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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.40 Lisboa jun. 2020

https://doi.org/10.15847/cct.jun2020.040.ess03 

ENSAIO

 

Da ficção cinematográfica à realidade pandémica: um ensaio sobre parasitas, vírus e outras maleitas

From cinematographic fiction to pandemic reality: an essay on parasites, viruses and other diseases

 

Ana Elísia da CostaI

[I]Departamento de Arquitetura, Faculdade de Arquitetura - UFRGS, Brasil. e-mail: ana_elisia_costa@hotmail.com

 

 


 

Uma paisagem urbana árida – pontes, viadutos, escadarias, avenidas – e duas casas. Esses são os cenários mais importantes do filme Parasita (2019), do diretor sul-coreano Bong Joon-ho. Apesar da potência poética do cenário urbano distópico que separa essas duas casas, são elas que ganham protagonismo no filme. Uma casa é de família abastada, família Park, cujo bom gosto parece ter suas matrizes no modernismo americano dos anos 1950 (Wisnik, 2020) e que ainda hoje é palatável ou de fácil consumo, como evidenciam revistas e websites de arquitetura contemporânea. De outro lado, a decadência da casa da família Kim, com suas sobreposições e acúmulos de coisas, explora uma atmosfera não menos atraente – a «estetização da pobreza» –, cuja potência pode ser verificada na vida real, quando milhares de turistas invadem áreas urbanas empobrecidas, para o consumo de «exotismos», como ocorre nas favelas brasileiras (Figuras 1a e 1b).

 

 

 

Com o sucesso do filme, principalmente com os quatro prêmios no Oscar de 2020 – Melhor Filme, Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original –, pode-se dizer que suas casas se transformaram em simulacros eternizados na memória do cinema, apesar de serem apenas cenários. Idealizados pelo cenógrafo (e não arquiteto) Lee Ha Jun, o cenário da «casa-rica» envolveu a execução das fachadas, de todo andar térreo e dos jardins. O seu andar superior só foi construído virtualmente. A «casa-pobre», por sua vez, foi erguida junto com um quarteirão de 40 casas e com um enorme tanque de água usado para as cenas de inundação (Farinha, 2020).

Dezenas de publicações sobre Cinema e Arquitetura expressam um especial, e presumível, encantamento pela «casa-rica». [2] (Figuras 2a, 2b, 2c). E há aquelas que já destacam o aumento de turistas na exótica pobreza de Seul [3] ou a transformação, de decadente a cool, dos banjiha, apartamentos semienterrados típicos da periferia da cidade que inspiraram o cenário da «casa-pobre». [4] O sucesso da hashtag #banjiha nas redes sociais atesta a eficiência do sistema em transformar tudo, até a pobreza, em bem de consumo.

 

 

 

 

Os contrapontos entre as duas casas, muito além do simples aspecto estético, são explorados para desenvolver uma severa crítica social. Osbanjiha, somados às casas improvisadas na cobertura dos edifícios (oktapbang) e aos quartos enclausurados em casas compartilhadas ( gosiwon), são retratos atuais da pobreza e da crise habitacional sul-coreana (Minji, 2020), especialmente em Seul, onde a população do país assiste a uma escalada assustadora no preço dos aluguéis e a processos de gentrificação. Problemas de saneamento sobrepõem-se a esse problema habitacional, como ilustram inundações decorrentes do represamento do rio Han que, na década de 1980, levou ao alagamento de áreas de baixa renda (Balhorn, 2020). Ao afetar mais diretamente jovens e pobres, esses cenários levam a questionar a imagem de «prosperidade» do país que ocupa a 11ª posição no ranking da economia mundial.

No filme, problemas urbanos e habitacionais servem de cenário para escancarar conflitos sociais que, hoje, são universais. É talvez a universalidade da realidade urbana e social apresentada, muitas vezes ocultada pela sociedade dominante nos quatro cantos do mundo, que justifica o sucesso do filme.

Por outro lado, pode-se pensar que a temática do filme também antecipa a própria realidade. Ao explorar metáforas ligadas ao mundo biológico – presentes não só no Parasita, mas também em diversos outros filmes do diretor, como O Hospedeiro [5] – Joon-ho engatilha reflexões que ganham ainda mais força diante da pandemia virulenta que assola o mundo. Parasitas e hospedeiros são partes de um sistema em que o primeiro, desprovido de metabolismo independente, usa células vivas do segundo para se replicar. Essas relações na natureza, contudo, podem ser tanto harmoniosas como predatórias, o que parece levar o diretor do filme a sugerir o questionamento – quem parasita quem? Onde? Como? A parasitagem, apesar de abstrata, é altamente contagiante. É como o cheiro retratado no filme, que «atravessa» espaços e pessoas de distintas classes sociais.

Essas metáforas fílmicas e a sincronicidade das mesmas com a pandemia, bem como o meu próprio isolamento social, motivaram-me a assistir ao filme novamente. [6] O ócio, como sugere Domenico De Masi (2001), é produtivo e, num ímpeto fantasioso, levou-me a questionar: Se as famílias Park e Kim não fossem vítimas da tragédia retratada no filme, como viveriam o isolamento imposto pelo Covid-19 na Coreia do Sul? Como se comportariam naquelas duas casas?

As respostas a estes questionamentos permitem compor um conto, uma ficção sobre ficção ou uma pós-ficção, cujo «roteiro-outro» pode ser uma forma de refletir e dar visibilidade ao problema das condições desiguais – econômicas e emocionais – de enfrentamento dos isolamentos sociais impostos [7]. Ela, apesar de baseada em medidas efetivas do governo sul-coreano no combate ao vírus (Han, 2020), pode permitir reflexões sobre dramas similares vividos em várias partes do mundo, como o próprio filme assim o fez.

Essa pós-ficção, portanto, retoma a discussão de temas universais que já eram sensíveis antes da pandemia e que, provavelmente, irão persistir ou serão ampliados após a crise – o direito à moradia e à cidade; o direito à privacidade e à liberdade. Ao fazer isso, procura-se estabelecer um outro sentido para a própria realidade, não a assimilando como inevitável. Tenta-se denunciar essa realidade e indicar a necessidade de construir novos caminhos para a sua constituição futura.

Alguns novos caminhos vêm sendo especulados por pensadores em publicações lançadas em paralelo à própria pandemia, ou seja, ao mesmo tempo em que este ensaio pós-ficcional é escrito. Ele é então confrontado com alguns desses ensaios teóricos, especificamente os de David Harvey (2020) e Boaventura de Sousa Santos (2020), de modo a fazer aproximações e testar limites entre realidade e teoria. O exercício, contudo, não pretende seguir caminhos seguros, nem persegue resultados assertivos, mas apenas ampliar reflexões ou, como sugere Boaventura de Sousa Santos, fazer «sub-teorizações». Para ele, qualquer teorização absoluta na realidade caótica da pandemia é beirar o abismo, o fracasso, pois “a realidade vai sempre adiante do que pensamos ou sentimos sobre ela” (Santos, 2020, n.p.).

 

1. A pós-ficção

Um (possível) diário pandêmico das famílias Park e Kim:

20 de janeiro de 2020

Sr. Park toma café na bancada da cozinha, iluminada pela luz do sol. Dali, ele vê a sala e, através da sua grande janela, o pátio. Pelo smartphone, lê notícias sobre o primeiro registro do coronavírus na Coreia do Sul e nos Estados Unidos, ambos no mesmo dia! A mensagem também chega ao smartphone da filha dos Kim que, sentada no vaso sanitário do banheiro do seu apartamento, rouba sinais de conexão com a internet do vizinho.

Democraticamente, a informação chega aos dois que reagem com certa indiferença: ele, por acreditar na imunidade do poder financeiro; ela, pela certeza daquilo ser só mais um dos riscos diários. Ele toma um gole da xícara de café e embarca no carro com motorista que o espera. Ela desenrola o papel higiênico, se limpa, dá descarga e não lava as mãos.

25 de janeiro de 2020

O Sr. e a Sra. Kim embarcam no metrô que cheira limpeza, mais uma das medidas do governo no combate ao vírus, contrastando com o odor que exala dos seus corpos e roupas. A testagem negativa de ambos, feita ali na mesma estação, não exala, é inodora e silenciosa.

No outro extremo da cidade, a Sra. Park pinga duas gotas de Chanel no pulso. Após contratar um pacote de viagem para recuperar o ânimo do marido e talvez o sentido do casamento, ordena o jantar à governanta e embarca no carro com os filhos para fazer uma testagem rápida num dos muitos postos móveis da cidade. Com resultados negativados, todos seguem aliviados. Caso contrário, o aplicativo governamental corona-app imporia o constrangimento da notificação do contágio a parentes e, ainda, da intimação dos mesmos a também testar.

02 de março de 2020

Enquanto faz compras on-line, a Sra. Park recebe mensagem informando que o epicentro do vírus no país está entre fiéis da Igreja de Jesus Shincheonji. Seus olhos lacrimejam – é a igreja da sua governanta. Atônita, procura os filhos pela casa com um ilusório sentimento de imunizá-los com a sua presença. Com as aulas suspensas, os filhos estão, provavelmente, reclusos no microcosmo dos seus quartos – a filha adolescente, em conflitos existenciais; o filho, numa espécie de autismo; ambos, ignorados pelo rígido sistema educacional coreano que molda indivíduos competentes e infelizes. O facto da possível contaminação da governanta deve ser, a qualquer custo, omitido do marido que se isola no confortável escritório da casa, de onde controla remotamente os empregados da sua empresa de informática. Com nervos à flor da pele, ele estuda os impactos da crise sobre as metas de crescimento da empresa e alternativas para fazer da crise uma oportunidade. Vislumbra desenvolver um software de vigilância digital, já que esta é uma das estratégias do governo para o controle epidêmico. Sorrateiramente, a Sra. Park atravessa o corredor que comunica com a porta do escritório, desce a escada e encontra a governanta na cozinha. Mantendo a distância e um certo olhar de pavor, dispensa seus serviços. A governanta implora por uma quarentena remunerada, por um retorno, mas em vão. Servil e resignada, como todos os empregados, curva-se e sai. Sra. Park equipa-se com luvas e máscaras e higieniza tudo com álcool gel. A casa parece pequena para comportar o seu medo. Naquela noite, sem jantar, iriam encomendar uma pizza pelo Uber Eats.

Sem luvas e máscaras, os filhos da família Kim trabalham em casa num serviço temporário, dobrando embalagens para pizza, a mesma que irá ser servida mais tarde na casa dos Park. Apinham-se na pequena sala do “ banjiha”, iluminada pela janela que se abre no nível da rua. Escuta-se um k-pop em alto volume, vindo do apartamento vizinho. Com pouca ventilação e entulhado de pertences, o apartamento cheira a roupas guardadas-mofo-sujeira, com tons de comida-suor. Sem testagem, à noite os filhos Kim interagem com amigos do bairro, excitados por um exercício simbólico de desobediência civil. O governo não proibiu propriamente as pessoas saudáveis de saírem durante a epidemia, nem ordenou que o comércio fosse fechado, mas eles sentem uma vigilância social em curso, um constrangimento coletivo. Eles saem à rua mascarados, menos para ocultar uma identidade e mais para corresponder ao que os sul-coreanos fazem cotidianamente. Sabem que a máscara não impedirá de serem descobertos pela vídeo-vigilância do governo ou pelo rastreio do cartão de crédito e celular. Sentado na calçada em frente a uma pizzaria, o filho dos Kim recebe mais um alarme do corona-app que notifica casos de vizinhos contaminados. Desta vez é denunciado um senhor que insistentemente fuma e urina junto à janela da sua sala. Deseja-lhe a morte, mas ao mesmo tempo, teme ser o próximo a perder a liberdade e privacidade.

Dia 11 de março de 2020

Os Park e os Kim recebem a notícia de que a OMS decretou o coronavírus como pandemia. Pronunciamentos do presidente, com máscara de nanofiltros, são feitos com mais frequência. A Sra. Park já enfrenta jornadas domésticas sem serviçais. Sem habilidade para cozinhar, é criticada pela família e se cobre de culpas. O isolamento do marido é social, doméstico e conjugal. Não partilham as atividades de casa e a partilha de corpos deixa a desejar. Ela, carente, tem desejos obscenos, impensáveis e impronunciáveis para uma senhora recatada. Ele deambula pela casa. A sua cabeça está nos dados de provedores de internet e de telefonia móvel que alimentarão o seu aplicativo de vigilância. Através do teletrabalho, finge-se de vivo e sublima desejos. O único desejo verdadeiro remete-o ao seu amante, um menino de 20 anos agora prisioneiro da periferia sob o sombrio medo de contaminação. A distância entre o casal e a habitual frieza na relação com os filhos alargam ainda mais a metragem quadrada dos espaços que ela limpa diariamente. Sente saudades da governanta que, segundo o corona-app, morreu em decorrência do vírus. Percebe que não sabia nada sobre a família da governanta, se tinha marido e filhos. A casa cheira mal, por mais que a limpe. Algum animal morto?

A família Kim, em quarentena depois da testagem positiva da filha, vive dias de pânico. Tosse e calafrios definem o ritmo da casa, envolto no medo de agravamento do quadro. Na sala, os corpos desobedecem a distanciamentos sanitaristas. Dois metros ali é luxo. Não há espaço para estabelecer quaisquer protocolos, de entrada-saída da casa, de isolamento de corpos contaminados; não há espaço para respirar e, tão pouco nariz para cheirar; não há espaço para caber tamanho medo da morte; mas, contrariamente, cabe ali alguma cumplicidade afetiva. Resignados, sabem que, provavelmente, todos vão se contaminar. Na urgência do agora, o único contágio certeiro é o da fome! Sem receberem doações de cestas de mantimentos, o esvaziamento da geladeira leva o filho dos Kim, mais uma vez, à rua. Desta vez, ele não é movido pelo desejo rebelde de desobediência civil, mas pela necessidade primitiva de sobrevivência. Vai buscar trabalho, pedir esmolas, o que for...

Atravessa o pobre gueto Ahyeon-dong, onde vivem, correndo. Tem urgência. Atravessa áridas pontes, viadutos, escadarias, avenidas. Como sempre, ninguém no caminho. No distrito de Seongbuk-dong, onde ricos se isolam e talvez ofereçam alguma oportunidade, encontra poucas pessoas na rua. O corona-app alerta para edifícios em que há registro de infectados. O vírus contamina ali também e ele afasta-se. Teme, em breve, ser detectado pela vigilância virtual. Algo nas ruas mudou, seja no pobre Ahyeon-dong, seja no rico Seongbuk-dong. É como se o espaço árido que atravessou correndo estivesse contaminando, aos poucos, os espaços adjacentes. Ofegante, chora! Há nuvens no céu. Se chover, a casa dos Kim poderá sofrer alagamento, como já ocorreu outras vezes. Ele clama por algo próximo a Deus e, ao mesmo tempo, num impulso profundo, deseja a própria morte, a morte do mundo, um apocalipse, um fim.

27 de março de 2020

Depois do controle relativo da epidemia, os Sr. e Sra. Park entram com pedido de separação. O isolamento desvelava o que o cotidiano encobria. Enterram um casamento. A família Kim também enterra um amor, a filha que, num caixão lacrado, desapareceu deste mundo sem velório, padecendo do que ela mesma subestimou no dia 20 de janeiro. A morte naturaliza-se entre todos, exigindo cuidados dos vivos ou dos restos-dos-vivos. Nessa urgência, perde-se a percepção do real inimigo, se o «vírus», se o «eu», se o «outro». O «outro», por certo, não lhes é a salvação. Isolados e vigiados, cada um busca garantir a sua própria sobrevivência, sem desejos de ressignificar o vivido, sem desejos de outras formas de viver e habitar.

******

O corona-app notifica – “Estuda-se a possibilidade de retomar o isolamento, pois novos casos de contaminação e morte são registrados”. A mensagem é emitida já com o temor de lidar com a resistência da população para se isolar novamente. A primavera chegou e as flores estão desabrochando.

 

2. O desabrochar de primaveras ou o voltar ao bunker

O imaginário dos mundos retratados pelas casas parece apoiar-se num aspecto geográfico – alto-baixo – e no decorrente aspecto luminoso a ele associado – claro-escuro. Grandes janelas e implantação em cota elevada garantem luz abundante aos Park; pequenas aberturas em cota abaixo do nível da rua condenam os Kim a uma vida sombria [8]. Esta polaridade, que explicita de facto condições de habitabilidade, permite ao diretor do filme inúmeras metáforas, como a do bunker que poderia representar o espaço mais baixo e mais escuro (Figuras 3 e 4).

 

 

 

Bunkers são espaços semienterrados, construídos para resistir a «ataques» bélicos, como na época da guerra fria, a tornados e furacões e, mais recentemente, a pandemias, como têm demonstrado milionários americanos (Labbate, 2020). Na casa dos Park, o bunker é a despensa que o arquiteto fictício Namgoong Hyeonja projetou para a proteção de possíveis ataques norte-coreanos. O apartamento dos Kim é o próprio bunker. Assim como um banjiha, foi construído após 1970, quando o governo temeroso aos mesmos ataques passou a exigir que edifícios residenciais com menos de quatro andares tivessem porões-abrigo para situações de emergência. Essa função original foi preservada até aos anos 1980, quando uma crise imobiliária levou a consolidar esses espaços como habitação (BBC, 2020).

No bunker dos Park vive clandestinamente o marido da governanta que, provendo-o de alimentos e afetos, lhe garante a sobrevivência frente a pressões de agiotas. O Sr. Kim, posteriormente, também sobreviverá ali. Os sinais de vida vindos desse bunker expressam-se em forma de «luz», no acende-apaga de lâmpadas que eles acionam. De qualquer modo, eles não existem, são fantasmas invisíveis no espaço mais baixo e escuro da luminosa e radiante casa dos Park. No bunker dos Kim, mínimo, húmido e escuro, vivem quatro pessoas semienterradas. São mortos-vivos e os seus sinais vitais também são invisíveis, aparecem em forma de «cheiro» que é exalado por eles. Espaço, luz e ventilação são condições essenciais para a sobrevivência que lhes são vedadas.

A sobrevivência, portanto, transcorridos mais de 40 anos após a construção das casas-bunkers, ainda define os seus modus operandi. A sobrevivência a possíveis ataques bélicos dos anos 1970-80 foi substituída pela sobrevivência a um sistema econômico que, deflagrado a partir da década de 1980, acentuou diferenças sociais, concentrando a riqueza na mão de poucos e condenando muitos à pobreza extrema. A crise, a sua situação de excepcionalidade, portanto, não foi superada e a aparente normalidade é uma simulação. Vive-se um permanente estado de crise ou uma «normalidade da exceção» que, como sugere Boaventura de Sousa Santos (2020), se estende além da Coreia do Sul, é global.

É essa mesma «crise permanente», ainda segundo o autor, que tem sido usada para justificar cortes a financiamentos de políticas sociais de diversas ordens – saúde, educação, previdência social, habitação, infraestrutura. A crise justifica reduções salariais. Ela isenta o Estado do seu papel, delegando serviços a terceiras entidades e parcerias público-privadas. Ela justifica, inclusive, a atuação de comunidades solidárias no rentável comércio das filantropias (Santos, 2020).

Neste contexto vivem os Kim – os filhos não estudam, os pais não estão aposentados, fazem trabalhos provisórios de baixa remuneração e «parasitagens», não só a ricos, mas também aos seus iguais. Vivem com um precário acesso à internet, condição indispensável para o teletrabalho e a educação à distância. Vivem numa casa que não os comporta ou conforta, e num bairro que se inunda mediante temporais. Vivem quarentenas sobrepostas (Santos, 2020), aqui, uma tripla quarentena, imposta pela pandemia, pela comunicação digital e pelo bairro delimitado por áreas distópicas que os segregam do resto da cidade. Estão presos! O sistema e a cidade já lhes concederam essa condição, antes mesmo da pandemia. Estão ali, sem amparo do Estado e nem mesmo de comunidades filantrópicas. Estão ali, sozinhos, sem articulação social.

A não resolução desta crise, mesmo antes da epidemia, tem objetivos claros – concentrar riquezas como a ostentada pelos Park. Protegidos na sua «casa de revista» e numa empresa bem sucedida, eles mascaram hábitos vorazes de consumo e descarte. O minimalismo da sua casa decorre menos de um bom gosto e mais do facto de que já gozaram do «muito» e podem definir, ao seu critério e prazer, onde, como e o que consumir. (Carini, 2020). Num «consumo compensatório» para abrandar frustrações, compram pacotes de viagens e roupas de que não necessitam; ou, para abrandar inseguranças, adquirem planos de saúde, seguros, sistemas de segurança, e terapias. Meritocráticos, os seus serviçais são tratados com arrogância ou falsa cordialidade, sem admitir que os mesmos sejam vítimas do sistema social operante (Harvey, 2020).

De qualquer modo, os mundos dos Kim e dos Park são condenados com a pandemia. Ambos sofrem com a suspensão da liberdade e da privacidade imposta pela política de vigilância do Estado que, autoritário, não constrói coletivamente alternativas. Eis o «estado de exceção». As demais medidas desse estado, contudo, não se dão de modo equitativo. Precarizado, o Estado tem dificuldades em responder às emergências. A tragédia vai ganhando maiores proporções e, aos poucos, desmontando o mito de que o contágio não reconhece classes sociais. Como observa David Harvey (2020: 21), “o COVID-19 exibe todas as características de uma pandemia de classe, de gênero e de raça”, o que vem ao encontro da afirmação de Boaventura Sousa Santos (2020, n.p.) – “Sabemos que a pandemia não é cega e tem alvos privilegiados.”

Como alvo privilegiado da pandemia, somam-se aos Kim outros grupos para os quais a quarentena é mais difícil ou impossível – os que não possuem casa; os que possuem casas que, precárias, inviabilizam medidas higienistas; os que possuem casas e que não podem isolar-se, ou porque atuam na «linha de frente do sistema» (saúde, abastecimento) ou porque precisam optar entre a proteção e a provisão de seus lares (supermercado, planos de saúde, etc.) (Harvey, 2020; Santos, 2020) [9]. Esses grupos foram-se avolumando nos últimos 40 anos. Permanecendo mais ou menos despercebidos, ganham agora maior notoriedade por comprometer o sistema como um todo. Em muitos países, contudo, são assumidos como parte descartável de um «darwinismo social» que se desfaz dos que não são produtivos ou não são consumidores potenciais (Santos, 2020).

Também na pós-ficção a morte só acontece entre os Kim, restando aos Park mortes mais simbólicas. Além do fim da união conjugal, talvez a morte mais penosa para os Park seja a do seu padrão de consumo, inoperante nas condições atuais da pandemia (Harvey, 2020).

E é essa inoperância – essa possibilidade do (hiper) capitalismo cair por terra, como sugere Boaventura de Sousa Santos (2020) –, que irá talvez acelerar aquilo que transcorria lentamente, que irá dar visibilidade ao que era despercebido, que irá viabilizar o que era, até então, inconcebível.

“Torna-se possível ficar em casa e voltar a ter tempo para ler um livro e passar mais tempo com os filhos, consumir menos, dispensar o vício de passar o tempo nos centros comerciais, olhando para o que está à venda e esquecendo tudo o que se quer, mas que só se pode obter por outros meios que não a compra. A ideia conservadora de que não há alternativa ao modo de vida imposto pelo hipercapitalismo em que vivemos cai por terra” (Santos, 2020, n.p.).

E o que virá em alternativa?

 

3. Da pós-ficção à pós-pandemia – um fim ou considerações finais

O porvir pandêmico é tão incerto quanto aos arrastados dia-a-dia de quarentena e quanto à condição mutante dos vírus. Os mais otimistas sugerem o surgimento de novos tempos e de alternativas individuais e coletivas aos modos de viver e consumir que, de tão longamente impostos, são como bunkers que nos impedem de ver luzes e de respirar. Num sentido oposto, o porvir pandêmico parece sugerir aos pessimistas, ou aos mais realistas, o receio de um endurecimento do poder dominante para a retomada da «normalidade», aquilo que se tinha antes da quarentena, ou da «normalidade de exceção», em que seremos submetidos a crises contínuas e futuras quarentenas, como questiona Boaventura de Sousa Santos:

“Desaparecerá o Estado de excepção que foi criado para responder à pandemia tão rapidamente quanto a pandemia? Nos casos em que se adoptaram medidas de protecção para defender a vida acima dos interesses da economia, o regresso à normalidade implicará deixar de dar prioridade à defesa da vida?” (Santos, 2020, n.p.)

De qualquer forma, o regresso à normalidade não será fácil. Será difícil para todos, sobretudo para aqueles representados pelos Kim, os desabrigados, os desempregados, os precarizados. A esses restará aceitar o «novo normal», cavando mais fundo o seu bunker, invisibilizando-se ainda mais, para então morrer ou, em pequenas escapadelas, «parasitar com civilidade» famílias como a dos Park ou, em desobediência civil, saquear o supermercado da esquina. Aos representados pelos Park, restarão ainda sobras econômicas para ajustes financeiros, pagamentos de planos de saúde e terapeutas e, se restar algum saldo, para o e-market, o que, contudo, não deixará de ser uma legítima condição de sofrimento.

Todos seguirão sós, no isolamento social que vem na contramão de qualquer comoção e mobilização para a solidariedade. Sós, órfãos de entes queridos mortos e enterrados em vala comum, sem rituais de despedida. Sós, ignorados por um Estado que, desmantelado, é incapaz de articular novas soluções políticas, econômicas e sociais. Sós, pela potência do poder econômico e das fake news que apagam as pequenas fagulhas de esperança que partem de articulações comunitárias e da educação. Sós, pela impossibilidade de planejar o amanhã, ficando à deriva de vidas sem propósito. Sós...

Sem conseguir romper tamanha solidão, aos Kim e aos Park não foi concedido final feliz, e tampouco triste. O fim assume a atmosfera melancólica de algo reticente, como a realidade caótica dos seus mundos durante a pandemia, que anestesia o que é sentido e pensado. O destino de suas vidas, apesar de confrontado com as recentes reflexões, ainda se mostrou fugidio, à beira de um abismo.

Reticentemente, o único fim possível é: «Mas a primavera chegou e as flores estão desabrochando».

 

Bibliografia

Ambrósio, R. V. (2020) “Um Tour pelas Locações do Filme Parasita”, Korea Post- Corean Culture, disponível em https://www.koreapost.com.br/conheca-a-coreia/turismo/um-tour-pelas-locacoes-do-filme-parasita/.

Balhorn, M. (2020) “O filme ‘Parasita’ é um retrato do neoliberalismo sul-coreano”, Diário do Centro do Mundo, disponível em https://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-filme-parasita-e-um-retrato-do-neoliberalismo-sul-coreano-por-max-balhorn/.

BBC (2020) “Parasita: as pessoas reais que vivem nos porões de Seul retratados pelo filme”, Jornal G1, disponível em https://g1.globo.com/pop-arte/cinema/oscar/2020/noticia/2020/02/05/parasita-as-pessoas-reais-que-vivem-nos-poroes-de-seul-retratados-pelo-filme.ghtml.

Belin, L. (2020) “Minimalista e deslumbrante: conheça a casa do filme Parasita”, Jornal Gazeta do Povo, disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/haus/estilo-cultura/parasita-casa-filme-coreano-oscar/.

Carini, M. (2019) “A casa do filme Parasita e seu arquiteto fictício, apaixonado pelo Sol”, Casa Abril, disponível em https://casa.abril.com.br/arquitetura/a-casa-do-filme-parasita-e-seu-arquiteto-ficticio-apaixonado-pelo-sol/.

De Masi, D. (2001) O ócio criativo, Rio de Janeiro: Sextante.         [ Links ]

Farinha, R. (2020) “A história da casa de “Parasitas” – que foi construída de propósito para o filme”, NIT-PT, disponível em https://nit.pt/coolt/cinema/historia-da-casa-parasitas-construida-proposito-filme.

Han, B. (2020) “La emergencia viral y el mundo de mañana”, in ASPO (edit.) Sopa de Wuhan. Pensamiento Contemporaneo en tempos de Pandemias, disponível em http://tiempodecrisis.org/wp-content/uploads/2020/03/Sopa-de-Wuhan-ASPO.pdf?fbclid=IwAR386959-_q7FG9ZCeGsEFSxGBOerZNNMf3s1hmLn8nYjcieT4QA-yyx6zE%3E.

Harvey, D. (2020) “Política Anticapitalista em Tempos de Covid-19”, in M. Davis et al., Coronavírus e a luta de classes, Brasil: Terra sem Amos, pp. 13-24.

Labbate, M. (2020) “Bunkers milionários: o novo jeito de escapar da pandemia”, Forbes, disponível em https://forbes.com.br/negocios/2020/03/bunkers-milionarios-o-novo-jeito-de-escapar-da-pandemia/.

Minji, L. (2020) “Parasite shines light on semi-basement apartments in S. Korea”, Yonhap News Agency, disponível em https://en.yna.co.kr/view/AEN20200212006500315.

Santos, B. de S (2020) A Cruel Pedagogia do Vírus, Coimbra: Almedina.         [ Links ]

Willmersdorf, P. (2020) “Pizzaria de ’Parasita’ vira ponto turístico após Oscar de melhor filme”, Jornal O Globo, disponível em https://oglobo.globo.com/cultura/pizzaria-de-parasita-vira-ponto-turistico-apos-oscar-de-melhor-filme-24249941.

Wisnik, G. (2020) “Conflito de ’Parasita’ se revela em casas de ricos e pobres”, Jornal Folha de São Paulo, disponível em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/02/conflito-de-parasita-se-revela-em-casas-de-ricos-e-pobres-diz-wisnik.shtml.

 

Referências Fílmicas

Flight, T. (2020) The Visual Architecture of Parasite (video), disponível em https://www.youtube.com/watch?v=AvO8-925Edc.

O Hospedeiro (longa-metragem) Dir. Bong Joon-ho, 2007 (120m).

Okja (longa-metragem) Dir. Bong Joon-ho, 2017 (118m).

Parasita (longa-metragem) Dir. Bong Joon-ho, 2020 (132m).

Snowpiercer (longa-metragem) Dir. Bong Joon-ho, 2013 (126m).

 

NOTES

[2] Podem Ilustrar o argumento Belin, 2020; Carini, 2019.

[3] Podem Ilustrar o argumento: Ambrósio, 2020;Willmersdorf, 2020.

[4] Podem Ilustrar o argumento: BBC, 2020; Minji, 2020.

[5] Neste filme, um monstro mutante da poluição química invade uma cidade, devorando pessoas. Entre outros filmes do mesmo diretor com temáticas similares, pode-se citar: Snowpiercer ou Expresso do Amanhã (2013), em que um experimento científico leva a futuro distópico e a uma guerra de classes entre sobreviventes que transitam entre vagões de um comboio em contínuo movimento; Okja (2017), em que uma porca, geneticamente modificada, é disputada por poderosa multinacional e o amor de uma criança.

[6] Assisti ao filme Parasita em Lisboa, quando os cinemas amparavam a promíscua troca de vírus entre o público. Estava ali no âmbito de um pós-doutoramento. Com a suspensão das atividades académicas em Portugal devido à pandemia, voltei ao Brasil. Aqui, em quarentena e cuidando dos meus pais, o cinema tem sido refúgio, onde assisti filmes de Bong Joon-ho – Parasita e Okja , revistos; e O Hospedeiro e Expresso do Amanhã, vistos pela primeira vez.

[7] O conto isolado foi submetido ao concurso literário Contos da Quarentena do site Brasil 247. Entre 1827 inscritos, foi selecionado entre os 68 melhores contos. Sobre o assunto, consultar: https://www.brasil247.com/cultura/concurso-contos-da-quarentena-do-247-divulga-68-finalistas

[8] A ideia dos contrapostos no filme pode ser examinada em Flight, 2020.

[9] No Capítulo 3, Santos elenca grupos mais afetados pela exploração capitalista, denominas por ele como “Sul”, e que são mais vulneráveis à pandemia: mulheres, trabalhadores autônomos (informais) e de rua, moradores de rua e das periferias pobres, refugiados e imigrantes, deficientes e idosos, presos e pessoas com deficiência mental.

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