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CIDADES, Comunidades e Territórios

versión On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.40 Lisboa jun. 2020

https://doi.org/10.15847/cct.jun2020.040.ess02 

ENSAIO

 

Retalhos de uma cidade confinada em 2020: entre realidade e utopia. Ensaio coletivo em tempos de Pandemia

Fragments of a confined city in 2020: between reality and utopia. Collective essay in Pandemic times

 

Laura SobralI; Marta VicenteII; Rui MendesIII; Sara JacintoIV; Susana RegoV; Ylia BarssiVI

[I]ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. e-mail: laura_sobral@iscte-iul.pt

[II]ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. e-mail: marta_alexandra_vicente@iscte-iul.pt

[III]ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. e-mail: rui_mendes@iscte-iul.pt

[IV]ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. e-mail: sara_jacinto_silva@iscte-iul.pt

[V]ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. e-mail: usana_rego@iscte-iul.pt

[VI]ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. e-mail: arq.yliabarssi@gmail.com

 

 


 

Nos tempos incertos que vivemos são muitas as questões que se colocam. Quase todas prontas a vestirem-se de inquietações e perguntas de partida para os mais atuais e fraturantes projetos de investigação. Todas elas representantes de dúvidas inquietantes de quem anseia compreender o que se segue, como se segue, onde se segue... Como que numa tentativa, mais ou menos frustrada e mais ou menos frustrante, de estar um passo à frente. Por agora não parecem existir respostas, apenas hipóteses. Tudo parece estar numa momentânea adaptação a esta nova e desconhecida realidade.

Dentro da normalidade, a cidade era passagem. Caminho entre a casa e o trabalho, passagem entre a casa e a escola, percurso entre a casa e as compras, espaço para encontrar com os amigos. Instalada a pandemia ficou clara a metamorfose de uma cidade que causa grande estranhamento.

As ruas têm menos movimento, o ar está mais limpo, a cidade mais silenciosa. As pessoas parecem estar mais atentas umas às outras porque, além das preocupações partilhadas, também sabem que se podem contaminar mutuamente. Sobressaem as sensibilidades na mesma proporção que as solidariedades. O que se pode aprender sobre o valor da colaboração e da solidariedade num tempo de uma crise inédita, da procura de compreender o outro apesar das distâncias e das máscaras, de um olhar sistémico e controlador sobre a estranheza do que nos rodeia?

Há medidas emergenciais por parte do Estado, como a regularização de imigrantes, o reforço do Sistema Nacional de Saúde e a ampla valorização do seu papel na gestão desta pandemia, o assegurar de rendimentos mínimos para os que mais precisam, a flexibilização no pagamento de rendas habitacionais devido à quebra de rendimento das famílias, entre outros. Porém, cada cidadão também é chamado a assumir a sua quota parte de responsabilidade na gestão quotidiana desta crise sanitária. Além do cumprimento das regras decretadas pela sucessão de estados de ’emergência’ e ’calamidade’, o cuidado com os vizinhos é fundamental e até não comprar mais do que se necessita se tornou um ato humanitário tão importante como manter as necessárias ’distâncias sociais’, sublinhando-se o paradoxo desta situação.

O estado de exceção colocou a vida em suspenso, como se o tempo pudesse ser parado. A cidade, também ela em suspenso, permite que se valorizem os encontros, os espaços desses encontros, a qualidade dos espaços desses encontros. Descobriu-se também o (hiper)local. Agora é mais seguro ir só até onde os pés nos podem levar. Caminhar perto de casa tornou-se uma novidade e até permitiu descobrir novos mundos, micro-espaços, mas não menos importantes devido à sua escala. Confinados às nossas pequenas cidades-casas não nos resta muito mais do que explorar as suas múltiplas dimensões e novas formas de habitar, tanto no seu sentido físico, como no seu sentido ontológico.

Já se passou pela fase de viver na cidade sem sair de casa e ninguém tem a certeza se a ela voltaremos em breve. Esta alteração à forma de viver (n)a cidade obrigou, naturalmente, a uma nova relação com o espaço da casa, que nas últimas semanas também terá mudado substancialmente. A casa é agora escritório, restaurante, rua e até cidade... Espaço de múltiplas funções executadas quase sempre em família, mesmo quando a família passou a estar ainda mais absorta no ecrã do telemóvel, ou quando se brinda com os amigos de sempre, ainda que também por via dos mesmos dispositivos eletrónicos.

Dentro da casa tanto se redescobrem como reinventam novos espaços. Cada janela é agora muito mais do que uma simples fonte de luz e de ar. A partir da janela vemos, ouvimos, cheiramos e sentimos a cidade. É assim que se percebe como ela está diferente e se tenta adivinhar o curso das mudanças. De cada janela questionam-se os direitos que se consideraram garantidos e que tiveram de ser suspensos em nome de um bem maior. Entretanto anseia-se por uma nova normalidade e que venha rápido para nos resgatar da janela e devolver a cidade.

Lendo e discutindo Lefebvre pensámos conhecer de cor os contornos do Direito à Cidade (1968). Talvez também tenhamos considerado esse direito como garantido, ainda que conscientes da fragilidade que acompanha as nossas democracias e os valores económicos pelos quais se regem. Ainda que conscientes da intemporalidade desta obra, não pensaríamos que um dia, sentados à janela, poderíamos questionar sobre a dimensão representativa do direito à cidade quando não se pode sair de casa. Que direito a que cidade quando também ela aguarda, expectante, por uma nova realidade? E que direito a que cidade para aqueles que nem casa têm? Neste período em que tudo parece subitamente diferente e em simultâneo igual, é um desafio conseguir olhar para o futuro com otimismo, com capacidade de mudança. Será que a cidade, a sociedade e nós próprios, iremos agir em continuidade ou, ao invés disso, observaremos uma rutura?

Diariamente, procuram-se respostas provisórias, reinventam-se formas de estar e de viver (n)a cidade. Por todo o lado surgem presságios de revolução, imperativos de construir um mundo alternativo, um novo sistema. O tempo abrandou e finalmente parece ter surgido uma oportunidade para pensar, dizem-nos. Mas a pandemia do medo que o vírus trouxe consigo turva a visão do caminho e a incerteza que alimenta esse mesmo medo faz-nos recuar. O paradoxo de que tudo permaneça igual e que nada será como antes congela-nos. Até onde estaremos dispostos a mudar?

Tanto o medo do futuro, como a ansiedade pela mudança acabam por desfocar os problemas do agora. O mundo em suspenso afinal é só para alguns e, apesar de não aparecerem nas notícias, sabemos que os imigrantes continuam a naufragar no Mediterrâneo, as crianças continuam a morrer no Iémen, os sírios continuam presos ao seu destino de guerra. O medo tem esse poder, reduz-nos à nossa própria bolha tapando-nos os olhos para o que não pertence ao problema que enfrentamos. Nesse sentido, provoca a mesma alienação em relação ao ’outro’ que existia antes, agora justificada por um vírus que não escolhe classe, raça ou género, dizem. Sabemos que isso não é verdade, que o vírus não é democrático, no sentido em que a exposição ao mesmo não é controlada por todos de igual forma. Por aqui, o mesmo sentido agregador que a pandemia parece ter trazido parece ocultar ainda mais as diferenças sob o desígnio de que ’estamos todos juntos’ e ’vai ficar tudo bem’. Mas como estamos todos juntos se há pessoas sem um teto e quando a casa parece ser a arma mais poderosa contra a doença? Se o teletrabalho é só para uns, enquanto outros têm de se sujeitar às condições de sobrelotação dos transportes públicos?

O vírus não é democrático hoje, e talvez seja esse o ponto de partida para uma discussão sobre essa ’democracia por vir’ derridiana (Derrida, 2009), o ’por vir’ como promessa, como impossibilidade que gera caminhos, que se abre ao ’outro’ e à diferença, ao que está fora do radar da pandemia, para cogitar a alternativa. Ao questionar a condição democrática do vírus questionamos a sociedade como um todo. Não apenas a forma de habitar, de fazer cidade, de fazer política, de criar relações, mas uma sociedade que aceita o isolamento pelo medo de algo invisível e, ao mesmo tempo, parece ignorar a existência bem visível da desigualdade social em democracia.

Nesta fase de repensar tudo e especialmente a nossa forma de comunicar, deve-se considerar que nos fragmentamos em telas muito antes da pandemia ser declarada. Aderimos ao escudo do nosso ecrã como uma forma de nos apresentar ao mundo. Temos a ilusão de saber mais dos indivíduos através das suas redes sociais, do que pela sua própria personalidade e carácter, presencialmente e sem câmaras a gravar.

Assim vamos também redescobrindo ambientes dentro de nós. Quando privados de contato com os demais, de rotinas que sempre preencheram os nossos dias longos, dispensamos parte da nossa individualidade para fazer o que é melhor para o bem comum. Antes queríamos mais horas para os hobbies, visitar mais museus, conhecer mais de outras culturas, viajar, ler livros, ter mais tempos para amores e amigos. Hoje continuamos a sonhar com tudo isso porque o tempo se esgota de igual forma, ainda que confinados em casa.

Este confinamento à casa permitiu ainda redescobrir novos significados para os espaços in-between, entre espaços constituídos por portas, janelas, varandas, terraços e quintais. Estes elementos intermédios de ligação parecem ter ganhado uma renovada importância, que não só confortam no meio da incerteza, como se permitem a novas apropriações, como um pequeno jardim, uma esplanada ou uma bancada de espetáculo fictícia onde podemos aplaudir heróis, manifestar ideias, posições e outros estados de alma. Esta consciência facilita a compreensão do potencial que estes espaços têm na configuração de um espaço real e múltiplo. Neles, o interior (casa) coexiste com o exterior (cidade), tal como o individual coexiste com o coletivo, sem necessidade de recorrer à acentuação arbitrária de um em função do outro, ou deformar o seu significado. Talvez fosse importante refletir sobre estas aprendizagens e procurar estender à cidade as características destes entre espaços.

Estas questões não se podem dissociar das reflexões sobre nós mesmos e sobre a nossa relação com os múltiplos ecossistemas com os quais interagimos. Observamos a diminuição dos níveis de poluição e a natureza aparenta ganhar espaço com a nossa ausência. Ao associarmos o termo coletivo apenas à nossa espécie, não estaremos a sobrevalorizar o termo individual em detrimento de um coletivismo mais amplo, mais verdadeiro? Parece faltar na nossa relação com o mundo uma posição intermediária – como uma janela ou varanda – um entre espaço entre o coletivo e o individual.

Perante tantas medidas emergenciais que fazem repensar o mundo em que vivemos e, sobretudo, reequacionar o futuro próximo, importará questionar também de que forma iremos superar esta situação e o que vamos aprender com ela quando chegar a ’nova’ normalidade? Neste refazer do dia a dia parece que descobrimos maior proximidade nos quotidianos partilhados. A colaboração entre os países mostrou que a humanidade também pode não ter fronteiras e a maior solidão fez-nos valorizar os momentos de comunhão e encontro com quem nos é próximo.

Estamos todos – ou não estamos – em fotografias (como as de Paulo Catrica) onde habitualmente não se vislumbram pessoas, mas onde toda a pertença humana está nos vestígios, nos restos que habitam as imagens da geometria não exata das cidades. A imperfeição e a incompletude das cidades são o território que nos habituámos a reivindicar cada vez mais nosso. É preciso continuar a construir os espaços da sociabilidade e da proximidade, da justiça e da democracia. Ouvem-se perspetivas sobre a volta da normalidade e questionamos as palavras que não parecem fazer já grande sentido.

Entretanto, a rua e o espaço público das nossas lutas vão ganhando outras geometrias e emoções. O futuro é incerto, mas a capacidade de sonhar a alternativa e de redescobrir a beleza permanece. Pois tal como disse Lefebvre, “Quem, nos dias de hoje, não é utópico?”

 

Referências bibliográficas

Derrida, J. (2009) Vadios, Palimage, ISBN 9789728999773.         [ Links ]

Lefebvre, H. (2012 [1968]) O Direito à Cidade, 1ª Edição, ed. Lisboa Estúdio e Livraria Letra Livre, ISBN 9789898268750.         [ Links ]

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