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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.40 Lisboa jun. 2020

https://doi.org/10.15847/cct.jun2020.040.ess01 

ENSAIO

 

Fendas numa cidade dividida: Habitação popular na cidade de São Paulo

Cracks in a split city: Popular Housing in the City of Sao Paulo

 

Luis Octavio P. L. de Faria e SilvaI

[I]Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, Brasil. e-mail: lifariaesilva@gmail.com

 

 


RESUMO

Este ensaio traz considerações sobre os bairros populares da cidade de São Paulo (periferias, favelas, ocupações de edifícios por parte de movimentos de moradia e conjuntos habitacionais), tendo por base uma década de trabalho sistemático de observação. Nele se observam os vários movimentos no sentido da configuração do espaço da habitação popular paulistana, desde os primeiros esforços de reverter a cisão estabelecida na cidade a partir da experiência moderna que ali se instala no final do século XIX, passando em revista algumas ações do Poder Público ao longo do século XX e instrumentos recentes de planejamento. O texto aqui apresentado vai em busca de possibilidades no enfrentamento do grande desafio relativo à habitação na cidade de São Paulo, a saber, seus bairros populares, com suas múltiplas precariedades. Habitação é aqui entendida no seu sentido pleno, ou seja, moradia associada a infraestrutura urbana e equipamentos públicos.

Palavras-chave: Habitação popular, habitação social em São Paulo, bairros precários paulistanos.


ABSTRACT

This essay brings considerations about the popular neighborhoods of the city of São Paulo (peripheries, slums, occupation of buildings by housing movements and housing estates), based on a decade of systematic observation work. It seeks to observe the various movements towards the configuration of the space of popular housing in São Paulo, from the first efforts to reverse the split established in the city from the modern experience that settled there at the end of the 19th century, passing through reviews of some actions of the Public Power throughout the 20th century and recent planning instruments. The text presented here looks for possibilities in facing the great challenge with regard to housing in the city of São Paulo, namely, its popular neighborhoods, with their multiple precariousness. Housing is understood here in its full sense, that is, housing associated with urban infrastructure and public facilities..

Keywords: popular housing, social housing in Sao Paulo, precarious neighbourhoods of Sao Paulo.


 

“(...) todos os dias aparece um pobre coitado aqui na favela, encosta num parente e vão vivendo (...).”

Diário de Carolina Maria de Jesus, p.132, referente ao dia 4 de Janeiro de 1959 [2]

 

Paisagem e ocupação humana em São Paulo até ao fim do século XIX

O sítio onde se desenvolveu a ocupação humana que resultou na megacidade de São Paulo corresponde a parte da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê. Trata-se de um vale encravado no Planalto Atlântico, a menos de 100 quilómetros do mar, mas a partir deste é necessário escalar uma serra com desnível de pelo menos 800 metros para atingir aquela região antigamente chamada de Campos de Piratininga

O rio Tietê, eixo central daquela Bacia, quando chega à região hoje intensamente urbanizada de São Paulo, corre numa planície relativamente ampla, leito maior daquele curso de água que se inicia junto a morros da face ocidental da chamada Serra do Mar. Essa planície junto ao Tietê, na região da cidade de São Paulo, é assimétrica: na sua margem esquerda é ampla enquanto na margem direita encontra colinas e morraria das serras ao norte, de onde brotam muitos ribeirões e rios, que percorrem uma morfologia acidentada pouco urbanizada até meados do século XX. Divisores de águas entre o Tietê e os afluentes da sua margem esquerda, por sua vez, foram ocupados com mais intensidade desde o seiscentos e ali se iniciou a urbanização paulistana [3].

A ocupação desse compartimento do Planalto Atlântico inicialmente buscava sítios estratégicos quanto à provisão de víveres e para defesa, além, também, em função de significados simbólicos neles presentes. Até meados do século XIX, a região de São Paulo assim foi ocupada: as vilas e bairros rurais se estabeleciam em topos de colinas e, por uma série de razões, não se via nelas uma nítida separação espacial entre ricos e pobres, cujo cotidiano era significativamente semelhante quanto à relativa escassez de recursos e austeridade, ainda que vigorasse um sistema escravagista.

No Planalto paulista não se via a riqueza proveniente da cana de açúcar que fazia do nordeste brasileiro uma região de maiores contrastes sociais. Esse quadro se transforma com vigor sobretudo no último quartel do século XIX, com a libertação da população até então escravizada e que passou a viver frequentemente segregada em lugares mais distantes e pouco valorizados. Estas condições de vida eram em geral partilhadas por outros excluídos, como muitos dos imigrantes que afluíam à cidade em função de incentivos estatais brasileiros, que atraíam mão de obra estrangeira em troca das viagens para aqueles que viessem fugidos das crises socioeconómicas em seus países de origem.

A infraestrutura que se estabeleceu para a produção, algum processamento e escoamento do café paulista, importante produto do agronegócio naquele período, trouxe a reboque não só imigrantes em busca de novas perspectivas de vida, mas também novos costumes e dinâmicas económicas. Também já a partir do final do oitocentos se estabeleceram em São Paulo as primeiras indústrias e, consequentemente, seus operários, que compartilhavam com seus congeneres na Europa e América do Norte os baixos níveis de salários e precária qualidade de vida.

Assim nasce a cidade dividida de São Paulo, onde bairros novos são desenhados para os ricos, enquanto bairros pobres surgem junto às fábricas e entrepostos relacionados com a ferrovia, abrigando operários e recém libertos – os pobres que naquela condição inaugurada não têm lugar junto aos remediados. Ao longo do século XX, a cidade de São Paulo vê aumentar a separação entre uma parte próspera, onde existem equipamentos e infraestrutura, em detrimento de outra parte onde a precariedade é a regra dominante.

 

O lugar dos pobres em São Paulo

“Poucas vezes na história do urbanismo terá ocorrido um fenômeno semelhante, uma cidade reconstruída duas vezes sobre o mesmo assentamento. A descoberta de uma cidade inteiramente construída de barro surpreendeu os viajantes no início do século XIX (...) e, a partir do momento em que a ferrovia chegou às novas terras produtoras de café, a cidade [de São Paulo] conheceu um crescimento incontrolado. (...) Com os imigrantes vieram novas técnicas de construir e a cidade foi reconstruída integralmente (...). Até a Segunda Grande Guerra a cidade conservou sua imagem de metrópole do café. A partir de então, os grandes empreendimentos imobiliários vieram destruir, um a um, os documentos arquitetônicos da cidade. Os poderes públicos sempre ficaram para trás da iniciativa privada e um código de obras anacrônico permitiu um uso abusivo do solo. (...)” (Toledo, 2004: 181)

Entre o final do século XIX e o início do XX, quando já é característico da cidade de São Paulo esse processo de sua destruição e reconstrução contínua, construções esparsas num meio entendido como rural abrigavam famílias despossuídas, que também se instalavam nos ambientes urbanos em cortiços (conjuntos de cômodos que compartilham banheiros, cozinha e lavandaria) construídos por especuladores que contavam com lucros importantes, obtidos de uma população locatária sem recursos nem proteção legal ou do Estado. Houve também uma produção rentista que resultava em vilas para aluguel, habitadas sobretudo por famílias de pouca renda que conseguiam escapar da vida nos cortiços, ainda que sempre com insegurança quanto à sua capacidade financeira e sob a ameaça constante de despejo. Algumas indústrias mantinham vilas operárias, algo que significava uma dupla condição para aqueles que ali moravam, já que a relação de dependência decorrente levava a situações em que horários de descanso não eram necessariamente respeitados e patrões ou encarregados não hesitavam em insinuar a possibilidade de despejo em caso de insubordinação. Ecos pálidos dos falanstérios, apropriação burguesa de visões dos chamados socialistas utópicos, as vilas operárias em São Paulo tiveram na Vila Maria Zélia um exemplo máximo. Outras indústrias mantiveram vilas operárias, mas raras foram aquelas que contavam com equipamentos como a escola e a igreja do conjunto da Vila Maria Zélia, inaugurada em 1917 na margem esquerda do rio Tietê, próximo à indústria propriedade da família Street (Figura1).

 

 

Até aos anos de 1930 os pobres paulistanos viviam, em geral, em conjuntos de casas de aluguel que representavam a aposentadoria de muitos idosos paulistanos que delas eram proprietários e locadores, em vilas operárias e em cortiços, além de em alguns casebres esparsos nas áreas menos urbanizadas.

Nos anos 1940, alguns aglomerados de construções muito precárias passaram a fazer parte da paisagem urbana paulistana. É o caso da favela da Vila Prudente, considerada como a primeira a se formar em São Paulo, e da favela do Ibirapuera (removida na altura da construção do parque no 4º centenário da cidade, em 1954) (Figura 2), entre outras: “Em São Paulo, julga-se que as primeiras favelas apareceram na década de 40. O Diário de São Paulo (1/10/1950) relata uma pesquisa feita pela Divisão de Estatística e Documentação da Prefeitura de São Paulo (hoje extinta) sobre a favela do Oratório, na Mooca, zona leste de São Paulo. Ali moravam 245 pessoas em moradias de tábuas, com apenas 6 vasos sanitários para uso de todos. Também no mesmo ano encontrou-se referência à favela da Rua Guaicurus, na Lapa (zona central) com 230 domicílios e 926 pessoas. No Diário de São Paulo de 6/8/1950, um artigo sobre a favela do Ibirapuera (27 domicílios, 144 pessoas) já comentava que os moradores desse assentamento eram pessoas pobres e não vadios e malfeitores, fortalecendo uma evidência empírica retomada na década de 70. Datam também da década de 40 a favela Ordem e Progresso, na Barra Funda, zona central do município (hoje erradicada), a favela do Vergueiro, na zona sul (também erradicada) e a de Vila Prudente, na zona leste, ainda existente.” (Pasternak, 2001: 9)

 

 

Essas primeiras favelas paulistanas surgem num contexto de crescimento populacional da cidade, novo fôlego na sua industrialização e de remoções resultantes de transformações urbanas, além de profunda mudança no sistema de locação e incapacidade do Estado no sentido de atender a uma demanda crescente de moradias para famílias de poucos recursos. Em São Paulo, no entanto, mais do que nas favelas, os pobres instalavam-se nos chamados loteamentos de periferia, frequentemente irregulares, que se tornaram uma constante na paisagem, associados à autoconstrução por parte de seus moradores (Bonduki, 1998: 281).

É também na década de 1940 que começam a ser construídos conjuntos habitacionais viabilizados pelos Institutos de Aposentadoria e Pensões: uma produção importante, ainda que insuficiente diante da grande demanda que se colocava. Em São Paulo, alguns conjuntos de porte significativo são construídos junto a bairros industriais, além de edifícios isolados e conjuntos menores dispersos em áreas mais centrais. Esses conjuntos habitacionais passam a abrigar a classe operária e empregada nos serviços que se desenvolviam com vigor nos anos finais da segunda guerra mundial e nos anos subsequentes.

Embora presente desde há muito, o fenômeno favela, em São Paulo, só vai se desenvolver em larga escala nos anos 70. A montagem de um Cadastro de Favelas, na Secretaria do Bem-Estar Social, em 1973, permitiu uma mensuração bastante exata do número de favelas e domicílios. Nas moradias, aplicou-se um formulário abrangente, numa amostra ampla, sobre caracterização domiciliar e populacional. Através do dado “pessoas por unidade domiciliar” foi estimado o número da população favelada total. Em 1973/1974 a população favelada paulistana não alcançava 72 mil pessoas (71.840), cerca de 1,1 % da população municipal. ( Pasternak, 2001: 10)

Ainda que ocupações de áreas públicas e privadas continuassem a verificar-se nos anos entre 1950 e o final da década de 1960, vai-se dar um novo crescimento vertiginoso e favelização de grandes proporções em São Paulo no período do regime militar brasileiro, numa época que se apregoava um “milagre económico” devido ao elevado nível de crescimento da economia do país. É naqueles anos de 1970 que muitas das várzeas dos rios paulistanos vêem seus habituais campos de futebol e sítios de produção agrícola intermitentemente alagados serem ocupados a uma velocidade surpreendente. Lagoas e charcos no leito maior do rio Tietê e de seus afluentes (tanto naturais como resultantes de dragagens de areia para a construção civil e argila para indústria local) são aterrados e ocupados, ora por armazéns industriais, ora por favelas.

Sobretudo ao longo da década de 1970 foram realizados muitos conjuntos habitacionais de baixa qualidade construtiva para os pobres da cidade de São Paulo, com recursos do Banco Nacional de Habitação (BNH). O BNH era referência na estrutura estatal da ditadura militar brasileira, órgão que acabou por financiar também a construção de imóveis para a classe média paulistana num período que se caracterizou por uma grande produção imobiliária. Os conjuntos destinados às classes menos favorecidas, cujo exemplo máximo em São Paulo é representado pela Cidade Tiradentes, eram em grande parte feitos fora da área urbanizada, sem equipamentos públicos, com infraestrutura incipiente e incompleta. É apenas a partir da primeira década deste século que o Estado se fez efetivamente presente naqueles conjuntos, implantando equipamentos e infraestrutura articulada de mobilidade pública. A demanda por moradia para a população desfavorecida, no entanto, seguiu crescendo a um ritmo maior que o da produção habitacional governamental e do mercado imobiliário pouco voltado para aquele segmento. Assim sendo, bairros precários na periferia, distantes da infraestrutura urbana, e favelas ocupando terrenos cada vez mais impróprios em função de riscos de deslizamentos e afundamentos resultantes de erosão continuaram a surgir nas bordas e “fendas” da cidade que se expande para todos os lados.

Na década de 1980, em função de uma valorização imobiliária crescente, instala-se nas regiões de várzeas dos grandes rios da Bacia do Alto Tietê uma tensão entre expansão de áreas ocupadas por favelas e remoções promovidas em nome de projetos imobiliários. Simultaneamente, a pressão por ocupação das áreas de proteção dos mananciais da cidade de São Paulo intensifica-se, algo que segue até à atualidade. A mancha urbana paulistana, conurbada com áreas urbanizadas de uma série de municípios vizinhos atinge uma extensão imensa e com baixa densidade demográfica, algo desfavorável em termos ambientais e quanto à viabilidade de implantação e manutenção de redes de infraestrutura.

Segundo dados apresentados por Pasternak a partir dos Censos Demográficos de 1980 e 1991 e Contagem populacional de 1996, a população favelada em São Paulo era de 335.344 pessoas em 1980 (aumento de quase 500% em relação aos números referentes a 1974), 711.032 em 1991 e 747.322 em 1996 (Pasternak, 2001:16) [4].

A mesma autora fala de um crescimento das favelas de 3,06% de 1991 a 1996 em anel periférico da cidade de São Paulo, sendo negativo o crescimento em seus anéis centrais, algo que demonstra a expulsão dos pobres para as bordas da cidade e espraiamento urbano (Pasternak, 2001: 17).

No final dos anos de 1960 e ao longo da década de 1970, no Rio de Janeiro, o arquiteto Carlos Nelson Ferreira dos Santos (que foi assessor de uma organização de favelas [5] e trabalhou num órgão público que se dedicava a lidar com elas [6]), já chamava a atenção para o que via como uma construção coletiva com intensas relações, que deveriam ser compreendidas e não desprezadas como era de praxe – suas contribuições e levantamentos de favelas cariocas (como Brás de Pina e Catacumba) foram inaugurais na mudança de paradigma da ação pública em favelas, algo que em São Paulo teve reflexos nos anos de 1980.

Os movimentos sociais na cidade de São Paulo nasceram, de uma forma geral, a partir das Comunidades Eclesiais de Base (CEB) surgidas nos anos 1970 e ligadas à Igreja Católica, e foram fortalecidos com a redemocratização do país a partir dos anos 1980. Entre eles cabe destacar o MDF - Movimento de Defesa do Favelado, que se estabelece desde 1978 no sentido de lutar por melhorias nas favelas paulistanas. Alguns anos depois do seu surgimento (já no final da década de 1980), nasce a UMM - União dos Movimentos de Moradia, entidade que acolheria uma série de movimentos que buscavam melhores condições de vida para a população pobre, com ênfase no direito a uma moradia digna.

Desde os anos 2000 que os movimentos de moradia passam a reivindicar habitação para os pobres em áreas centrais e próximas ao emprego. Surgem Políticas Públicas de provisão de habitação social no centro paulistano e ocupações de edifícios subutilizados ou vazios também se tornam uma constante na paisagem urbana central da cidade. Assim, desde a primeira década do século XXI que edifícios no centro paulistanos têm sido convertidos em habitação de interesse social, a partir de reformas com atualização de sistemas prediais – processos atualmente chamados de retrofit (Figura 3) - que se defrontam com dificuldades quanto à aprovação dos projetos em função de nova legislação, que muitas vezes torna as obras excessivamente onerosas. Por outro lado, as ocupações de edifícios foram-se consolidando como realidade paulistana, sendo uma maneira de chamar a atenção para os movimentos de moradia, já que ocupar no centro paulistano ganha uma ampla divulgação, diferente do impacto da ocupação de terrenos nas bordas da cidade (Figura 4). Os movimentos de moradia, de uma forma geral, têm origem em bairros afastados do centro paulistano e, mesmo atualmente, grande parte dos seus participantes ocupa terrenos distantes dos bairros centrais.

 

 

 

Alguns planos, programas e projetos habitacionais têm sido empreendidos ou facilitados pelo Poder Público em São Paulo desde a extinção do BNH no final dos anos 1980, o que resultou em alguns conjuntos habitacionais de grande qualidade arquitetónica. Também o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) produziu, na sua modalidade Entidade, importantes conjuntos de boa qualidade na cidade, não obstante a dificuldade em construir em São Paulo devido aos custos envolvidos.

O PMCMV como um todo, no entanto, não contribuiu propriamente para qualificar as áreas onde os empreendimentos são implantados e reduzir a sua precariedade (Rolnik, 2015). A maior parte desses empreendimentos são erguidos por construtoras (modalidade Empresas) associadas ao que Rolnik refere como parte do complexo imobiliário-financeiro que se estabeleceu com vigor no Brasil nas últimas décadas: “A forma do condomínio fechado e murado, obrigatória para conjuntos verticais do programa, reproduz enclaves fortificados sobre um tecido urbano – das periferias consolidadas – fragmentado e desconexo, não contribuindo para transformá-lo ou qualificá-lo” (2015: 314).

Complementarmente ao exposto verifica-se uma tensão contínua em São Paulo quanto às transformações urbanas em relação ao lugar dos pobres na cidade. As margens ou bordas da cidade, internas ou externas, têm sido os lugares permitidos à população pobre, desde os libertos e mão de obra imigrante na viragem do século XIX para o XX, aos migrantes brasileiros que desde meados do século XX têm abandonado o campo para se lançarem à aventura na cidade/metrópole brasileira. Toda esta população tem sido entendida como reserva de mão de obra barata para serviços, construção civil e indústria, vivendo em margens ou interstícios que são ocupados e crescem «sem Estado e sem Mercado» em áreas de risco geológico ou ambientalmente frágeis (Maricato, 2003: 154). Estes espaços correspondem à «cidade informal», como se não tivessem forma própria. Hoje fala-se de áreas de ocupação precária na Macrometrópole paulista, já que o fenómeno das ocupações precárias passou a ter essa escala, com densificação de favelas existentes e ocupações de terras em vários municípios, num padrão de moradia e urbanização com precariedades.

 

Terra de quem? A questão fundiária no país

O Brasil resulta de uma «ocupação» com pouco mais de 500 anos. Nesse sentido, a maneira como os povos originários são tratados não deixa de ser emblemática, já que quem ali habita desde tempos imemoriais tem que lutar para garantir o seu modo de vida, que não tem como prerrogativa a posse da terra, nos termos da propriedade documentada em cartório – forma de propriedade que se efetiva no Brasil a partir da Lei de Terras, no século XIX. Antes desta Lei, a terra era uma concessão, pertencendo em última instância, à Coroa (primeiro à Coroa portuguesa e, depois da Independência, à Coroa brasileira). Nos primeiros séculos da experiência colonial portuguesa na América do Sul, os donatários de terra escolhidos pela Coroa podiam conceder a posse da terra e tinham o direito de estabelecer vilas.

O modelo atualmente vigente, derivado das transformações decorrentes da Lei de Terras e referendado pela República proclamada no final do século XIX, trata a terra como património inviolável e como mercadoria. A origem da propriedade da terra no Brasil, no entanto, é a posse e a ocupação em tempos antigos. Não raramente surgem situações em que documentos de posse têm base em declarações de presença atestada de muitos anos num determinado terreno. Há grandes disputas e resistências quanto a esses títulos de propriedade. Ao mesmo tempo persistem no Brasil outros modelos de propriedade: a concessão segue quanto às terras nas faixas marinhas e ilhas. Terras públicas têm sido também, em algumas cidades brasileiras, objeto de termos de concessão de uso por parte de população de poucos recursos que as ocupam, graças a instrumentos criados a partir de marcos regulatórios recentes e socialmente comprometidos. A terra, no entanto, segue como uma grande limitação na busca por igualdade de condições para a população brasileira em geral, paulistana em particular.

De quem é a terra? Esta é uma pergunta que fica frequentemente no ar. A Constituição Federal Brasileira de 1988 trouxe a perspectiva da Função Social da Propriedade – algo regulado no Estatuto da Cidade, um marco referencial no país que foi base para muitas ações no sentido de consolidar locais de moradia dos pobres, habitualmente removidos em operações impiedosas envolvendo a polícia. A terra, na nova concepção, tem que servir à sociedade como um todo e não deverá ser tratada como privilégio de poucos. A concentração de terras no Brasil em mãos de um pequeno grupo é um paradoxo a ser enfrentado. Levanta-se a perspectiva de que os proprietários são zeladores das terras, mas o seu uso deverá ter indicação social, em resultado de pacto coletivo e democrático.

Um dos procedimentos para lidar com a questão da habitação em São Paulo tem sido a regularização fundiária, cuja defesa é associada a um projeto de urbanização quando necessário, mas que em geral traz à luz a questão da segurança da manutenção da população pobre em bairros e casas de autoconstrução, onde frequentemente as redes de infraestrutura e equipamentos já foram instalados, mas a ausência da posse fragiliza famílias que ali vivem algumas vezes há algumas gerações.

Há nas políticas públicas brasileiras uma ênfase na ideia de propriedade individual da terra, deixando-se de lado outras possibilidades, como a manutenção da condição pública de conjuntos edificados a partir de recursos governamentais, que poderiam ser geridos através de programas de locação social, numa parceria com movimentos sociais organizados. Nesse sentido, Rolnik refere que “(...) o sistema oficial de financiamento da habitação e do desenvolvimento urbano federal (...) jamais reconheceu outros instrumentos que não a propriedade plena escriturada como passíveis de garantir a total segurança da posse, apesar de o ordenamento jurídico incluir outros instrumentos.” (2015: 321)

 

Características das favelas paulistanas

“Quando eu vou na cidade tenho a impressão que estou no paraizo [sic]. Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferente da favela. As casas com seus vasos de flores e suas cores variadas. Aquelas paisagens há [sic] de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas úlceras. As favelas.”

Jesus, p.76, referente ao dia 7 de Julho de 1958

Carolina de Jesus, no seu diário cujo fragmento está acima reproduzido, refere-se às favelas paulistanas da década de 1950. O contraste entre elas e os bairros ditos formais mantém-se, ainda que atualmente as favelas em São Paulo apresentem construções em alvenaria, em que tijolos cerâmicos são assentados com argamassa de cimento, e também em lajes compostas por vigotas de cimento armado entremeadas de tijolos cerâmicos. Não é comum a utilização de telhados sobre as lajes de cobertura. Habitualmente, estas lajes são base para futuras ampliações, quando filhos ou parentes ali constroem as suas moradias. Também são utilizados pilares de betão com função estabilizadora, de travamento, além de ajudar na resistência das paredes (Figura 5).

 

 

Raramente as construções recebem acabamentos – algumas vezes, apenas internamente e nas fachadas voltadas para as vias, sendo então pintadas de cores variadas, algo que Carolina de Jesus admirava na “cidade formal” dos anos 1950. São utilizadas janelas e portas compradas a prestações em lojas de material de construção. Não é rara a reutilização de janelas e portas retiradas de imóveis reabilitados ou demolidos na dita “cidade formal”.

Contrariamente às favelas da cidade até aos anos 1980, a madeira é hoje pouco utilizada. Casas construídas com placas de madeira são vistas nos lugares mais precários das favelas: espécie de «favela dentro da favela» no interior do conjunto mais consolidado.

Ainda que com um aspecto frequentemente semelhante, as favelas em São Paulo são heterogeneas, albergando grupos sociais com diversos níveis de rendimentos (tal como os bairros da “cidade formal”) e de diversas origens. Há por vezes a presença destacada de pessoas com origem noutros Estados brasileiros ou cidade específica, mas a grande maioria dos seus moradores já é paulistana há pelo menos uma geração.

As escolas estão presentes em quase toda a malha urbana paulistana, com exceção das creches, que não atendem plenamente a demanda. A qualidade do ensino é ainda um desafio, mas existem equipamentos educacionais nos bairros pobres periféricos e nos arredores das favelas. Os postos de saúde e hospitais não têm a mesma incidência nos bairros populares paulistanos, ainda que esforços nesse sentido tenham sido feitos nas últimas décadas. Organizações Não Governamentais (ONG) e instituições religiosas realizam trabalhos de inclusão social, com capacitação para o trabalho, educação artística e musical, apoio espiritual e reforço escolar. Há ativistas que têm procurado inserir na agenda desses bairros a produção de alimentos e cuidados com o meio ambiente. Hortas na periferia são vistas com certa frequência atualmente, muitas em terrenos sob linhas elétricas de alta tensão.

Os resíduos são igualmente um problema visível, já que nas favelas a recolha não é sempre regular e os locais de acomodação dos sacos de lixo são muitas vezes inadequados. Continua a observar-se um lançamento intenso de resíduos nas ruas e rios. Contudo, o grande desafio é sensibilizar tanto os residentes dos bairros pobres como dos ricos para este problema, ainda que nestes últimos haja uma logística convencional de limpeza mais estruturada. No âmbito do Poder Público paulistano têm surgido esforços no sentido de ampliar a recolha e universalização do serviço de limpeza pública, que costuma chegar tardiamente em relação à ocupação dos bairros periféricos e ser pouco eficaz nas condições existentes nas favelas.

Muito frequentes são as atividades relacionadas com a chamada «economia informal» entre os habitantes das favelas e das ocupações centrais (grande percentagem dos moradores das ocupações dedica-se à venda ambulante), ainda que haja também muitos desempregados e mesmo empregados formalizados. O nível de desemprego no Brasil mantém-se elevado e o aumento do número de pessoas em situação de sem-abrigo denuncia dificuldades encontradas pela população pobre da cidade. Há também um visível aumento de população em algumas favelas, com pressão por ocupação de áreas prestadoras de serviços ambientais, em geral geologicamente frágeis.

Perante o cenário descrito justifica-se ainda pensar nas favelas nos termos em que Carolina Maria de Jesus a elas se referiu, como a úlcera da cidade ou o seu “quarto de despejo”?

 

Espaço público nos bairros populares precários

De uma forma geral, os espaços públicos nas favelas são os caminhos de acesso às casas (Figuras 6 e 7). Tal como nas vilas tradicionais brasileiras, por vezes há alguns largos – alargamentos dos caminhos que se consolidam como lugar de encontro, não raro com a presença de um bar ou estabelecimento comercial.

 

 

 

A grande exceção é o campo de futebol, espaço quase sagrado que se mantém livre no interior da intensa disputa por áreas para construções. As favelas paulistanas são frequentemente construídas junto a córregos ou mesmo cursos de água de maior porte, junto dos quais ora se encontram caminhos um pouco mais largos, com a presença da água em geral poluída e onde se lançam resíduos de todo tipo, ora casas que se sobrepõem às águas e se tornam suscetíveis de serem carregadas por enxurradas.

Os espaços entendidos como públicos – caminhos, raros largos e campos de futebol – são muito frequentados pelas crianças, que são observadas e socialmente controladas pelos moradores. Os forasteiros ali são rapidamente identificados. Há, por vezes, uma interdição velada quanto a aceder a determinadas zonas da favela quando dominadas pelo crime organizado ou mesmo por pequenos infratores, mas de uma forma geral, em São Paulo é relativamente fluida a transição entre estes bairros pobres e a cidade dita formal. Contudo, existem «muros socioculturais» percebidos no preconceito contra o morador da favela, que frequentemente vive em construções muito semelhantes aos vizinhos da suposta «cidade formal», esta construída a partir de loteamentos periféricos, muitos deles realizados ilegalmente, sem que seus empreendedores tivessem a propriedade da terra retalhada e vendida.

Na periferia de São Paulo e também nas suas favelas percebe-se um reflexo da desigualdade racial brasileira. Não existe, no entanto, uma condição marcada de gueto como nas cidades norte-americanas, mas a igualdade é visivelmente problemática nesse sentido.

O sistema viário urbano perde geralmente continuidade quando chega na favela devido a uma série de circunstâncias – uma das diretrizes de obras de urbanização nas favelas é a de conquistar, através de sua articulação com vias no seu entorno, uma maior integração dos caminhos com os bairros próximos. Há um comércio vibrante em muitas das favelas paulistanas e os moradores do seu entorno também se utilizam dele.

As obras de infraestrutura na favela contam também com a consolidação de caminhos internos e ordenação de redes relacionadas com serviços públicos. Assim sendo, para um manejo de águas pluviais e racionalização do sistema de tubulações e fiações, tem sido desenvolvido em São Paulo um conhecimento técnico de como estabelecer canteiros de obra e avançar com transformações dos espaços de circulação, levando em consideração condicionantes locais como dimensões e geometria próprias, além de atentar para um cotidiano que não poderá ser interrompido. Outra prerrogativa das obras em favelas é a eliminação do risco: geológico, de incêndio, de afundamentos resultantes de erosão em função das águas e visando a saúde da população. Grandes conhecedores da realidade das favelas paulistanas são, nesse sentido, os agentes públicos de saúde e com um papel fundamental para a compreensão de processos e de projetos que buscam melhorias.

Há poucas árvores nos espaços públicos das favelas e a sua arborização é também um grande desafio. Obras de urbanização têm inserido nas favelas espaços de brincadeira para as crianças e algumas praças, mas permanecem problemas antigos: a iluminação pública é pouco frequente fora das vias de circulação de veículos; o esgoto é habitualmente lançado in natura nos rios e ribeirões. Segue como um desafio encontrar possibilidades de redesenho das favelas sem que a cidade formal (que necessita de revisão de paradigmas) siga como parâmetro dominante.

Diferente de algumas situações na Índia, em São Paulo (e no Brasil, em geral) as favelas não são lugar de produção relacionada com a indústria. Em bairros mais centrais, onde há uma presença expressiva de cortiços, existem pequenas oficinas em que se realizam etapas de produção, sobretudo da indústria têxtil. Nessas oficinas, algumas vezes os trabalhadores (muitos dos quais imigrantes não legalizados que têm sido tratados como uma inaceitável versão contemporânea de mão de obra escrava) dormem em ambientes insalubres. Mas essa prática não acontece, ao menos de forma significativa, nas favelas ou bairros periféricos.

Os equipamentos e a infraestrutura chegam sempre tardiamente às periferias e favelas de São Paulo. Mas existem favelas já mais consolidadas e onde já se realizam obras há algumas décadas. Há outras ainda sem intervenção alguma por parte do Estado. Desde os anos 1980, quando mudou o paradigma de remoção como princípio para urbanização e com remoção apenas em situações extremas, o Estado tem-se ocupado mais das favelas. Equipamentos públicos têm sido instalados, ainda que frequentemente sem recursos suficientes para fornecerem serviços de qualidade. Uma honrosa exceção são os CEU (Centros de Educação Unificada), grandes escolas com biblioteca, teatro e área desportiva utilizada pelos moradores do entorno, que representam uma ação pública marcante no sentido de uma nova possibilidade urbana (Figura 8).

 

 

As transformações nas favelas, no âmbito de projetos provenientes tanto do Poder Público como da Academia, são frequentemente objeto de avaliação quanto a serem alvo de melhorias em detrimento da demolição de formas de espacialização produzidas pelos próprios usuários. Isto também resulta da existência de uma Cultura da Favela que cada vez mais se afirma, com o rap, o graffiti, modo de vestir e falar, e que se estende para a compreensão da sua forma como detentora de valor. Algumas rádios comunitárias persistem, ainda que tenham sido mais populares há algumas décadas. Acontecem nas favelas festas que se tornam grandes eventos, com nomes conhecidos no cenário musical. Há mesmo alguns saraus de poesia e literatura, que embora ainda em pequeno número, demonstram um potencial vigoroso.

 

Políticas públicas

“Conversei com um senhor. Disse-me que circula um boato que a favela vai acabar porque vão fazer avenida. Ele disse que não é pra já. Que a Prefeitura está sem dinheiro.”

Jesus, p. 115, referente ao dia 2 de Novembro de 1958

Em meados dos anos 1980 iniciou-se a prática de urbanização de favelas na área metropolitana da Grande São Paulo, tendo sido precursor o município de Diadema. O município de São Paulo teve uma série de ações no sentido de tratar de bairros populares durante o período da prefeita Luíza Erundina (1989-92), assistente social de formação, afeita às dificuldades vividas pela população pobre paulistana. A crise económica de então não foi obstáculo para ações de apoio a movimentos de moradia, que se organizaram através do que no Brasil se denominam mutirões (quando trabalhos são feitos coletivamente, em prol da comunidade) e contaram com grupos de assistência técnica na recomposição de áreas ocupadas, construção de conjuntos de reassentamento e instalação de infraestrutura, com os próprios futuros moradores trabalhando como operários.

Essa importante fase no município de São Paulo foi interrompida por uma mudança na política local: conjuntos habitacionais semelhantes ao que se produziu durante a existência do BNH foram então retomados como forma de superar os impasses sociais com que a cidade se deparava.

Nos anos 2000, com a consolidação, através do Estatuto da Cidade (lei federal), do instrumento representado pelas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), a questão dos bairros populares chega efetivamente aos Planos Diretores em São Paulo (Figura 9).

 

 

Áreas demarcadas como ZEIS representam perímetros onde a população residente, de poucos recursos, está de certa forma protegida contra remoções (há também ZEIS que demarcam áreas destinadas à construção de conjuntos habitacionais de interesse social).

Outro instrumento que também se estabelece é o das Operações Urbanas Consorciadas (OUC), de estímulo a transformações urbanas, sendo um dos seus objetivos destinar fundos obtidos para a produção de Habitação de Interesse Social (HIS). Este objetivo foi pouco concretizado, o que denuncia a sua vinculação, de forma não tão explícita, com um modelo de financeirização da cidade sem um olhar cuidadoso para a população, em especial para comunidades vulneráveis. Na OUC Faria Lima foram destinados fundos para construção de HIS no Real Parque, um bairro fora do seu perímetro. Na OUC Água Espraiada foram construídos alguns conjuntos, mas foi notória a expulsão de antigos moradores das favelas da região através da compra dos seus barracos e oferta de apartamentos em bairros distantes.

A Secretaria de Habitação (SEHAB) do município de São Paulo desenvolveu, em anos recentes, uma série de ações no sentido de racionalizar o atendimento por parte do Poder Público aos ditos bairros precários. Foram realizados vários projetos e conjuntos de notável qualidade arquitetónica (Figura 10) e um Plano de Habitação Municipal (PMH) concebido no sentido de organizar ações e obras ao longo das gestões seguintes.

 

 

Conjuntos semelhantes aos realizados sob o BNH e PMCMV na sua modalidade Empresas continuam sendo construídos pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) do Estado de São Paulo, ainda que com esforços renovados no sentido de maior qualidade da construção e com adoção de técnicas de redução de consumo energético e produção de energia de fontes alternativas. Curiosamente, a origem do CDHU foi a CECAP (Caixa Estadual de Casas para o Povo), através da qual se produziu um dos conjuntos habitacionais emblemáticos da Arquitetura moderna em São Paulo, o CECAP Guarulhos, projeto de equipe coordenada pelo arquiteto João Vilanova Artigas (Figura 11).

 

 

Resultado do Plano Diretor de São Paulo de 2004, ratificado pelo Plano de 2014, o Conselho de Habitação do Município de São Paulo (com assentos de lideranças de movimentos de moradia, Universidade, sociedade civil e órgãos públicos) é um locus importante para a discussão de caminhos para o enfrentamento da questão habitacional numa das maiores aglomerações humanas do planeta. Os fundos com os quais trabalha, no entanto, não fazem jus à dimensão do déficit habitacional paulistano e aguarda-se uma maior consolidação desse importante instrumento.

 

Perspectivas

Como superar a imagem apresentada por Carolina Maria de Jesus em seu diário, de que “a cidade é um morcego que chupa nosso sangue” (Jesus, referente ao dia 13 de Julho de 1959), quando a autora se refere aos moradores das favelas e, por extensão, aos bairros populares de forma geral? Uma imagem corroborada pela visão apresentada por Rolnik, ao referir-se a paradoxos recentes que deixam antever o processo de financeirização da terra e da moradia no Brasil: “(...) no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, quando foram ampliados os recursos públicos disponíveis para a urbanização de assentamentos, o que se observa é a desconstituição de processos e fóruns participativos, a urbanização seletiva de favelas e processos massivos de remoção em decorrência da implementação de projetos e obras, muitas vezes com uso da violência.” (2015: 321)

Quais seriam, assim, as perspectivas para os bairros populares paulistanos – loteamentos periféricos e favelas? Há resistências quanto às transformações no sentido de submeter a cidade a um lugar de extração de renda. Há perspectivas divergentes mas verifica-se um “(...) modelo (...) organizado sob os imperativos de uma economia neoliberal globalizada, controlada pelo sistema financeiro, (...) [que] vai penetrando nas cidades e nas políticas urbanas de moradia, capturando territórios, expulsando e colonizando espaços e formas de viver” (Rolnik, 2015: 373). Paralelamente, também se observam muitos coletivos e ativistas naqueles bairros, algo que faz pensar em ações base-topo que devem ser amparadas pela legislação e por Políticas Públicas. Entende-se que há uma complementaridade destas com as ações locais, de viés artístico, associadas à Permacultura e à busca por uma condição ecológica, entre tantas. Existem organizações ligadas à Igreja católica, que mantém creches, locais de apoio à comunidade entre outras ações relevantes ao quotidiano daquelas populações. As ZEIS, enquanto garantia de que ocupações não serão removidas indiscriminadamente como no passado, são um marco referendado pelo Estatuto da Cidade e presente em Planos Diretores como o de São Paulo. A ideia é que essas áreas demarcadas como ZEIS sejam objeto de projeto, considerando a manutenção da população ali instalada. A Cultura de projeto para estas áreas não se efetivou ainda e há um longo caminho a percorrer. Nessas zonas especiais há a prerrogativa do estabelecimento de Conselhos participativos formados por lideranças locais – tampouco esses conselhos se disseminaram como seria necessário, possivelmente em decorrência do que Rolnik (2015) refere como efeito político-territorial de ações do complexo imobiliário-financeiro estabelecido no Brasil. Permanece o desafio da efetivação daqueles conselhos e, também o de serem instâncias representativas e deliberativas de facto, com poder decisório quanto à afectação de fundos e recursos. Nesse sentido é importante a identificação de agentes envolvidos na transformação destes bairros populares, clareza no debate e busca de pactos. É igualmente fundamental a participação da população local e a sua representação efetiva, junto com técnicos do Estado e da Universidade, e agentes relacionados como Mercado e instituições financeiras. A presença e equidade representativa de todos estes agentes é determinante para o sucesso de pactos a serem estabelecidos quanto a um futuro mais generoso e sustentável para os bairros populares, do ponto de vista social, económico e ambiental.

 

Referências bibliográficas

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Governo do Brasil (2010) Censo Demográfico Brasil, disponível em https://cidades.ibge.gov.br/        [ Links ]

Jesus, C. M. (1960) Quarto de despejo. Edição Popular, disponível em https://www.academia.edu/37114289/Quarto_de_despejo_Carolina_Maria_de_Jesus_1, acesso em Novembro de 2019.         [ Links ]

Maricato, E. (2003) “Metrópole, legislação e desigualdade”, Estudos Avançados,17.

Movimento de Defesa do Favelado (s.d.), disponível em https://www.mdf.org.br/historia         [ Links ]

Pasternak, S. P. (2001) “Favelas em São Paulo – censos, consensos e contra-sensos”, Cadernos Metrópole, 5, São Paulo: EDUC.

Rolnik, R. (2015) Guerra dos Lugares – a colonização da terra e da moradia na era das finanças , São Paulo: Boitempo.         [ Links ]

TOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo, três cidades em um século. São Paulo: Cosac & Naify, Duas Cidades, 2004.

 

Received: 09-11-2019; Accepted: 16-06-2020.

 

NOTAS

[2] O diário de Carolina Maria de Jesus foi publicado em 1960 com o título Quarto de Despejo e refere-se a alguns dias de sua vida em São Paulo, na favela do Canindé (hoje desaparecida), em 1955 (15/07 a 28/07), e de forma mais ininterrupta de 02/05 de 1958 a 01/01 de 1960. Carolina nasceu em Minas Gerais e mudou-se para São Paulo, onde viveu em favelas grande parte do tempo. Seus diários foram publicados por um jornalista que percebeu o valor documental e de crônica presente nos seus relatos e comentários, nos quais há uma visão da favela a partir de seu âmago

[3] A região é ocupada desde tempos remotos por povos originários. Já no século XVI se inicia a ocupação dos Campos de Piratininga por parte de colonos ibéricos e jesuítas. No seiscentos expande-se essa ocupação, quando se tem notícia de chácaras e pequenas aglomerações na margem esquerda do rio Tietê. A fundação de São Paulo de Piratininga, missão jesuítica que se tornou cabeça de um sistema de missões na região, foi em 1554.

[4] Segundo o Censo Demográfico de 2010, o município de São Paulo tinha 11.253.503 habitantes (em 2019, a estimativa era a de sua população ter aumentado para 12.252.023 pessoas), dos quais 31,6% vivem com um rendimento de até 0,5 salário mínimo brasileiro, que corresponde a R$ 1.039,00 em 2020 (aproximadamente US$ 225.00 em Março de 2020) - o índice de pobreza no município indica que 30,02% (limite superior) de sua população estão abaixo da linha de pobreza. Essa porcentagem está próxima dos 25% estimados pelo CEM (Centro de Estudos da Metrópole) correspondentes à população que vive em favelas e loteamentos irregulares - 14% em loteamentos irregulares e 11% aproximadamente vivendo em favelas, o que representa uma população favelada de mais de 1,3 milhões de pessoas, algo que indica um aumento de mais 170% nessa população desde 1996, ainda que tenha sido verificada uma menor densidade nas favelas de forma geral, muito em função de consolidação de construções em alvenaria. Dados a partir de números apresentados na postagem: http://agencia.fapesp.br/populacao-em-favelas-paulistanas-cresce-mais-do-que-no-restante-da-cidade/24676/

[5] Federação de Favelas do Estado da Guanabara - Fafeg

[6] Companhia de Desenvolvimento de Comunidades - Codesco, com origem em um Grupo de Trabalho no âmbito da Companhia do Progresso do Estado da Guanabara - Copeg, em meados dos anos 1960, antes da incorporação do antigo Estado da Guanabara ao Estado do Rio de Janeiro

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