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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.40 Lisboa jun. 2020

https://doi.org/10.15847/cct.jun2020.040.art05 

ARTIGO ORIGINAL

 

O papel das instituições subnacionais na aderência da agenda de integração hídrica: lições da governança hídrica metropolitana de Curitiba

The role of subnational institutions in adhering to the water integration agenda: lessons from metropolitan water governance in Curitiba

 

Simone do Amaral CassilhaI; Tatiana Maria Cecy GaddaII; Niklas Werner WeinsIII; Augusto Frederico Junqueira SchmidtIV

[I]Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Brasil. e-mail: simone.cassilha@pucpr.br

[II]Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Brasil. e-mail: tatianagadda@utfpr.edu.br

[III]Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Brasil. e-mail: weinsniklas@gmail.com

[IV]Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Brasil. e-mail: guto.fritz@gmail.com

 

 


RESUMO

A escassez hídrica global tratada há décadas por documentos internacionais, é também reconhecida, ainda que com baixa aderência, nas agendas ambientais subnacionais. Conceitos como o Gerenciamento Integrado de Recursos Hídricos (GIRH) e Serviços Ecossistêmicos (SE) são relevantemente preconizados a nível internacional pela comunidade científica para serem aplicados pelas instituições no nível local. Este artigo propõe uma análise da adesão destes conceitos para a governança da água na Região Metropolitana de Curitiba (RMC). Primeiramente foram elencados os planos de maior relevância no gerenciamento da água na governança relativa ao Estado do Paraná e ao município de Curitiba, bem como fatores demográficos e suas respectivas atribuições com relação à manutenção desse recurso e suas escalas de atuação. Por meio de uma análise documental, relacionamos as medidas adotadas pelos diferentes atores de modo a subsidiar uma análise da inserção dos conceitos de GIRH e SE nas suas respectivas atuações. Com isto buscou-se entender as possíveis implicações para o gerenciamento da água dentro das especificidades de governança hídrica metropolitana paranaense e curitibana, e como as instituições e sua relação com o meio ambiente podem ter consequências sobre a disponibilidade de água com qualidade na RMC.

Palavras-chave: serviços ambientais, gerenciamento de recursos hídricos, planejamento urbano.


ABSTRACT

The global water shortage that has been dealt with for decades in international documents, is also recognized by subnational environmental agendas, even though with low adherence. Concepts such as Integrated Water Resources Management (IWRM) and Ecosystem Services (ES) are advocated internationally by the scientific community to be applied by institutions at the local level. This article proposes an analysis of the adherence of these concepts to water governance in the Metropolitan Region of Curitiba (MRC). Firstly, the most relevant water management plans for the State of Paraná and the city of Curitiba were gathered, as well as demographic factors and their respective attributions regarding the maintenance of this resource and its scale of action. Through a documentary analysis, we relate the measures adopted by the different actors for an analysis of the insertion of the concepts of IWRM and ES in their respective actions. With this, it was sought to understand the possible implications for water management within the specificities of metropolitan water governance in Paraná and Curitiba, and how institutions and their relationship with the environment can have consequences on the availability of high quality water in the MRC.

Keywords: environmental services, water resources management, urban planning.


 

1. Introdução

As diferentes dimensões e definições de desenvolvimento sustentável e o seu significado na prática, certamente são um dos grandes temas deste século. O gerenciamento do trade-off entre necessidades humanas e limites do planeta, em prover os bens e serviços da natureza, representa o foco deste debate (Barreto et al., 2017). As visões de mundo cada vez mais especializadas e técnicas têm levado as instituições a desconsiderar as conexões entre o “sistema humano” e o “sistema natural” (Haas, 1992; Elmqvist et al., 2013; Santos et al., 2017). O pensamento cartesiano e unidimensional sobre os recursos ecossistêmicos, como a água, inibe uma gestão adequada nos seus usos múltiplos. A escassez hídrica é reconhecida como um problema ambiental global e tratada em diversos documentos internacionais. É também reconhecida, porém, a baixa aderência das agendas ambientais preconizadas no nível internacional na gestão ambiental realizada por instituições nacionais e subnacionais (Oliveira et al., 2011).

A água doce superficial e potável compõe tão somente um por cento da superfície da terra mas é a base da vida de todos os organismos (Febria et al., 2015; Rieu-Clarke et al., 2017). Apesar disso, as políticas que propõem sua proteção são relativamente recentes (Biswas e Tortajada, 1998) e foram motivadas pelo crescente stress hídrico refletido no comprometimento dos vários usos da água (humanos e não humanos) e na sua escassez. Entre os principais vetores dessa alteração podemos apontar a intrincada relação entre crescente industrialização, urbanização e mudanças nos ecossistemas. Mas apenas recentemente reconheceu-se a importância das externalidades ambientais e sociais, e que os recursos da natureza não são tão abundantes quanto (se entendia) no começo da revolução industrial (Elmqvist et al., 2013). Além disso, Carmo et al. (2014), apontam que, além da pressão populacional exercida sobre os recursos hídricos, há uma transição no padrão de consumo da população que se relaciona ao aumento de renda per capita nas cidades. Os autores concluem que o desafio referente às políticas públicas no Brasil será garantir que a ampliação dos sistemas de abastecimento de água possa ser implementada, garantindo o acesso à água tratada, mas sem exaurir os mananciais existentes.

 

2. Metodologia

A pergunta que guia este trabalho é: as instituições envolvidas na gestão dos recursos hídricos na Região Metropolitana de Curitiba refletem em seus planos ou dialogam de alguma forma com a agenda internacional, seguindo as tendências de Gerenciamento Integrado de Recursos Hídricos? Busca-se responder a esta pergunta com uma pesquisa de caráter exploratório a partir de análises bibliográficas, confrontando análise teórica com a documental.

Uma primeira análise foi aplicada ao entendimento da agenda internacional no que diz respeito à gestão dos recursos hídricos. Para este fim foram consultadas produções científicas e tecnocientíficas. Uma análise bibliográfica foi também aplicada para a escala subnacional onde foram analisados documentos oficiais, como os planos Diretores Municipais de Curitiba, de Desenvolvimento Integrado (COMEC), Planos de Bacia do Alto Iguaçu e Afluentes do Ribeira, e Plano Diretor do Sistema de Abastecimento de Água (SANEPAR). Nessa extensa análise busca-se entender como a água é abordada na Região Metropolitana de Curitiba (RMC) e quais diretrizes são estabelecidas ao gerenciamento de recursos hídricos como um todo. Com isto é possível uma comparação entre as análises para inferir qual o reflexo das diretrizes preconizados pelo nível internacional no nível subnacional, considerando o estudo de caso da RMC.

O ponto de partida desta investigação pode ser observado na Figura 1, que mostra de maneira linear os desdobramentos das políticas internacionais e seu reflexo nas implementações das respectivas medidas na escala local e metropolitana. Nesta pesquisa foram considerados com mais detalhe os desenvolvimentos no nível local e as especificidades do gerenciamento de recursos hídricos no Paraná, que conta com um arranjo institucional que difere do padrão federal. Para tal, este artigo se baseia na análise de quatro planos relevantes ao planejamento do abastecimento da RMC. Como complemento aos dados de Curitiba e Região metropolitana os autores conduziram uma entrevista com a Defesa Civil do Paraná em novembro 2017.

 

 

Visando a perspectiva multidisciplinar, que comumente se dá ao redor da gestão dos recursos hídricos, esta pesquisa remete a diversos conceitos, abordagens e aspectos de várias áreas de conhecimento. Apresentam-se a seguir, os achados da presente análise, partindo principalmente da ótica de arquitetura e urbanismo, mas também da engenharia civil e das ciências sociais, econômicas e políticas.

 

3. A gestão hídrica na escala internacional e subnacional

Boa parte dos problemas ambientais das cidades brasileiras decorre de processos não controlados de expansão urbana (Braga, 2001). Uma coerente explicação para este processo, segundo Rolnik (1997), é de que a cidade é um organismo vivo e dinâmico, onde a diversidade e complexidade de suas interações geram condições urbanas muito distintas, favorecendo e agravando os conflitos dentro da mesma.

O município é a menor unidade administrativa da Federação e também, em muitas questões, de autonomia equivalente entre os entes federativos, podendo ser definido como “entidade de direito público, constituída por uma comunidade humana, assentada em um território determinado, que administra seus próprios e particulares interesses” (Pizella, 2015).

A Constituição de 1988 outorgou aos municípios novas competências e, consequentemente, novas responsabilidades, a partir da redistribuição entre os níveis federal, estadual e municipal, entre elas a formulação e implementação da política urbana (Silva, 2016). Com relação ao meio ambiente, a partir da regulamentação, em 2001, dos artigos 132 e 133 do Estatuto da Cidade, foram estabelecidas fundamentações jurídico-legais de garantia do “direito a cidades sustentáveis” (Lei 10.257, 2001), passando então a existir uma relação de maior coerência entre o legal e o real. A efetivação desta ferramenta, entretanto, é carente na gestão integrada, no caso dos recursos hídricos, pois evidencia-se que os diversos níveis federativos possuem interesses conflitantes (Marinato, 2008). O cuidado com o serviço ecossistêmico água depende de políticas que escalam desde o federal até o local, exigindo abordagem interinstitucional.

O Brasil não possui atualmente nem um programa nacional de Pagamento por Serviço Ambiental (PSA), nem reconhece o conceito jurídico de serviços ecossistêmicos e seus respectivos valores econômicos (Costenbader, 2009; Schomers e Matzdorf, 2013). O Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos definiu competências para a gestão dos recursos hídricos, restando ao município participação restrita aos comitês e conselhos (Marinato, 2008), muito embora existam várias ações nos territórios brasileiros que se dão por meio de consórcios intermunicipais. Contudo, o escopo do trabalho das partes envolvidas na gestão dos recursos hídricos, mesmo considerando o território nacional, não é exatamente claro ou coerente. O caso estudado a partir da estrutura de monitoramento, participação e fiscalização no Paraná se destaca neste arranjo e se justifica em parte por tal constelação.

A Política Nacional de Recursos Hídricos, de 1997, definiu um dos grandes desafios para a gestão quando estabeleceu como unidade territorial de planejamento a bacia hidrográfica, já que esta pode compreender diversos municípios, estados ou até mesmo países. Para a adoção da bacia hidrográfica, o planejamento e a gestão devem conciliar os limites político-administrativos, pois as políticas territoriais, para que possam de fato acontecer, devem estar em consonância (Alvim et al., 2008). No caso de uma bacia compreender diversos municípios, a gestão deveria acontecer por meio de consórcio ou coordenação metropolitana.

 

3.1. Governança nas principais RMs brasileiras

As primeiras Regiões Metropolitanas (RMs) criadas no Brasil datam do início da década de 1970 e apresentam todas população atual superior a dois milhões de habitantes (Barreto, 2017). De acordo com Lemos (2003) estas regiões representam mais de 30% da população brasileira, e são consideradas aglomerações de grande porte. Um fenômeno observado nos últimos censos realizados pelo IBGE é a desaceleração no ritmo de crescimento da população na maior região metropolitana do Brasil, São Paulo. Este comportamento, porém, não se mantém para outras RMs, que apresentam taxas de crescimento acima da média brasileira, como é o caso de Curitiba. A Tabela 1 apresenta as primeiras RMs brasileiras e suas respectivas taxas de crescimento entre os censos de 2000 e 2010. As altas taxas de diminuição de população rural apontam para o contínuo crescimento nas franjas das regiões metropolitanas, especialmente naquelas de tamanho médio, como é o caso de Curitiba.

Considerando aspectos de gestão das diversas RMs, aquelas criadas nos anos 1970 demonstram panorama frágil de institucionalização. Menos de 50% possui instância exclusiva de gestão, 80% possui instituído um conselho deliberativo, porém com pequena participação da sociedade civil, e apenas 30% possui plano metropolitano elaborado ou em elaboração (Costa, 2013). A gestão dos recursos hídricos na Região Metropolitana de São Paulo, por exemplo, necessita grande integração entre os diversos sistemas que a compõem, sendo que o maior desafio se encontra no âmbito institucional, visto que a gestão ideal por bacias extrapola a forma tradicional de organização. Segundo Lemos (2003) a escassez de água e a poluição dos maiores reservatórios de abastecimento, em decorrência da grande urbanização desde os anos 1960, continua a se agravar na RMSP.

A escassez hídrica enfrentada em São Paulo entre 2014 e 2016, decorrente de um longo período de estiagem, acarretou em um cenário denominado pela mídia e gestores de “crise hídrica”. No intuito de enfrentar essa situação foi realizada uma transposição de águas da bacia do rio Paraíba do Sul, que já fornecia parte da água para abastecimento da RM do Rio de Janeiro, para a bacia Piracicaba-Capivari-Jundiaí, criando a hidromegalópole São Paulo-Rio de Janeiro. Essa nova espacialidade é delimitada então a partir dessa conexão física, quatro regiões metropolitanas do estado de São Paulo (São Paulo, Campinas, Baixada Santista, Vale do Paraíba e Litoral Norte) e a região metropolitana do Rio de Janeiro passam a compartilhar os recursos hídricos, gerando uma complexa relação de interdependência (Carmo e Anazawa, 2017).

No caso em estudo por este trabalho, a Região Metropolitana de Curitiba tem destaque estadual por seu porte econômico além de funções de decisão e gestão, os quais abrangem todo o território do Paraná e extrapolam para estados vizinhos como Santa Catarina; além de importância nacional pelas relações com outros aglomerados metropolitanos (Kornin e Do Carmo, 2013).

A gestão da RMC apresenta desafios para seus gestores, visto que as aglomerações se estendem em áreas distantes do núcleo principal e os municípios integrantes ainda não apresentam desenvolvimento ordenado e igualitário. Importante considerar também que na articulação entre os entes institucionalizados desta Região ainda predominam ações isoladas e sem agenda comum metropolitana. O início dos anos 2000 foi caracterizado por ações relacionadas à questão ambiental, com a busca pela proteção dos mananciais. Porém o enfraquecimento institucional da COMEC - Coordenação da Região Metropolitana de Curitiba - ocorrido por motivos diversos, resultou em pouca capacidade de controle e preponderância de interesses sobre o uso e ocupação do solo pelo mercado imobiliário (Klink, 2010).

 

3.2. Atores e seus respectivos planos relevantes à gestão hídrica em Curitiba e RMC

A Região Metropolitana de Curitiba (RMC) foi regulamentada formalmente em 1974 com a criação da COMEC pelo governo do Paraná. Composta inicialmente por 14 municípios, compreende atualmente 29 municípios com um total de 3,5 milhões de habitantes. Com grande potencial e importância no contexto nacional, esta Região Metropolitana possui desafios a serem vencidos, como por exemplo a questão de que grande parte do território é composto por áreas de interesse de proteção (Lei Estadual nº 12.248/98), considerado as áreas de interesse de mananciais de abastecimento público de água (COMEC, 2006).

Serão analisados a seguir quatro planos, por sua importância direta na preservação e no planejamento do uso dos recursos hídricos na RMC. Em primeiro lugar, o Plano Diretor Municipal de Curitiba que estabelece as principais diretivas para o consumo e a projeção do futuro abastecimento do município núcleo. O Plano de Desenvolvimento Integrado da COMEC se apresenta como principal documento para a efetiva integração de diferentes políticas municipais relacionadas ao uso e à ocupação do solo a nível da região metropolitana. Mais especificamente para o abastecimento da RMC, o PD do Sistema de Abastecimento de Água Integrado (SANEPAR) aponta para assuntos pertinentes a esta questão. E por fim, o Plano das Bacias do Alto Iguaçu e Afluentes do Ribeira indica as diretivas a nível da bacia hidrográfica, que são relevantes para a integração das políticas além dos limites administrativos. Com estes quatro documentos são contemplados os vetores que este artigo se propõe a analisar, deixando de lado outros possíveis documentos relevantes para a integração do planejamento a fim de precisão analítica para o assunto da governança hídrica na RMC.

 

3.2.1. Plano de Diretor Municipal (PDM)

No planejamento dos municípios não raramente aspectos relevantes deixam de ser considerados, principalmente quando relacionados ao tema ambiental. Isto acontece, por exemplo, quando os tipos de ocupação do território não apresentam conectividade com os corpos hídricos e seus impactos nas bacias hidrográficas (Marinato, 2008; Gadda et al., no prelo). As diretrizes previstas para um Plano Diretor Municipal, que poderiam contemplar estes aspectos, possuem duas escalas: uma menor que estabelece normativas como taxas e coeficientes de ocupação, e uma maior que estabelece macrozoneamentos com delimitação de zonas urbanas e rurais, de expansão urbana, e de zonas especiais de proteção ambiental (Braga, 2001).

Documento obrigatório para os municípios com mais de 20 mil habitantes - embora a legislação paranaense tenha estendido esta necessidade para todos os municípios do estado - o Plano Diretor Municipal é o principal instrumento do desenvolvimento urbano pois regulamenta o uso e ocupação do solo, garantindo o bem-estar humano (BRAGA, 2001). Em Curitiba o planejamento urbano teve início em 1943 com o Plano Agache, o qual já trazia questões relativas ao planejamento ambiental, porém sem menção à preservação dos recursos hídricos e mananciais. Em 1966 foi criado então o Plano Diretor (PD) de Curitiba, estabelecendo as diretrizes básicas para a orientação e o controle do desenvolvimento integrado do município.

Também nessa época, a partir dos anos 1960, o tema da proteção dos recursos hídricos começa a ser tratado politicamente no nível internacional. Contudo a abordagem ainda não integrava agendas complementares como a de habitação, abastecimento, saúde, etc. (Biswas e Tortajada; 1998, Biswas, 2004). Com a Conferência de Estocolmo em 1972 foi atingido um primeiro milestone na mudança dos paradigmas de desenvolvimento sustentável a nível internacional e aparece pela primeira vez o termo Serviço Ambiental ( environmental service) (Pesche et al., 2013, p. 70; Barreto et al., 2017; Rieu-Clarke et al., 2017).

A Conferência das Nações Unidas sobre a Água em Mar del Plata, Argentina, em 1977, propôs avaliar pela primeira vez o estado dos recursos hídricos (Rieu-Clarke et al., 2017), e trazia recomendações de caráter extremamente técnico, considerando aspectos de regulação e provisão, uso e controle, saúde e poluição e riscos (Biswas, 2004). Nesta mesma década, no ano de 1980, o único manancial em utilização para abastecimento de água em Curitiba era o rio Passaúna. Porém, havia ficado claro que o planejamento municipal deveria ser ampliado para a escala metropolitana, visto que as bacias dos outros mananciais que abastecem a capital do Paraná estão localizadas em outros municípios da RMC (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba [IPPUC], 2015).

Entre os anos de 1983 e 1985 foi elaborado o Plano Municipal de Desenvolvimento Urbano de Curitiba (PMDU), responsável pela criação da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMMA). A política ambiental do município passa então a ser planejada, executada e fiscalizada por este órgão. É interessante reconhecer que nas décadas de 1970 e 80 Curitiba acompanha a tendência internacional, dando os primeiros passos para o gerenciamento integrado dos recursos hídricos.

A década de 1980 foi declarada pela ONU como Década Internacional de Abastecimento de Água e Saneamento. Os gestores de água perceberam que a integração, em detrimento a uma abordagem setorial, era necessária para a conservação dos recursos hídricos (Niasse e Cherlet, 2015). É no cenário de competição pelo uso da água e de crise hídrica que surge uma maior consciência da necessidade de agir (Niasse e Cherlet, 2015). No entanto, Biswas (2004) assim como Rieu-Clarke et al. (2017), argumentam que houve uma water blindness desde a Conferência sobre a Água de Mar del Plata em 1977, e concluem que a água tem estado praticamente invisível na agenda internacional nos anos 1980.

A revisão do PD Municipal de Curitiba de 2004, adequando-o ao Estatuto da Cidade, buscou o desenvolvimento sustentável e trouxe consigo os temas: direito ao saneamento, à qualidade ambiental e à proteção ao meio ambiente. Em complemento, trazia ainda o Plano de Desenvolvimento Sustentável e Controle Ambiental, com objetivos estratégicos como o gerenciamento das bacias hidrográficas, a melhoria da qualidade da água e a garantia do abastecimento à população.

A mais recente atualização do PD Municipal de Curitiba (2010-2015) intencionava propiciar melhores condições para o desenvolvimento integrado e sustentável do município com a Região Metropolitana (IPPUC, 2015). O Plano estabelece diretrizes da política urbana ambiental, trazendo: a bacia como unidade de planejamento, a identificação e conservação dos mananciais, a consonância com o Plano de Bacia do Alto Iguaçu e a promoção da renaturalização dos corpos hídricos canalizados. Ainda no nível ambiental é relatado no artigo 66 que o município deve estabelecer o Programa de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) visando a conservação e a melhoria ambiental entre os municípios da RMC.

Considerando o nível metropolitano, e incluindo aspectos do recém instituído Estatuto da Metrópole, o atual PD trouxe a Política Municipal da Região Metropolitana estabelecendo diretrizes para planejamento, gestão e execução de interesses comuns através da governança interfederativa, buscando estabelecer assim maior aproximação entre os municípios da RMC no aspecto ambiental (IPPUC, 2015).

 

3.2.2. Plano de Desenvolvimento Integrado (COMEC)

A criação da Coordenação da Região Metropolitana de Curitiba (COMEC) em 1974, apresentou-se concomitante à regulamentação da própria RMC. Com desafiadores aspectos metropolitanos e visando organizar o desenvolvimento desta região metropolitana, a COMEC apresentou no ano de 1978 o primeiro Plano de Desenvolvimento Integrado da RMC (PDI/RMC) (COMEC, 2006). Neste documento foram definidas diretrizes segundo um enfoque sistêmico, buscando equilibrar características metropolitanas com as diferentes dinâmicas municipais.

A primeira atualização deste Plano aconteceu no ano de 2002, considerando que a região sofria acelerado crescimento das ocupações irregulares na franja urbana, com relevante proximidade aos mananciais (Lima e Mendonça, 2001). Nele foram abordadas duas estratégias de atuação:

(1) medidas rígidas de regulação e controle pelo poder público, garantindo a qualidade da água dos mananciais de abastecimento,

(2) mudança de captação de água para mananciais mais distantes, de solo cársticos, com características negativas à ocupação do solo.

Naquele momento estudos indicavam que os recursos hídricos da RMC teriam seu esgotamento em 35 anos, e que a contaminação dos mananciais deveria receber especial atenção das políticas públicas (Lima e Mendonça, 2001). Desta forma a posterior edição do PDI, em 2006, abordou principalmente diretrizes de ocupação do território a partir das condicionantes naturais e antrópicas, com orientação da estruturação urbana a partir de novo sistema viário metropolitano (COMEC, 2006). Estas informações coincidem com dados coletados em uma entrevista com a Defesa Civil do Paraná pelos autores em novembro 2017.

Aproximadamente 45% do território da RMC é considerado Área de Interesse de Mananciais de Abastecimento Público de Água (Figura 2), conforme o decreto estadual 6194, de 2012, o qual tornou obrigatória a preocupação com o meio ambiente nos planos realizados para a região (COMEC, 2017). Em relação às áreas de mananciais de abastecimento, o Plano indicava que “os centros urbanos nos municípios de Piraquara e São José dos Pinhais [deveriam] ser rígidos em seus crescimentos, em virtude de sua localização muito próxima às áreas de captação de água” (Lima e Mendonça, 2001).

 

 

Com a atual revisão do PD Municipal de Curitiba de 2015, e visando a inclusão de aspectos relativos ao recém aprovado Estatuto da Metrópole, o PDI encontra-se novamente em estado de revisão, a fim de adaptar e incluir aspectos metropolitanos tanto naturais quanto antrópicos em constante mudança. Isto significa que, embora o PDI em teoria dite as diretrizes de desenvolvimento dos municípios da RMC, o documento é também afetado pelas abordagens ambientais formuladas por cada um dos municípios em seus respectivos PDMs.

A Figura 2 demonstra a abrangência da RMC e as áreas de proteção de mananciais, marcadas em cinza. Estas áreas foram delimitadas pela COMEC buscando facilidade na gestão e controle do uso e ocupação do solo, garantindo a qualidade da água para abastecimento público. Atualmente o abastecimento da RMC é realizado por mananciais localizados em Piraquara, Campina Grande do Sul, Quatro Barras, Pinhais, Araucária, Campo Largo, Campo Magro, Almirante Tamandaré, Curitiba e São José dos Pinhais (COMEC, 2017).

 

3.2.3. Plano Diretor do Sistema de Abastecimento de Água Integrado (SAIC)

O primeiro PD desenvolvido pela SANEPAR aconteceu no ano de 1975, tendo como horizonte os próximos 30 anos. Porém, considerando o acelerado crescimento da RMC este documento teve revisões nos anos de 1980, 1991, 2000 e 2011. A Figura 3 apresenta a mancha urbana ao centro e a abrangência atual do Sistema integrado de abastecimento de Curitiba e Região Metropolitana - SAIC (linha preta).

 

 

Os PDs desenvolvidos pela Companhia de Saneamento do Paraná (SANEPAR) buscam identificar demandas atuais e futuras dos municípios integrantes da RMC atendidos pela companhia, assim como projetar a utilização de novos mananciais na região. Procurando identificar os mananciais disponíveis para abastecimento futuro, as prioridades de implantação e a garantia de atendimento a 100% da população da RMC, a mais recente revisão do Plano aconteceu no ano de 2013, seguindo o Decreto estadual nº 6194/2012 (SANEPAR, 2013).

A Sanepar desenvolve o Plano Diretor do Sistema de Abastecimento Integrado de Curitiba e região Metropolitana (SAIC) conforme pareceres dos municípios envolvidos, considerando levantamentos presentes nos respectivos Planos Diretores, que contribuem com a quantificação das demandas hídricas sempre para um horizonte de 30 anos, assim como com as projeções das ocupações urbanas. Atualmente o SAIC é responsável pelo abastecimento de água tratada nos municípios de Almirante Tamandaré, Araucária, Campina Grande do Sul, Colombo, Curitiba, Fazenda Rio Grande, Pinhais, Piraquara, Quatro Barras e São José dos Pinhais, todos integrantes da RMC.

 

3.2.4. Plano das Bacias do Alto Iguaçu e Afluentes do Ribeira

A primeira tentativa de gerenciamento integrado dos recursos naturais na RMC iniciou-se com o PROSAM (Programa de Saneamento Ambiental da Região Metropolitana de Curitiba - Bacia do Alto Iguaçu), criado através do decreto estadual 1.167 de 1992 e prevendo sua coordenação pela Secretaria de Planejamento do Estado do Paraná e execução pela SANEPAR, COMEC e município de Curitiba, tendo também prevista a colaboração de vários outros órgãos do Estado, além de organizações não governamentais de cunho ambiental e dos municípios da RMC.

O PROSAM previu uma política de uso e ocupação do solo adequada à proteção de mananciais. No final da década de 90 seguindo a Lei Nacional 9.433 (1997), com a instituição da Política Estadual de Recursos Hídricos (Nº 12.726, 1999), foi criado o Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos, com instrumentos de gestão como: Plano Estadual de Recursos Hídricos, e Plano de Bacia Hidrográfica. Os Planos de Bacia Hidrográfica são elaborados pela Agência de Água, aprovados pelo Comitê de Bacia e deve considerar os planos, programas, projetos e demais estudos relacionados a recursos hídricos existentes na área de abrangência das respectivas bacias (Instituto das Águas do Paraná [Águas Paraná], 2007).

Essas políticas se situam em uma tendência internacional de “redescobrir” os recursos hídricos nas agendas na década de 1990 (Biswas, 2004). Em 1992 a Declaração da Conferência Internacional sobre Água e o Meio Ambiente em Dublin, foi seguida no mesmo ano pela Rio-92 propondo os “Quatro Princípios de Dublin” que iam representar diretivas a ser incorporadas em novas políticas hídricos nos níveis nacional e subnacional (Niasse e Cherlet, 2015). No entanto, de acordo com Rieu-Clarke et al. (2017) consenso internacional sobre essas diretrizes para a Gestão Integrada de Recursos Hídricos (GIRH) alcança-se só no segundo Fórum Mundial de Água, em Haia em 2000. Biswas (2004) afirma que a proximidade temporal com a Rio-92, e o caráter de encontro de experts - e não de governos - fez com que não se teve maior comprometimento com esses princípios.

Assim como a metodologia utilizada nos Planos de Recursos Hídricos Nacional (PNRH) e Estadual do Paraná (PLERH), o Plano de Bacias trabalha com cenários, resultando em planejamento estratégico para orientação de decisões acerca dos prognósticos. Para definição dos cenários são considerados os seguintes aspectos: taxa de crescimento populacional, uso e ocupação do solo, distribuição da população nos municípios, e ocupação do solo nas sub-bacias da RMC (Águas Paraná, 2007). Porém, ainda não se tem evidência nesta época sobre a incorporação dos princípios do GIRH no nível subnacional. Somente em 2012, em volta de 80% de todos os países tinham integrado esses princípios nas suas legislações e ? possuíam planos nacionais de GIRH (Niasse e Cherlet, 2015). Andreotti et al. (1999) analisam dois cenários nos quais a demanda por água cresce mais que a população, como pode ser observado na Figura 4.

 

 

Segundo o Plano de Bacias o principal objetivo é otimizar os benefícios ambientais para a população presente nestas áreas. Diz o documento: “os instrumentos previstos na legislação a serem mobilizados para a gestão dos recursos hídricos, definem metas quantificáveis a serem atingidas”. As ações contempladas buscam a melhoria da qualidade e disponibilidade dos recursos hídricos, integrado a outros planos e programas setoriais como: de saneamento básico, diretores municipais, de recursos hídricos, entre outros. Os programas, subprogramas e ações específicas contribuem para o direcionamento da aplicação dos recursos provenientes da cobrança pelo direito do uso da água (Águas Paraná, 2007; Rauber e Cruz, 2013).

No nível internacional, Rieu-Clarke et al. (2017) destacam a Conferência Internacional sobre Água Doce, em Bonn, Alemanha, em 2001, que foi realizada em preparação à Cumbre Mundial de Desenvolvimento Sustentável em Durban, África do Sul, em 2002. As “Chaves de Bonn” destacam as necessidades das populações pobres em relação à água, a necessidade de maior descentralização, novas parcerias e melhores arranjos cooperativos em bacias compartilhadas. De forma similar os princípios do Habitat da ONU direcionam para um entendimento sobre políticas públicas em seu contexto maior, apontando para as conexões críticas de questões como a urbanização, habitação com a água (Organização das Nações Unidas [ONU], 2016).

 

4. O caso da governança hídrica nas bacias do Paraná

A bacia hidrográfica é a escala espacial adequada para avaliar os impactos da ocupação urbana atual, e de novos projetos de urbanização sobre os processos hidrológicos e sobre as cargas de poluição. Assim funcionam como unidade de gestão desde que haja reconhecimento pelos órgãos gestores deste recorte espacial (Rocha e Vianna, 2008; Rauber e Cruz, 2013; Schussel e Nascimento Neto, 2015).

Neste contexto, Curitiba é dividida em seis sub-bacias hidrográficas, contendo seus principais rios: Barigui, Belém, Passaúna, Ribeirão dos Padilhas, Atuba e Iguaçu, conforme ilustra a Figura 5. No entanto, para o abastecimento de água na cidade, são utilizados os rios Iguaçu (com a captação fora de Curitiba), Passaúna (único manancial aproveitável na cidade), Iraí, e Miringuava (GADDA et al., 2018).

 

 

A análise por bacias hidrográficas identifica, excetuando-se o Passaúna, que os rios no território municipal não são adequados para o abastecimento em decorrência da poluição. Desta forma, a solução é buscar água de rios do entorno que apresentem condições de potabilidade adequada para as diversas demandas. Nota-se que são escassas as políticas de recuperação da qualidade da água dos rios, sendo que não foram localizados estudos comparando o custo de recuperação dos rios e o investimento em ampliação da rede para captação em rios mais distantes, viabilizando a captação de água dentro das bacias hidrográficas mais próximas aos locais de fornecimento.

De acordo com Porto (2008), o conceito de descentralização da gestão da água para o nível local, e as necessidades de articulação que a gestão por bacias hidrográficas exige, estão ainda dependentes de uma enorme evolução institucional do país, bem como medidas de sustentabilidade, e de intervenções ambientais de preservação. Desde a criação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos com a nova constituição de 1988, a Lei das Águas de 1997 e a criação da Agência Nacional de Águas (ANA), foram feitos importantes avanços na descentralização do gerenciamento nas linhas preconizados no nível internacional (ANA, 2002). No entanto, com a criação do Instituto das Águas à base da antiga Superintendência de Desenvolvimento de Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental (SUDERHSA) em 2009, as “funções de entidade de regulação e fiscalização do serviço de saneamento básico” (Águas Paraná, 2007) passam a ser organizados em um arranjo particular no estado do Paraná. Pela criação desta autarquia vinculada à Secretaria Estadual do Meio Ambiente mediante Lei nº 16.242, o Instituto das Águas se estabelece como “órgão executivo gestor do Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos” (Medeiros, 2011).

Medeiros e Canali (2012) em uma análise das atas dos comitês de bacia no Paraná, apontam para uma peculiaridade do Comitê das Bacias do Alto Iguaçu e Afluentes do Alto Ribeira (COALIAR), que foi o primeiro estabelecido no estado. Se bem que as quotas de representação até sobressaem as exigências da lei, de acordo com os autores, as atas “apresentaram poucos registros de manifestação dos conselheiros” e “poucas manifestações dos participantes”. Segundo os autores “são registradas aprovações coletivas sem debates, questionamentos ou decisões conflituosas” e que essa “falta deste registro dificulta conhecer as posições setoriais e/ou individuais dos conselheiros.” Medeiros (2011) ainda afirma que:

“O Modelo descentralizado de gestão parece enfrentar limites na sua implementação, conflitando práticas e idéias que alimentaram os modelos burocráticos e tecnocráticos, uma vez que os segmentos do sistema ainda carregam em suas formas de atuação os ’vícios’ das velhas formas de gerenciar as águas”.

Observando a estrutura de governança dos recursos hídricos no estado do Paraná e consequentemente da região metropolitana, percebe-se uma instigante controvérsia na estrutura de governança e cumprimento das diretrizes colocadas pelos diferentes planos que estão em vigor na governança dos recursos hídricos na RMC (Horning et al., 2016).

A Figura 6 mostra os principais órgãos estabelecidos para a governança hídrica pela política nacional e estadual (do Paraná): o Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CERH), a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (SEMA), o Instituto das Águas do Paraná (antiga Superintendência de Desenvolvimento Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental SUDERHSA), os comitês de bacia e as respectivas agências de bacia.

 

 

A diferença de outros estados, o Paraná conta com uma estrutura particular com o Instituto das Águas (em vermelho na Figura 6), que age ambos como órgão executivo e ao mesmo tempo como fiscalizador no sistema. Nas diretivas pela política nacional, os comitês de bacia, como unidade mais local, ficam independentes, mas cooperando com os órgãos estaduais. No caso do Paraná a agência de bacia fica justamente representado pelo Instituto das Águas o que não garante uma separação entre estabelecimento de metas e fiscalização independente, senão uma “sobreposição institucional”. Nas palavras de Hojda et al., 2014:

“Parte do problema ocorre porque o Instituto das Águas do Paraná, órgão executivo gestor do Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos – SEGRH/PR, que tem por finalidade oferecer suporte institucional e técnico à efetivação da PERH/PR, não vem agindo de modo efetivo. Cabe ressaltar que também é finalidade do Instituto das Águas do Paraná o exercício das funções de entidade de regulação e de Agência de Bacia. Essa diferenciada definição institucional do Instituto das Águas (antiga SUDERHSA) como a Agência de Bacia gera uma sobreposição institucional (confusa) desse ator desenhado originalmente para agir como planejador, implementador e fiscalizador da gestão de recursos hídricos do Paraná”.

Além disso, as autoras Rauber e Cruz (2013) apontam para a “falta de estrutura do [Instituto das Águas do Paraná], para atender adequadamente à demanda de processos” de efetivação dos comitês de bacia como efetivos espaços para discussão dos usos múltiplos da água, a função de “parlamento das águas” discutida por esses autores. Assim a função de participação popular efetiva ainda não é alcançada (Jacobi e Francalanza, 2005). Diferentemente do que em outros estados, onde as agências reguladoras podem divergir dos comitês de bacia, o poder de decisão acaba sendo concentrado nesse ator. Como ele faz parte da SEMA, seu potencial para defender interesses específicos ligados à questão hídrica e, em detrimento da expansão urbana, são reduzidos drasticamente.

Tendo em vista as iniciativas de integração na RMC, o ProMetrópole merece uma atenção atenta. Esse programa com presidência do prefeito e vice-presidência do diretor da FIEP (Federação das Indústrias do Paraná) junto com órgãos metropolitanos como Assomec, COMEC, Sebrae, Fecomércio e FACIAP (Federação das Associações Comerciais e Empresariais do Estado do Paraná), percebe-se um foco forte em temas comerciais (Agência de Notícias da Prefeitura de Curitiba, 2017). Fica a esperar que temas sociais e ambientais como o assunto da água como bem público na região serão integrados nas agendas de integração metropolitana (Medeiros, 2011). Porém, o atual arranjo coloca pouca importância ao assunto (Weins, 2019).

 

5. Discussão e conclusão

Visto de forma mais ampla, Curitiba é um exemplo sul americano de avanço de agendas de sustentabilidade, de acordos internacionais e de soluções pioneiras em políticas ambientais. Porém, para a questão hídrica, a cidade na cabeceira do Rio Iguaçu apresenta maiores desafios do que para outras cidades brasileiras. As instituições envolvidas na gestão dos recursos hídricos na Região Metropolitana de Curitiba refletem em boa parte dos seus planos a agenda internacional, e incorporam com certo atraso as tendências de Gerenciamento Integrado de Recursos Hídricos. No entanto, o arranjo institucional escolhido no estado dificulta um diálogo verdadeiro como “parlamento das águas” (Rauber e Cruz, 2013), tendo em conta as grandes divergências de interesses. Isto, no cenário político atual brasileiro é um retrocesso na consolidação democrática.

A pesquisa bibliográfica e análise documental baseada em dados oficiais dos planos de ordenamento territorial relevantes ao estudo de caso (RMC) mostra que as diretrizes para a gestão dos recursos hídricos preconizadas internacionalmente e nacionalmente são absorvidas com retardo e certa modificação para os arranjos na escala subnacional. A evidência vem do fato do planejamento necessário à gestão hídrica na RMC ainda não ser, de fato, integrado, visto que os planos de habitação, de saúde e ambiental dialogam entre si de maneira limitada. Igualmente se encontram alguns órgãos, como o comitê de bacia, criado para facilitar a gestão integrada, e também na estrutura estadual, como o Instituto das Águas, que não estão cumprindo os seus papéis por vários desafios. Um deles poderia ser oriundo de funções não claramente definidas e da capacitação desatualizada dos funcionários, outro pelo receio em atribuir tarefas e poder regulativo à sociedade civil - processo importante na consolidação democrática - que poderia ir contra os interesses dos órgãos responsáveis e seus funcionários.

Além destes fatores gerenciais, é plausível também que os cálculos para oferta e demanda da água não reflitam a realidade. Nos vários planos analisados, os indicadores de comparação entre oferta e demanda levam em conta fatores básicos, mas estão ausentes do cálculo alguns fatores de relevância como a influência das mudanças climáticas, mudanças de renda da população, e spillovers relacionados à apropriação de água virtual por unidades geográficas. Carmo et al. (2014), inclusive indicam que o consumo per capita tem aumentado em diversas capitais brasileiras a medida em que se aumenta a renda. Pode se constatar ainda que “muitos dos problemas ambientais enfrentados pelas cidades brasileiras [...] têm suas origens na falta de uma postura proativa da sociedade brasileira e do poder público com relação ao crescimento urbano” (Martine e McGRANAHAN, 2010).

O fato da captação de água estar se afastando cada vez mais da cidade pólo (maior consumidora) pode ser considerada um aparente bálsamo para os moradores da RMC que segue uma tendência global da formação de “hidromegalópoles” (Carmo e Anazawa, 2017). Contudo, pode também ser fator de adiamento do enfrentamento da baixa qualidade dos corpos hídricos da região (Gadda et al., 2018). Além disso, a poluição dos corpos hídricos no interior dos municípios (como é o caso de Curitiba) pode ser fator de desestímulo a um planejamento urbano por bacias, como preconizado internacionalmente, pois neste caso a captação para abastecimento está na franja e/ou fora do município. Neste último caso a responsabilidade pela qualidade da água é colocada sobre um outro município, gerando conflitos no uso e ocupação do território e preocupação quanto às compensações econômicas cabíveis.

Além disso, os planos municipais parecem incluir diretrizes de preservação dos mananciais de maneira vaga. São indicadas medidas de conservação e “melhorias ambientais”, mas que não definem parâmetros de monitoramento e nem objetivos claros de como tais melhorias podem ser alcançadas e não definem responsabilidades claras para este assunto. Importante citar também o essencial envolvimento dos gestores públicos neste processo. Um melhor monitoramento do sistema de proteção ambiental levaria para uma perspectiva positiva pautada segundo os preceitos do desenvolvimento sustentável, que reconhece a interdependência dos setores urbanos (Schussel e Nascimento Neto, 2015).

É necessário um esforço mais integrado na gestão dos recursos hídricos e na absorção dos conceitos preconizados internacionalmente sob o risco de os atores envolvidos na gestão hídrica estarem negligenciando questões importantes já estabelecidas e que podem garantir a qualidade dos recursos hídricos e seus múltiplos usos para o bem-estar humano.

 

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Received: 10-06-2019; Accepted: 28-02-2020.

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