzir o impacto desta situação. O rastreio universal da população pediátrica levanta muitas questões nomeadamente a reduzida fiabilidade da clínica e a escolha do método ideal de rastreio, uma vez que um ECG ou ecocardiograma normais não excluem determinadas patologias responsáveis por MSC.2

De acordo com recomendações do Colégio Americano e da Sociedade Europeia de Cardiologia, baseadas em consensos entre Especialistas, devem ser estudados todos os doentes sintomáticos, os atletas de alta competição e todos os indivíduos com antecedentes familiares de MSC (primeiro grau). Nestes casos, recomenda-se a realização de um ECG e, se este apresentar alterações, deve-se efectuar um ecocardiograma. Os familiares de doentes com história de CMH ou morte súbita em idade jovem devem manter uma vigilância anual até aos 21 anos e de cinco em cinco anos a partir dessa idade a menos que o estudo genético permita excluir a mutação responsável.3

Esta meta-análise fornece uma base de evidência para avaliação de programas de rastreio pediátricos destas patologias. Constitui também um ponto de partida para outros estudos desse âmbito.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Tavares A, Trigo C, Estrada J. Paragem cardíaca em idade pediátrica. Acta Med Port 2008 Jul-Ago; 21 (4): 383-6.         [ Links ]

2. Sen-Chowdhry S, McKenna WJ. Sudden cardiac death in the young: a strategy for prevention by targeted evaluation. Cardiology 2006; 105 (4): 196-206.         [ Links ]

3. Maron BJ, McKenna WJ, Danielson GK, Kappenberger LJ, Kuhn HJ, Seidman CE, et al. American College of Cardiology/European Society of Cardiology clinical expert consensus document on hypertrophic cardiomyopathy. A report of the American College of Cardiology Foundation Task Force on Clinical Expert Consensus Documents and the European Society of Cardiology Committee for Practice Guidelines. J Am Coll Cardiol 2003 Nov 5; 42 (9): 1687-713.         [ Links ]  

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons