SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28 número3Projecto «Terapêutica por infiltração local com corticosteróides nas doenças reumáticas periarticulares na USF Marginal»: da ideia à acçãoA empatia na intersubjectividade da relação clínica índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.28 no.3 Lisboa maio 2012

 

FORMAÇÃO

A comunicação na consulta: Uma proposta prática para o seu aperfeiçoamento contínuo

Doctor-patient communication: A proposal for continuous improvement in clinical practice

Eunice Carrapiço,* Vítor Ramos**

*Interna de Medicina Geral e Familiar da USF Marginal (ACES de Cascais)

**Médico de família, orientador de formação do internato de MGF na USF Marginal (ACES de Cascais), professor convidado da Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade Nova de Lisboa

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

Introdução: As competências de comunicação interpessoal são basilares em toda a prática clínica, em especial nas especialidades intensamente relacionais, como é o caso da Medicina Geral e Familiar. O treino estruturado destas competências deve integrar a formação médica, em especial durante o internato da especialidade.

Objectivo: Delinear e testar, na prática, um modelo de análise e de treino de competências de comunicação na consulta, baseado em componentes comportamentais.

Processo: Os autores seguiram um ciclo observacional reflexivo, reiterado em 2009 e 2010, que combinou a prática reflexiva e crítica, o estudo bibliográfico e a discussão inter-pares dos actos de comunicação nas consultas, por vezes com videogravação. Para fins didácticos procuraram distinguir e isolar o processo comunicacional dos aspectos relacionais e das fases, passos e conteúdo da consulta.

Modelo proposto: O exercício prático realizado permitiu identificar 55 atitudes e comportamentos susceptíveis de serem analisados e treinados. Estes componentes foram agrupados em 12 artes comunicacionais. Destas, os autores destacam como centrais: «ouvir»; «perguntar»; «imaginar-se no lugar do outro»; e «confirmar e reformular». Em seu redor figuram: «começar»; «olhar/ver»; «conduzir a comunicação»; «sintonizar»; «explicar»; «resumir»; «atingir acordos»; e «concluir».

Conclusão: O processo de comunicação é mais do que a soma dos componentes considerados. Porém, o modelo delineado e testado na prática revelou-se útil para o desenvolvimento de competências de comunicação e permite a construção de exercícios práticos de autoavaliação ou recorrendo a um observador externo, incluindo o recurso à videogravação. Embora este modelo tenha sido delineado num contexto de formação durante o internato da especialidade, os autores consideram que ele pode ser útil para o desenvolvimento profissional contínuo de qualquer médico de família. Sublinham também que, antes da componente técnica, tudo começa com a preocupação com o doente e com o interesse e a motivação do médico para comunicar bem.

Palavras-chave: Comunicação; Consulta; Medicina Geral e Familiar; Relação Médico-Doente.


ABSTRACT

Introduction: Interpersonal communication skills are fundamental to all clinical practice, but this is especially true in relationship-based disciplines such as family medicine. Training in communication skills is an integral part of medical education especially during specialty training.

Objectives: To develop and test a model for the analysis and training of communication skills in clinical practice based on behavioural elements.

Methods: The authors proposed a model for the development of communication skills in clinical practice. This model was developed between 2009 and 2010 from consultations observed in a family practice vocational training clinic. A reflexive observational cycle approach was adopted. This process combined reflexive critical practice, bibliographic study, and the discussion of behavioural elements in clinical communication. Some consultations were recorded on video for this purpose.

A selective approach was used to identify aspects of clinical communication distinct from those related to the doctor-patient relationship or with the process of the clinical consultation. The authors intended to describe the “pure” communication behaviours in depth in order to observe and enhance them.

Results: Observation and reflection on consultations revealed 55 behavioural skills. These skills were organized into a model composed of 12 communication skills categories. Four skills were considered central. These included listening, questioning, putting oneself in the patient’s place, and confirming and reformulating. The remaining skills were opening, observing, leading the consultation, harmonizing, explaining, summarizing, reaching agreement, and concluding.

Conclusions: Clinical communication is much more rich and complex that the simple sum of the behavioural components identified. However, the proposed model was found to be relevant and useful for the improvement of doctor-patient communication skills in this setting. It also has been useful for the design of self-assessment exercises and for external assessment using video recording. Successful communication is related to the doctor’s genuine interest in each patient as a unique person, to the doctor’s will and motivation to improve their interpersonal communication skills, and to a dedicated effort to improve the large range of complex skills required for effective doctor-patient communication.

Keywords: Communication; Office Visits; Family Practice; Doctor-Patient Relationship.


Introdução

Etimologicamente, a palavra comunicar deriva do latim comunicare que significa «partilhar alguma coisa com alguém», «pôr em comum», «tornar comum».1

As competências de comunicação interpessoal são basilares em toda a prática clínica, em especial nas especialidades intensamente relacionais, como é o caso da Medicina Geral e Familiar (MGF). É através da comunicação que se exploram e valorizam sintomas, emoções, sentimentos e preocupações, que se identificam e modelam expectativas, que se dão explicações, que se lida com motivações, que se acordam planos terapêuticos, isto é, que se constrói um clima terapêutico e uma relação profissional de ajuda. Relação e comunicação são entidades distintas mas indissociáveis, sendo que a relação se constrói e manifesta, em grande parte, pela comunicação.

Neste trabalho os autores procuraram distinguir e isolar, tanto quanto possível, o processo comunicacional dos aspectos relacionais e das fases, passos e conteúdo das consultas.

A comunicação é um processo complexo que se concretiza por uma trama de comportamentos verbais e não verbais, num dado contexto. Segundo Watzlawick e Bateson, todo o comportamento é uma forma de comunicação.2-4 Médico, doente e contexto são componentes indissociáveis que determinam o processo e os resultados da comunicação. Para os fins pretendidos, este artigo focaliza-se nas competências e nos comportamentos de comunicação do médico, os quais, sendo basicamente inatos, podem ser treinados e continuamente aperfeiçoados. As fragilidades e os percalços da comunicação interpessoal médico-doente são tantos e tão variados que os médicos não podem ficar-se pelo inato. Por isso, o treino sistemático e contínuo destas competências deve integrar a formação de todos os médicos.5-7

Na bibliografia seleccionada abundam as afirmações sobre a importância da comunicação médico-doente para obter bons resultados em saúde.8-11 Porém, a investigação sobre a efectividade da comunicação é relativamente escassa, uma vez que é difícil medir os resultados decorrentes do processo de comunicação em si mesmo.12 No entanto, os autores são unânimes a presumirem que a comunicação tem consequências no resultado dos cuidados, incluindo na redução da má-prática e da conflitualidade na consulta e nos serviços de saúde.9,13

Na bibliografia sobre comunicação médico-doente é frequente os textos amalgamarem aspectos tão diversos como: estrutura e duração da consulta; processo decisional; relação médico-doente; e estratégias de envolvimento, entre outros. Várias escalas e grelhas de avaliação da consulta ou entrevista clínica em MGF como, por exemplo, as de Pendleton e a MAAS-Global, entre outras, embora úteis, misturam aspectos distintos, tais como: estruturação da consulta; competências comunicacionais; competências relacionais; competências técnico-clínicas (inclui colheita da história clínica); processos de raciocínio e de decisão; competências transacionais; competências de apoio à mudança comportamental; e registos clínicos, entre outros.14-16

Os autores estão conscientes da complexidade da consulta e da estreita interligação de todos os aspectos e processos atrás enunciados. Mesmo assim, procuraram dissecar e isolar, tanto quanto possível, a componente comunicacional da consulta e as competências práticas que ela envolve.

Em Portugal, no âmbito dos cuidados de saúde primários e da MGF, é justo destacar os artigos pioneiros de João Gabriel Rodrigues e de Pedro Oliveira e Silva, publicados na Revista Portuguesa de Clínica Geral, e a obra basilar de José Mendes Nunes.17-22 Em termos de investigação, é de assinalar o projecto de investigação em curso sobre «Comunicação em Cuidados de Saúde Primários – na prática da Medicina Geral e Familiar e na prática da Farmácia Comunitária», envolvendo investigadores da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa e da Coordenação do Internato de MGF da Zona Sul.

A comunicação, a relação médico-doente e o processo de consulta estão intimamente interrelacionados. Porém, é útil individualizar e distinguir estas entidades, para melhor estabelecer modelos e métodos de treino das respectivas competências. Por isso, os autores procuraram encontrar uma forma prática e simples de treinar competências comunicacionais, decompondo-as em comportamentos passíveis de ser observados, consciencializados, modificados e aperfeiçoados no seu dia-a-dia profissional.

Processo

Os autores adoptaram o ciclo observacional reflexivo ilustrado na Figura 1. Este ciclo combina a prática reflexiva com o estudo de literatura e de notas de cursos sobre comunicação. A reiteração deste percurso estruturado permitiu aos autores identificar problemas e dificuldades na comunicação durante as suas consultas de MGF em 2009 e 2010. A obra e os ensinamentos de José Mendes Nunes, designadamente o livro Comunicação em Contexto Clínico, constituíram o alicerce básico deste trabalho.21 Partindo deste alicerce, os autores procederam a uma pesquisa e selecção bibliográfica utilizando como critério-guia o da demonstração de associações entre comportamentos e estilos de comunicação e resultados medidos em termos de satisfação dos doentes, de adesão aos planos terapêuticos, de prevenção e controlo de doenças ou de seus factores de risco, ou de resolução de problemas de saúde.

 

 

A prática durante as consultas, a análise de videogravações, a reflexão e discussão entre si e com outros observadores médicos permitiram a focalização progressiva em competências de comunicação e sua decomposição em comportamentos elementares. O passo seguinte foi o de sintetizar as referidas habilidades comportamentais em «artes», sistematizando-as de modo a conferirem suficiente sentido, coerência e elegância ao modelo teórico-prático em construção.

A escolha da palavra «artes» deveu-se a três razões:

a) à influência inspiradora de Robert Henri, para quem «arte» é «quando expressamos com empenho, cuidado e imaginação o vibrar do nosso viver em relação com os outros e com o mundo. Seja pela beleza de uma voz, de uma pintura, da palavra, de um acto profissional…»;23

b) ao significado da palavra enquanto «aplicação do saber à obtenção de resultados práticos, sobretudo quando aliado ao engenho»;1

c) à tradição milenar que integra ciência e arte no espírito e na prática da Medicina.

O teste, re-teste, reflexão e discussão em sucessivas ocasiões proporcionaram a descoberta de novos aspectos e detalhes que levaram ao reajustamento do modelo, o qual permanece aberto a um aperfeiçoamento contínuo (Figura 1).

Modelo proposto

O percurso reiterado do ciclo representado na Figura 1, em ocasiões diversas ao longo de 2009 e 2010, permitiu identificar 55 atitudes e comportamentos, os quais foram agrupados tendo em conta as suas afinidades funcionais no processo da comunicação. Dessa sistematização decorreram as artes descritas na Figura 2 e no Quadro I.

 

 

 

 

Os pilares centrais da comunicação médico-doente

Todas as «artes» individualizadas e descritas neste artigo podem considerar-se essenciais na comunicação médico-doente. Porém, quatro delas parecem funcionar como pilares centrais para a efectividade de todo o processo. São elas: ouvir; perguntar, imaginar-se no lugar do outro e confirmar e reformular.

Interpelar, ouvir, perguntar, ouvir a resposta, imaginar-se o outro, interpretar, partilhar as interpretações, voltar a perguntar para confirmar a sintonia de entendimentos, voltar a ouvir, reformular, devolver o resultado desse processo, e assim sucessivamente, formam como que um núcleo ou core central, um coração, que anima a vida de todo o processo da comunicação (Figura 2).

Saberes e capacidades essenciais

O Quadro I sistematiza o modelo proposto pelos autores para treinar capacidades de comunicação na consulta.

1. Arte de começar

A arte de começar focaliza-se no reconhecimento do doente e da sua singularidade humana. Este reconhecimento, quer visual, quer simbólico (tratar pelo nome, utilizar um título profissional) é uma necessidade humana básica. Por isso, pode ser tão importante utilizar o nome pelo qual o doente gosta de ser tratado, olhar directamente, sorrir, apertar a mão, quando e onde este gesto seja socialmente aceite e desejável. O contacto visual, juntamente com a expressão facial e o contacto físico, são determinantes para garantir um bom começo da comunicação. Alguns estudos mostram que estes «primeiros segundos» podem determinar o tipo de comunicação e o resultado final da consulta.12,20,22

2. Arte de olhar/ver e «ler»

A observação clínica começa desde o primeiro segundo. Tal requer uma quietude atenta à linguagem não verbal (linguagem do corpo: aparência, postura, gestos, expressão facial) e à linguagem para-verbal (timbre, entoação, ritmo, vocalizações não verbais). Estas linguagens podem dizer muito sem recurso às palavras e podem modelar, confirmar ou contradizer o significado formal destas. São muitas vezes os elementos visuais que contribuem para formar uma primeira impressão de uma pessoa, naquele momento, seja ela «certa» ou «errada». Desta forma, se estivermos atentos às várias linguagens do doente, reduzimos a possibilidade de perda de informação.24-26

3. Arte de ouvir

Todos necessitamos de ser escutados e compreendidos e, sentindo-nos escutados, temos menos necessidade de «falar, falar, falar» para prender a atenção do outro e ficamos mais disponíveis para depois o escutar.

A escuta activa e reflexiva, sem juízos de valor, leva a que o doente sinta que existe interesse genuíno no que ele está a dizer e que tem espaço para exprimir os seus sentimentos, angústias, inquietações, dúvidas e dificuldades. Vários estudos demonstraram que, se o doente se sentir ouvido, o seu grau de satisfação com a consulta aumenta.9, 25, 27-29

O tempo médio que alguns autores mediram em cuidados de saúde primários ao fim do qual os médicos interrompem o discurso inicial dos doentes foi de 18 a 23,1 segundos. E, quando o médico não interrompe, a exposição inicial do doente não ultrapassa a duração média de 30 segundos. O que significa que para poupar 7-12 segundos no início da consulta o médico pode estar a prejudicar a eficácia da comunicação e a aumentar, no final da consulta, o «já agora» que pode fazer voltar a consulta ao início.20, 21, 27, 30-32

Além disso, respeitar os silêncios que surgem naturalmente durante a consulta, sem tentar preenchê-los imediatamente, pode constituir uma oportunidade para o doente reorganizar a sua agenda, formular e colocar dúvidas e para o médico identificar aspectos que ficaram por esclarecer, reequacionar as hipóteses diagnósticas, etc.

4. Arte de conduzir a comunicação

Conduzir significa «mover-se com» e exige um processo cibernético, que pressupõe atenção, acção e retroacção. Esta pode ser positiva (sinais de incitamento à continuação da comunicação) ou negativa (interrupção). Conduzir a comunicação implica buscar um equilíbrio sensato entre deixar o doente falar à vontade e interrompê-lo para influenciar o curso da comunicação. Esta interrupção, quando feita, deve sê-lo no sentido do enfoque nos objectivos essenciais da consulta. O preconceito de que, em geral, os doentes «falam muito» associado à impaciência e à pressa do médico leva este, frequentemente, a interromper inadequadamente o doente. Com este comportamento pode perder informações preciosas e causar o insucesso da consulta. Assim, a interrupção deve ser a excepção, nunca a regra. Vários estudos têm evidenciado este comportamento impulsivo já descrito a propósito da «arte de ouvir». De igual modo, é indispensável saber detectar quando o doente está a divagar e a perder-se em elementos e factos acessórios e, de forma serena, afável e firme, resumir o essencial e reenfocar a atenção nos problemas que parecem ser a fonte de preocupações e angústias do doente. Logo a seguir, é indispensável fazer perguntas adequadas para reorientar o doente na exposição da sua situação e problemas, bem como das suas crenças, explicações, receios e expectativas. Neste processo são úteis o parafrasear e a técnica do assinalamento. Parafrasear consiste em utilizar as mesmas palavras e expressões ou termos idênticos aos que o doente usou para sublinhar ideias essenciais ou pontos críticos, o que por um lado valida que o médico ouviu atentamente o paciente e, por outro lado, pode ajudar a conduzir a consulta. A técnica de assinalamento corresponde a um feedback que põe em evidência ou mostra ao doente emoções ou comportamentos que este expressou, abrindo oportunidades ao aprofundamento das motivações, dos conflitos e das áreas de tensão psicossocial.

5. Arte de perguntar

Saber perguntar é um dos pilares centrais da comunicação. Sem perguntar, não é possível conhecer nem compreender o doente nem os seus problemas de saúde e respectivas circunstâncias e determinantes. Perguntar pela «agenda» completa do doente, logo no início da consulta, poupa tempo e aumenta a efectividade.32 Por outro lado, é da sabedoria popular que «perguntar não ofende» e «faz pensar». Mas, saber perguntar é uma das artes mais difíceis e está intimamente ligada ao saber calar, ao saber ouvir, ao saber reformular e... ao abster-se de induzir o que se quer ouvir, de julgar ou de censurar. É um exercício de inteligência, de perspicácia, de humildade, de auto-disciplina e de respeito pelo doente. Entre as capacidades que integram esta arte incluem-se o saber fazer perguntas abertas sem induzir a resposta, o saber perguntar oferecendo opções claras para ajudar o doente a responder (exemplos: dor como se fosse um aperto constante ou uma pontada, ou uma moinha, ou uma dor que vai e volta). Por vezes é adequado responder ao doente com uma pergunta, sobretudo quando houver indícios que a pergunta do doente tem um medo ou uma preocupação subjacente («porque é que me pergunta isso?»). De igual modo, é crucial pedir feedback ao doente sobre o que está a apreender da comunicação, sobre a clareza da explicação, se o que é proposto faz sentido, se é claro, se é exequível para ele, entre outros aspectos. Perguntar e compreender vão a par-e-passo no processo de comunicação.

6. Arte de se imaginar no lugar do outro

A compreensão ou a aproximação à compreensão dos pontos de vista e do modo de ver do doente requerem ainda outras competências além do saber perguntar. Um obstáculo major à comunicação é a ausência de compreensão. Por isso, é tão importante a atitude/comportamento da empatia. Isto é, o procurar ver-se mentalmente na situação do doente e, se possível, transmitir ao doente, de vários modos, esta atitude. Um modo de o conseguir é, por exemplo, colocando a si próprio perguntas como: se eu estivesse nesta situação, como reagiria? o que sentiria? o que pensaria? como gostaria de ser compreendido? o que gostaria que me fizessem/ou que não fizessem? o que faria? E, sempre que apropriado, comunicar ao doente, com sinceridade, o resultado deste processo reflexivo imagético.

7. Arte de sintonizar

Para que ocorra comunicação é necessário que o médico e o doente emitam e recebam no mesmo «comprimento de onda» as mensagens que trocam entre si. Isto é, que descodifiquem do mesmo modo as palavras e as expressões que usam. Sendo o médico o profissional, é a ele que cabe assegurar-se que esta sintonia existe. Para isso, tal como já foi referido, o médico deve manter-se atento ao doente e à comunicação com ele, ponderar cada palavra que usa e qual o significado que ela possa ter para o doente. De igual modo, deve assegurar-se que compreende os significados das palavras e das expressões que o doente utiliza.

É crucial que exista esse entendimento comum do significado das mensagens trocadas entre médico e doente. Pedro Oliveira e Silva refere a palavra harmonia para ilustrar esta arte, a qual envolve a genuína demonstração de autenticidade e interesse pelo outro.20

8. Arte de confirmar e reformular

Reformular, isto é, dizer de outro modo, devolver uma ideia sob outra forma, é crucial para confirmar e para mostrar que se compreendeu o doente e o que ele nos quis transmitir. Também pode ajudar o doente a organizar e a afinar as suas mensagens e o seu pensamento e pode, ainda, servir para lhe propor outras perspectivas, outros pontos de vista e modos de ver os problemas ou situações que estão a ser abordados. É uma competência bastante sofisticada. Requer muita atenção, sensibilidade, bom senso e prudência. Pode, por exemplo, começar com: «Se bem entendi, o senhor receia que...» ou «Pelo que me conta, depreendo que... Estarei certo?» ou ainda «Parece-me ter compreendido a sua situação e o motivo porque está tão preocupado, mas também é possível considerar esse problema de outros pontos de vista. Por exemplo...».

Para reformular adequadamente são indispensáveis: escuta atenta e activa, perguntas oportunas e pertinentes, acompanhamento atento de todos os sinais e mensagens, com feedback frequente, quer afectivo (expressão facial, sons de assentimento, sorriso afectuoso), quer cognitivo, recorrendo a resumos sucintos. Esta arte é, assim, um dos pré-requisitos para sintonizar a comunicação e para a levar a bom termo.

9. Arte de explicar

Em geral, o doente procura e espera explicações ou pretende testar ou confirmar as suas próprias explicações. Espera respostas claras e compreensíveis, que façam sentido para si, a perguntas como: «Que doença é esta?»; «Porque é que me aconteceu a mim?»; «Porquê agora?»; «Que me vai acontecer a seguir?»; «Que perigos corro?»; «O que é possível fazer?».

Por sua vez o médico deve explorar as explicações do próprio doente com perguntas como «A que atribui esse sintoma?». Na fase em que propõe a sua explicação científica, deve escolher e usar palavras, frases e expressões claras, simples e precisas, tendo em conta o nível de instrução e de literacia em saúde de cada doente concreto. Deve evitar o hermetismo técnico e explicações complexas, que são habitualmente confusas, e socorrer-se de imagens, de analogias e de metáforas que ajudem nas explicações a dar.

10. Arte de resumir

Numa consulta abordam-se com frequência situações complexas, algumas vezes confusas, com emaranhados de factores e de problemas. O próprio doente vivencia por vezes uma amálgama ameaçadora de sintomas, de representações, de medos, de sofrimento mal definido, com os quais tem dificuldade em lidar. Por isso é útil, para ambas as partes, elaborar pequenos resumos, simples e claros, ao longo da comunicação e da consulta: resumir os motivos de consulta, antes de passar à exploração; resumir os dados essenciais da exploração subjectiva e do exame objectivo; resumir a avaliação – o «diagnóstico» é, em si, um hiper-resumo, por vezes demasiado simplificador, mas quase sempre tecnicamente útil. Finalmente deve resumir-se o plano, objectivos e acções acordados e, quando possível, fornecer por escrito esse plano. Isto pode facilmente ser feito, actualmente, através de «copy e paste» ou da impressão direta da componente «P» do SOAP do registo da consulta na aplicação informática.

11. Arte do acordo

O doente só faz o que quer e/ou se compromete a fazer. As decisões terapêuticas devem, por isso, ser partilhadas e traduzir-se em actos e objectivos realistas e exequíveis nos contextos socio-familiar, cultural, económico e ocupacional de cada doente. Daí a necessidade de o médico desenvolver competências «negociais» ou «transacionais» que requerem competências de comunicação muito apuradas. Dar indicações, ordens, proibir, ou simplesmente aconselhar sem atender aos universos interior e exterior do doente são actos potencialmente condenados ao fracasso.

A arte de chegar a acordo e a compromissos requer assertividade e contribui para que a probabilidade de adesão aos planos terapêuticos e de obtenção de resultados aumente consideravelmente.9,33,34

Para se atingir acordo e compromisso é indispensável: identificar e propor acções adequadas e viáveis, acolher e respeitar as preferências e condicionalismos do doente, propor alternativas aceitáveis para ambos, chegar a entendimentos comuns e acordar acções e objectivos SMART (específicos, mensuráveis ou avaliáveis, relevantes e atingíveis num prazo definido).

12. Arte de concluir

Saber começar, saber conduzir e saber concluir são três «chaves-mestras» que enquadram um episódio de comunicação. A arte de concluir implica, por exemplo, resumir sucintamente o que se passou, confirmar que se compreendeu o doente e que este compreendeu o médico e que as principais expectativas e objectivos de ambos foram atingidos. Também é importante dar oportunidade para algum feedback espontâneo do doente sobre como vivenciou a consulta para, finalmente, encerrar cordialmente a consulta e a comunicação.

Aplicação prática

Um dos objectivos dos estágios de MGF no internato médico é o do treino e aperfeiçoamento das competências comunicacionais, quer dos internos, quer dos orientadores.

O modelo descrito foi construído para dar resposta à necessidade sentida pelos autores de delinear um quadro de capacidades práticas, traduzíveis por comportamentos observáveis e susceptíveis de serem treinados e avaliados criticamente. Esta avaliação pode ser feita pelo próprio (auto-avaliação), por um observador externo ou diferida com recurso a videogravação.

As capacidades ou habilidades identificadas podem ser vistas como peças de «Lego» que podem combinar-se de múltiplas formas, para compor cada momento e fase do processo de comunicação. Se tomarmos consciência delas e do modo como as executamos podemos aperfeiçoá-las. Este é o ponto-chave do modelo proposto.

Porém, os autores têm consciência e advertem que o processo total de comunicação é muito mais que a simples soma dos gestos, comportamentos e artes parcelares identificados. O seu sucesso depende, essencialmente, da preocupação com o outro e do interesse e da motivação para comunicar bem.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Dicionário da Língua Portuguesa 2009. Porto: Porto Editora; 2008.         [ Links ]

2. Ruesch J, Bateson G. Communication: the social matrix of psychiatry. New York: W. W. Norton &Company; 1951.

3. Watzlawick P, Beavin JH, Jackson DD. A pragmática da comunicação humana. São Paulo: Editora Cultrix; 2001.         [ Links ]

4. Santos I. Recensão do livro: comunicação em contexto clínico. Rev Port Clin Geral 2007 Mar-Abr; 23 (2): 147-50.         [ Links ]

5. Gude T, Vaglum P, Anvik T, Baerheim A, Eide H, Fasmer OB, et al. Observed communication skills: how do they relate to the consultation content? A nation-wide study of graduate medical students seeing a standardized patient for a first-time consultation in a general practice setting. BMC Med Educ 2007 Nov 8; 7: 43.         [ Links ]

6. Hobma S, Ram P, Muijtjens A, Van der Vleuten C, Grol R. Effective improvement of doctor-patient communication: a randomised trial. Br J Gen Pract 2006 Aug; 56: 580-6.         [ Links ]

7. Teutsch C. Patient-doctor communication. Med Clin North Am 2003 Sep; 87 (5):1115-45.         [ Links ]

8. Agostinho C, Cabanelas M, Franco D, Jesus J, Martins H. Satisfação do doente: importância da comunicação médico-doente. Rev Port Clin Gera. 2010 Mar-Abr; 26 (2):150-7.

9. Laidlaw TS, Kaufman DM, Macleod H, Sargeant J, Langille DB. Patients’ satisfaction with their family physicians’ communication skills: a Nova Scotia survey. Acad Med 2001 Oct; 76 (10 Suppl): S77-9.         [ Links ]

10. McBride CA, Shugars DA, DiMatteo MR, Lepper HS, O’Neil EH, Damush TM. The physician’s role: views of the public and the profession on seven aspects of patient care. Arch Fam Med 1994 Nov; 3 (11): 948-53.         [ Links ]

11. Williams SL, Haskard KB, DiMatteo MR. The therapeutic effects of the physician-older patient relationship: effective communication with vulnerable older patients. Clin Interv Aging 2007; 2 (3): 453-67.         [ Links ]

12. Beck R, Daughtridge R, Sloane PD. Physician-patient communication in the primary care office: a systematic review. J Am Board Fam Pract 2002 Jan-Feb;15 (1): 25-38.         [ Links ]

13. Virshup BB, Oppenberg AA, Coleman MM. Strategic risk management: reducing malpractice claims through more effective patient-doctor communication. Am J Med Qual 1999 Jul-Aug; 14 (4): 153-9.         [ Links ]

14. Pendleton D, Schofield T, Tate P, Havelock P. The consultation: an approach to learning and teaching. Oxford: Oxford University Press; 1984.         [ Links ]

15. Van Thiel J, Ram P, Dalen J. MAAS-Global Manual. Maastricht: Maastricht University; 2003. Disponível em: http://www.hag.unimaas.nl/Maas-Global_2000/GB/MAAS-Global-2000-EN.pdf [acedido em 22/03/2012].         [ Links ]

16. Brown RF, Bylund CL. Communication skills training: describing a new conceptual model. Acad Med. 2008 Jan; 83 (1): 37-44.         [ Links ]

17. Rodrigues JG. A comunicação na consulta de clínica geral/medicina familiar. Rev Port Clin Geral 1987 Jan-Fev; 27 (1): 12-4.         [ Links ]

18. Rodrigues JG. A entrevista médica em clínica geral/medicina familiar. Rev Port Clin Geral 1990;7: 216-20.         [ Links ]

19. Silva PO. O Processo de Comunicação na Consulta de Clínica Geral (Parte I): As formas de comunicação na consulta. Rev Port Clin Geral 1990 Nov;7 (11): 403-11.         [ Links ]

20. Silva PO. O Processo de Comunicação na Consulta de Clínica Geral (Parte II): A interacção na comunicação durante a consulta. Rev Port Clin Geral 1990 Dez; 7 (12): 443-6.         [ Links ]

21. Nunes JM. Comunicação em Contexto Clínico. Lisboa: Bayer Health Care; 2007.         [ Links ]

22. Nunes JM. A abertura da consulta: o fim está no princípio. Rev Port Clin Geral 2009 Mar-Abr; 25 (2):199-207.         [ Links ]

23. Henri R. The art spirit. Cambridge, MA: Basic Books; 2007.         [ Links ]

24. Rodriguez HP, Anastario MP, Frankel RM, Odigie EG, Rogers WH, von Glahn T, et al. Can teaching agenda-setting skills to physicians improve clinical interaction quality? A controlled intervention. BMC Med Educ 2008 Jan 14; 8: 3.         [ Links ]

25. Roter DL, Hall JA. Studies of doctor-patient interaction. Annu Rev Public Health 1989; 10: 163-80.         [ Links ]

26. Silva PO. O processo de comunicação interpessoal. In: MGF 2000. CD-ROM. Lisboa: APMCG; Dez 2000.         [ Links ]

27. Salgado R. O que facilita e o que dificulta uma consulta. Rev Port Clin Geral 2008 Jul-Ago; 24 (4): 513-8.         [ Links ]

28. Silva PR. A comunicação na prática médica: seu papel como componente terapêutico. Rev Port Clin Geral 2008 Jul-Ago; 24 (4): 505-12.         [ Links ]

29. Street RL Jr, Krupat E, Bell RA, Kravitz RL, Haidet P. Beliefs about control in the physician-patient relationship: effect on communication in medical encounters. J Gen Intern Med 2003 Aug; 18 (8): 609-16.         [ Links ]

30. Beckman HB, Frankel RM. The effect of physician behavior on the collection of data. Ann Intern Med 1984 Nov; 101 (5): 692-6.         [ Links ]

31. Dyche L, Swiderski D. The effect of physician solicitation approaches on ability to identify patient concerns. J Gen Intern Med 2005 Mar; 20 (3): 267-70.         [ Links ]

32. Marvel MK, Epstein RM, Flowers K, Beckman HB. Soliciting the patient’s agenda: have we improved? JAMA 1999 Jan; 281 (3): 283-7.         [ Links ]

33. Kerse N, Buetow S, Mainous AG 3rd, Young G, Coster G, Arroll B. Physician-patient relationship and medication compliance: a primary care investigation. Ann Fam Med 2004 Sep-Oct; 2 (5): 455-61.         [ Links ]

34. Saba GW, Wong ST, Schillinger D, Fernandez A, Somkin CP, Wilson CC, et al. Shared decision making and the experience of partnership in primary care. Ann Fam Med 2006 Jan-Feb; 4 (1): 54-62.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Eunice Carrapiço

Rua Gama Pinto nº11 4ºB 2675-648 Odivelas (Colinas do Cruzeiro)

eunicecarrapico@gmail.com

 

Agradecimentos

Os autores agradecem a todos os que, de forma directa ou indirecta os ajudaram a conceptualizar, a estruturar, a produzir e a rever este artigo.

Destaques especiais são devidos ao aluno de Medicina David Coelho, cujo espírito atento e crítico permitiu, por exemplo, tornar mais explícita e clara a «arte de sintonizar» e aos Drs. Mário Santos e Tatiana Consciência pela cuidadosa revisão crítica do artigo e sugestões para a sua melhoria. Este trabalho é ilustrativo do enriquecimento mútuo que os internos da formação específica, os estudantes de Medicina, os internos do ano comum e internos de outras unidades e países, em especial de Espanha e do Brasil, têm trazido ao ambiente formativo da Unidade de Saúde Familiar Marginal.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não possuir qualquer tipo de conflito de interesses.

Recebido em 12/05/2011

Aceite para publicação em 07/05/2012

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons