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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.40 Lisboa jun. 2020

https://doi.org/10.15846/cct.jun2020.040.doss-edit 

EDITORIAL

 

Trabalho sem fronteiras: perspetivas sobre os serviços domésticos e a prestação de cuidados

Work without borders: viewpoints on domestic services and care

 

Nuno DiasI; Inês BrasãoII; Manuel AbrantesIII

[I]DINÂMIA’CET-ISCTE, Portugal. e-mail: nuno.manuel.dias@iscte-iul.pt.

[II]Instituto Politécnico de Leiria; Instituto de História Contemporânea da FCSH, Universidade Nova de Lisboa, Portugal. e-mail: ibibrasao@gmail.com.

[III]SOCIUS/CSG - Investigação em Ciências Sociais e Gestão, Instituto Superior de Economia e Gestão, Universidade de Lisboa, Portugal. e-mail: manuelabrantes@gmail.com.

 

 

A apresentação deste dossier resulta do encontro de vontades de três pessoas que têm investigado o universo dos serviços domésticos a partir de perspetivas diferenciadas, complementares, mas, por vezes, pouco comunicantes. Os processos de feminização dos movimentos migratórios e do mercado de trabalho das últimas décadas têm sido reconhecidos largamente pela literatura, em alguns casos como parte integrante desses movimentos desde a sua origem. A globalização da economia capitalista e o consequente movimento perpétuo de circulação de forças de criação e de destruição de trabalho beneficiaram da participação, nesse movimento, das mulheres e da sua fuga, enquanto resistência, à «dominação masculina». Todavia, apesar da natureza estruturante destas dinâmicas, as narrativas mais influentes sobre o mercado de trabalho e as suas disposições futuras tendem a menorizar um amplo conjunto de protagonistas e de sectores de atividade.

Novos paradigmas de organização e de gestão da produção dependentes das ideias de flexibilidade e de desregulação no mercado de trabalho mantêm ativas lógicas coloniais de estratificação dos modos de produção e do consumo. Nesse curso, a tendência de desqualificação social das tarefas reprodutivas e desempenhadas na esfera do espaço da intimidade encontra nos movimentos migratórios pós-coloniais, de maior ou menor amplitude, a mão de obra sobre a qual se (re)materializa uma hierarquia racial ao longo dos processos de segmentação do mercado de trabalho, a par da hierarquia de classe e de género.

A circunstância recente da pandemia de Covid-19 confirma a severidade de um sistema social dependente de um quadro generalizado de relações laborais precárias e informais, onde questões como o tempo de trabalho, remuneração, proteção social e desemprego mantêm as assimetrias e a desigualdade entre centros e periferias e os movimentos pendulares que lhes são característicos. A condição das trabalhadoras domésticas e das cuidadoras obliterou-as da possibilidade de escolha entre confinamento e rendimento, agudizando a vulnerabilidade decorrente da ausência de mecanismos de proteção e de plataformas de representação.

Apesar de não capitalizar grande interesse nos saraus científicos que discutem o tipo de sociedade em que vivemos, o trabalho doméstico representa, à escala mundial, uma parte considerável do trabalho realizado por mulheres, especialmente quando estas são pobres e/ou não-brancas. Por si só, este facto põe em evidência a perpetuação de regimes de sociedade inscritos no tempo e é o espelho refletor de um paradigma social de desigualdade e subalternidade e de modelos de vida intocados transnacionalmente. Pode parecer pouco, mas como estamos a falar de um tipo de trabalho que constitui uma alavanca esquecida da «modernização» das sociedades, rapidamente percebemos a sua importância. O estudo do trabalho doméstico na longa narrativa histórica convoca-nos para as perguntas mais difíceis: por que razão se considerou natural subalternizar, inferiorizar, maltratar e explorar indivíduos cujo corpo e, muitas vezes, a própria vida, se entregou ao bem-estar de um outro e dos seus familiares? Por que razão os processos de dominação de uns sobre outros, na esfera da propriedade privada (a casa, a herdade, a plantação), se revestem de uma violência particular?

Talvez seja porque a perpetuação do trabalho doméstico contribui para a reprodução das principais categorias de divisão social e política que norteiam as sociedades e alimentam alguns dos princípios elementares da estratificação social: a necessidade de distinção a partir do poder que temos sobre o outro no espaço privado, cuja pesada herança patriarcal persiste (o(a) patrão(oa)/ escravo (a)/empregado(a)); a exibição dessa diferença social como troféu de que nos conseguimos livrar da responsabilidade de eliminar o sujo e os resíduos porque a outra classe de indivíduos isso compete; o pacto com o sistema de que a nem todos os indivíduos serão atribuídos os mesmos privilégios (por exemplo, o ócio e o desprendimento do trabalho reprodutivo), e por aí fora.

Os três primeiros artigos que apresentamos neste dossiê convocam-nos para diferentes facetas do problema, mas, por outro lado, é possível subentender-lhes aspetos convergentes. Entre estes, ressaltamos o facto de todos se reportarem a geografias inscritas no hemisfério sul, compreendendo a realidade das Ilhas Maurícias, no primeiro caso e, depois, a realidade do Brasil e da Argentina, no segundo e terceiro casos. Outro elemento comum é o de terem desenvolvido trabalho etnográfico no levantamento das suas investigações. A etnografia permite que tenhamos acesso à forma como os indivíduos são guiados não apenas por uma luta pela sobrevivência, fazendo e refazendo as suas condições de existência, mas também pelo modo como atribuem um sentido ao mundo e ao seu lugar nesse mundo (Willis, 2001). Em face do carácter extremamente opaco em que se travam as condições de realização do trabalho doméstico, ter acesso a essa visão do mundo a partir dos próprios trabalhadores subalternizados ganha, aqui, forças imperativas. O trabalho de campo e a história oral são indispensáveis, uma vez que encontram nas protagonistas, bastas vezes, uma relação com o reportório de vida que é mais facilmente enunciado e rememorado pela fala do que pela escrita, dando ao investigador a possibilidade de fazer o resgate do repertório dessas práticas a partir do lugar de fala das trabalhadoras. Como curiosidade, acrescente-se que não é claro o domínio das fontes orais na historiografia do serviço doméstico, predominando antes a estatística, cartas, literatura, legislação, legados testamentários, a imprensa escrita ou os registos de saúde. Podíamos identificar ainda outros pontos de acordo, como o facto de a identificação desta forma de trabalho ser aqui apresentada como especificamente feminina ou, ainda, o de esclarecer que os contornos presentes nos estudos só podem ser compreendidos na articulação com o denso passado colonial, mas atiremo-nos a cada um deles.

No artigo de Colette le Petitcorps, as alterações no formato de trabalho doméstico que caracterizam o universo mauriciano, entre os anos de 1968 e o momento atual, são-nos apresentadas como o reflexo das mudanças operadas no próprio país. É uma análise exemplar de como a história económica e a história social são indestrinçáveis. A herança colonial permanece inscrita nos códigos corporais e nos rituais de deferência que marcam a relação ama/serva e, apesar de as Ilhas Maurícias serem consideradas um caso-de-sucesso nos manuais de desenvolvimento (um smart country de desenvolvimento neoliberal) a autora não deixa escapar o quanto esse «país inteligente» reforçou a estrutura de relações de subordinação pré-existentes na plantação, mas agora replicadas em segundas-residências e residências turísticas que fazem das Maurícias um dos países com tabela de preços mais elevada no mercado global dos destinos. A infraestrutura humana, essa, continua servidora dos patrões e «empreendedores» de portento económico crescente, passando apenas do império do açúcar para o do turismo, da biotecnologia ou dos eventos culturais.

O artigo seguinte, de Guélmer Júnior Almeida de Faria, Maria da Luz Alves Ferreira e Andrea Maria Narciso Rocha de Paula, interpela o triângulo que une a imigração urbana, os mercados de trabalho e o serviço doméstico, tendo como referencial espacial o estado de Minas Gerais, no Brasil. Reporta os itinerários através dos quais, logo desde o primeiro estágio de vida, mulheres muito jovens entram nas redes de recrutamento que as levam da terra-campo para a cidade. Em 1995, por exemplo, os trabalhadores domésticos acusavam nos censos brasileiros a mais alta taxa de analfabetismo entre os trabalhadores urbanos (passando de 19,69% em 1985 para 16,49%). No mesmo período, em outras atividades, a taxa de analfabetos era de 7,41% (Melo, 1998). Trata-se de um estudo sobre o tempo presente, contemplando a grande vantagem de nos elucidar acerca dos modelos de recrutamento, fixação e deslizamento da enorme massa de migrantes que se arrancam do espaço rural e cujas redes pré-estabelecidas, de carácter informal, acabam por operar enquanto facilitadoras dos processos de integração. É ainda uma perspetiva que nos alerta para caminhos díspares entre as migrações femininas e masculinas, sendo as primeiras, regra geral, mais «encapsuladas», porque restringidas ao controlo domiciliário, enquanto as segundas permitem um fluxo e uma transitoriedade pela cidade com ganhos no alargamento das redes de oportunidades.

No artigo de Lorena Poblete é colocado o problema da formalização do trabalho como meio para o alcance de melhor reconhecimento e enquadramento do trabalho doméstico. A resposta não é clara, como veremos a partir do duplo olhar dos protagonistas atuantes no processo: trabalhadora e empregador. Numa parte considerável do mundo, o trabalho informal sobrevive enquanto economia subterrânea e é, sem margem para dúvida, o único ganha-pão de grupos de indivíduos muito vulneráveis, quer pelas suas histórias de vida, em regra migrantes, quer por terem sido privados do acesso ao hipotético elevador social que é a escola, quer porque determinados acontecimentos precipitaram a súbita perda do seu trabalho e, em consequência, a sistemática ostracização. A pandemia de 2020 mostrou, aliás, que dois dos países mais castigados pelo crescimento abrupto do número de infetados e mortos, o Brasil e os Estados Unidos, são justamente aqueles em que os números de trabalho informal e/ou precário são mais expressivos. Ora, como é referido pela autora “a formalização é tratada não como responsabilidade do empregador, mas como uma opção para os trabalhadores domésticos [e] o comportamento ilegal dos empregadores é, portanto, retratado como meramente atendendo à solicitação do trabalhador doméstico”.

A nível dos vários passos regulamentares e jurídicos que já têm sido dados, o estudo de Lorena Poblete confirma que a burocratização é elevada, e o acesso aos meandros da regulamentação desenquadra, repele e castiga sempre as trabalhadoras, em vez de as enquadrar. Mas há ainda a questão maior relativa às contendas judiciais interpostas pelas trabalhadoras aos seus patrões quando querem ver definidos os seus direitos (por exemplo, relacionados com a contabilidade total das horas de trabalho antes de serem despedidas). E é nesta escala da luta pelos direitos de trabalho, onde os testemunhos em tribunal contrabalançam, com poder desigual, a verdade da trabalhadora contra a verdade do patrão, que a trabalhadora perde sistematicamente. As transcrições dos processos são esclarecedoras quanto ao facto de os patrões sequer admitirem a existência daquela mulher que para eles trabalhou, o que produz um sentimento de inadmissibilidade no respeito da trabalhadora em relação àqueles a quem se dedicou e à produção de sentimentos totalmente antípodas daqueles que teria vivido na casa: a consciência do mau trato e desprezo pela total invisibilidade a que foi sujeita.

Os obstáculos ao reconhecimento e à formalização do trabalho são retomados no artigo de José Soeiro e Mafalda Araújo, centrando-se este na prestação de cuidados por parte de familiares ou pessoas amigas, tipicamente entendidos como trabalho não pago. O artigo analisa a experiência de ação coletiva protagonizada pelo movimento de cuidadores e cuidadoras informais em Portugal, que pretendeu “romper uma clandestinidade legal” e desempenhou um papel crucial no debate público e no processo legislativo que conduziu à aprovação de um Estatuto do Cuidador Informal em Julho de 2019.

São assim iluminadas as dinâmicas de participação das próprias pessoas cuidadoras na regulação do seu trabalho, bem como as possibilidades de crescimento de um paradigma capaz de valorizar social e economicamente os cuidados em contexto familiar. O artigo convida-nos ainda a refletir sobre as fronteiras e interligações do trabalho doméstico pago e do trabalho doméstico não pago, entendendo como se ajudam a perceber mutuamente no que respeita, por exemplo, à dimensão de género que perpassa ambos; ou às representações sociais do «altruísmo» e da «dádiva» como barreiras ao reconhecimento de direitos; ou ainda, ao caráter determinante de uma identidade coletiva para gerar e fortalecer reivindicações, algo identificado também na ação coletiva das empregadas domésticas (Marchetti, 2012).

Ana Paula Gil analisa a prestação de cuidados noutro contexto, as estruturas residenciais para pessoas idosas, focando-se no modo como as condições de trabalho de auxiliares de ação direta influenciam a qualidade do serviço. A recolha de dados empíricos na Área Metropolitana de Lisboa permite identificar problemas associados a fatores contratuais (falta de pessoal, salários baixos, pouca formação, sobrecarga de horários e volume de trabalho), fatores interpessoais (mau ambiente laboral, supervisão inexistente ou insatisfatória) e fatores motivacionais (falta de valorização do trabalho e das suas exigências efetivas, incluindo a dureza do trabalho físico e de lidar com a doença e a morte). A autora observa que a falta de qualidade do emprego tem impactos não só na saúde física e mental de quem presta o serviço, especialmente depressão, tendinites e problemas de coluna, mas também sobre a qualidade do serviço prestado. O facto de Portugal ser o país da OCDE com menor proporção de trabalhadoras/es de cuidados por população idosa reflete-se de forma impressionante nos testemunhos recolhidos sobre instituições onde os utentes tomam um banho por semana e estão habitualmente presos à cama ou a uma cadeira.

O estudo de Ana Paula Gil mostra que a dignificação do trabalho passa necessariamente pela sua profissionalização. Tal como se constata nos artigos anteriores relativamente ao espaço doméstico, também nestes espaços institucionais encontramos uma valorização de aspetos como a dedicação ou o gosto pelo trabalho acima de competências profissionais, que são negligenciadas ou mesmo desperdiçadas no caso de mulheres que possuem formação ou experiência profissional na área. São particularmente ilustrativos os percursos de mulheres migrantes descritos no artigo, alguns dos quais incluem experiências de prestação de cuidados em contexto de instituições (muitas vezes sem certificação legal) e em contexto domiciliário (como empregadas domésticas «internas»).

Os dois artigos finais trazem-nos de novo contributos da América do Sul. No primeiro, Sílvia Ferro examina as condições demográficas e sociais que subjazem às transformações dos fluxos migratórios de cuidado desde o último quarto do século XX, atentando em particular à participação de países sul-americanos em tais fluxos. Em linha com a noção de que as cadeias globais de cuidado são um traço constitutivo do capitalismo contemporâneo (Hochschild, 2000), a autora enquadra os movimentos migratórios em desenvolvimentos económicos maiores, fundamentais para compreender a partida de muitas mulheres da América do Sul para a América do Norte e para a Europa, onde vieram a assumir funções de cuidado.

Salienta também a intensificação de movimentos intra-regionais, isto é, entre diferentes países da América do Sul, a partir dos primeiros anos do século XXI, quando vários destes países implementaram políticas redistributivas e registaram uma aceleração do crescimento económico. A análise abarca ainda os impactos e desafios que emergiram da nova etapa iniciada com a crise financeira de 2008, à qual se seguiu a recessão económica e o retorno de políticas neoliberais. Em tempos nos quais se conjugam a crise global de cuidados e a contração dos orçamentos públicos, uma parte desmedida dos custos é suportada pelas trabalhadoras domésticas migrantes, que se descobrem, como conclui Sílvia Ferro, numa posição de desvantagem perante os conflitos em torno dos usos do tempo e das deslocações geográficas.

No artigo que encerra o dossiê, Ester Martins Ribeiro e Rosana Baeninger debruçam-se empiricamente sobre a cidade de São Paulo, no Brasil, olhando-a não como local de partida, mas como local de destino. Caracterizam o movimento migratório de mulheres filipinas e as relações sociais que determinam a sua concentração no setor do trabalho doméstico, em particular, o crescente interesse que nelas demonstram as famílias de classe afluente e as agências de colocação. Procurando libertar as mulheres da lida doméstica e dos cuidados a crianças e pessoas idosas sem questionar a escassa participação dos homens, as famílias encontram nas mulheres filipinas a resposta às suas necessidades quotidianas e às suas expectativas de estatuto social: são trabalhadoras escolarizadas, fluentes em inglês, disponíveis para dormir no local de trabalho e associadas a um comportamento dócil e leal. Estas mulheres, por seu lado, deixam para trás as próprias famílias, sobretudo filhos e filhas, a quem remetem uma grande parte da remuneração que auferem, e são construídas no discurso público do país de origem como «heroínas modernas» (modern heroes) – provavelmente uma das mais perturbadoras hipocrisias num capitalismo global, que gosta de se apresentar como distante e superior às mecânicas de exploração que marcaram os séculos passados.

No seu conjunto, os artigos reunidos neste dossiê oferecem-nos uma visão ampla e acutilante das desigualdades que atravessam e estruturam o trabalho doméstico. Assinalam também esforços de contestação e transformação. Igualmente notório é o esforço envidado por todas as autoras e autores para que a sua análise não reproduza acriticamente as relações de poder existentes nos contextos estudados. Procuram quebrar esse paradigma, por exemplo, quando examinam as relações de trabalho através dos testemunhos e das interpretações de trabalhadoras domésticas; ou quando discutem os movimentos migratórios a partir de dinâmicas ocorridas nos países de origem e não apenas nos países de destino. Também sublinhadas em vários artigos são as insuficiências que persistem no registo e na medição do trabalho doméstico. As ciências sociais não podem de modo algum eximir-se da sua própria responsabilidade na realidade que estudam.

A 16 de Junho de 2020, numa conferência online organizada pela Organização Internacional do Trabalho, trabalhadoras domésticas dos quatro cantos do mundo relataram as consequências da pandemia de Covid-19 que sentiram no respetivo país. Descreveram também o que diversas organizações no terreno, nomeadamente sindicatos que integram a International Domestic Workers Federation, têm feito para apoiar trabalhadoras domésticas confrontadas com o desemprego, a desproteção social, a doença, o desalojamento, a fome, a violência física e sexual, o racismo. Os testemunhos recolhidos nessa conferência deixaram patente a importância crucial de conhecer melhor a realidade, de refletir criticamente, de elaborar ferramentas conceptuais e práticas para sustentar um mundo com mais justiça social.

Os imperativos do cruzamento de perspetivas disciplinares e da comparação de contextos de observação sobre os serviços domésticos e a pluralidade de dimensões que estes encerram na sua relação com o passado, com circuitos globais de mão de obra, com dinâmicas de auto-mobilização e formação de identidade profissional, com dinâmicas de preconceito e de discriminação mais amplas, foram justamente o ponto de encontro a partir do qual iniciámos uma discussão sobre a necessidade de identificar e de sistematizar um conjunto variado de trabalhos e modos de ativação de diálogos entre si, e da sua participação num debate público sobre estes temas. O presente dossiê pretende ser um primeiro momento desse projeto.

 

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The origin of this thematic dossier was a meeting of wills between three persons that have conducted research on domestic services from different and complementary perspectives, which sometimes have only little communication. The processes of feminization of migrations and labour markets over the last decades are signalled in the literature; in some cases, they were a feature of the migratory flow from its very outset. The globalization of the capitalist economy and the subsequent perpetual circulation of forces that create and destroy work benefited from the participation of women and from their evasion, as a form of resistance, from «male domination». Despite the structuring character of these dynamics, the most influential narratives on the labour market and its future trends still tend to neglect a wide array of actors and activity sectors. New paradigms of organising and managing production based on the notions of labour market flexibility and deregulation maintain colonial logics of stratification in production and consumption. The social downgrading of reproductive tasks, or tasks performed in private spaces, draws on post-colonial migratory flows (of greater or lesser dimension) to find the necessary workforce, upon which a racial hierarchy (re)materializes along the lines of labour market segmentation.

The recent circumstance of the Covid-19 pandemic confirms the severity of a social system depending on precarious and informal labour relations, in which aspects such as working time, remuneration, social protection and unemployment maintain asymmetry and inequality between cores and peripheries as well as the pendular movements between both. Given their condition, domestic workers and caregivers were hardly able to choose between confinement and income, sharpening vulnerabilities that result from a lack of both protection mechanisms and representation platforms.

Although it does not attract that much interest in the scientific soirees discussing the societies we live in, domestic work represents a substantial part of the work done by women worldwide, especially when they are poor and/or non-white. In itself, this fact exposes the perpetuation of society regimes inscribed in time and reflects a social paradigm of inequality and subordination, as well as life models transnationally untouched. It may seem little, but we quickly realize its importance as we are talking about a type of work that constitutes a forgotten lever for the «modernization» of societies. Difficult questions are raised by the study of domestic work in the long historical narrative: why was it considered natural to subordinate, downgrade, mistreat and exploit individuals whose bodies, and many times their own lives, were dedicated to the well-being of other persons and their families? Why do the processes of social domination in the private sphere (the house, the propriety, the plantation) entail particular violence?

It is perhaps because the perpetuation of domestic work contributes to the reproduction of the main categories of social and political division regulating societies and underpinning some of the basic principles of social stratification: the need for distinction based on the power held by one person over another in the private space, in which a heavy patriarchal legacy lingers on (the sir or madam / slave / employee); the exhibition of that social difference as a trophy showing that one got rid of the responsibility of eliminating dirt and waste, as this is a task ascribed to other individuals; the compliance with a system in which not all individuals are granted the same privileges (for example, leisure and detachment from reproductive work); and so on.

The first three articles in this thematic dossier highlight different dimensions of the problem, but several aspects of convergence are also discernible. Among these, we stress that all of them report on geographies of the Southern hemisphere: Mauritius, Brazil and Argentina, respectively. Another aspect in common is that they entail ethnographic work. Ethnography enables access to the ways individuals are guided not only by a struggle for survival, building and rebuilding their conditions of existence, but also by the meaning they ascribe to the world and to their place in that world (Willis, 2001). Considering the extreme opacity of the conditions under which domestic work is performed, it is essential to access visions of the world expressed by the very subalternized workers. Fieldwork and oral history are indispensable, since they often grasp a relation between the actors and their own experiences that is more easily articulated and recalled through speaking than through writing; the researcher is thus able to register those practices from the speaking place of women workers. Oral sources, curiously, do not predominate in the historiography of domestic services; use is more commonly made of statistics, letters, literature, legislation, testaments, press or health registers. Other topics of agreement between these articles could be mentioned here, such as the identification of domestic work as specifically feminine or the need to dig into the colonial past to understand current features, but let us look at each one of them.

In the article by Colette le Petitcorps, the changes in the configuration of domestic work in Mauritius since the year of 1968 are presented as a reflection of changes in the country itself. It is an exemplary analysis of how economic history and social history are inextricable. The colonial legacy remains inscribed in body codes and deference rituals cutting through the mistress/servant relation; and, while the Mauritius islands are considered a successful case in development handbooks (a «smart country» of neoliberal development), the author shows how that same «smart country» reinforced the structure of relations of subordination that existed in the plantation, now replicated in second-homes and tourism houses that make the Mauritius a country with rather high prices in the global market of destinations. The human infrastructure goes on serving bosses and «entrepreneurs» with rising economic power, who simply moved from the sugar empire into that of tourism, biotechnology, or cultural events.

Guélmer Júnior Almeida de Faria, Maria da Luz Alves Ferreira and Andrea Maria Narciso Rocha de Paula address the triangle of urban immigration, labour market and domestic service in the state of Minas Gerais, in Brazil. It uncovers the itineraries through which very young women enter recruitment networks, which take them from their hometown in the countryside to the city. In 1995, for example, domestic workers registered the highest illiteracy rate among urban workers in the Brazilian census (decreasing from 19,69% in 1985 to 16,49%). At the same time, the illiteracy rate in other activities stood at 7,41% (Melo: 1998). The article focuses on the present time, illuminating models of recruitment, settlement and mobility of a massive number of migrants pulled out of the rural space, and whose pre-established informal networks end up facilitating integration. It also alerts to different traits in the migration of women and men: the former are generally more “encapsulated”, as they are restricted to domiciliary control, while the latter enjoy some mobility in the city with advantages for the enlargement of their opportunity networks.

The article by Lorena Poblete examines the formalization of work as a means to better recognize and regulate domestic work. The answer remains unclear, as we shall see through the eyes of two actors: worker and employer. In a large part of the world, informal work persists as a subterranean economy – the only way of living for individuals in very vulnerable situations, either because of their life stories, often involving migration, or because they have been deprived from access to the potential social elevator provided by school, or because some events led them to lose their job and be systematically excluded. Indeed, the 2020 pandemic shows that two of the countries with a rampant growth in the number of infections and deaths, Brazil and the United States, have very substantial numbers of informal and/or precarious work. As written by Poblete, “formalisation is treated not as an employer’s responsibility, but as an option for the domestic workers [and] the unlawful behaviour of employers is thus portrayed as merely granting the domestic worker’s request”.

With regard to several regulatory and juridical steps that have been taken, the study by Lorena Poblete shows the existence of heavy bureaucracy, and that workers are excluded, repelled and punished by the winding road to access regulamentation. Another issue concerns judicial complaints filed by workers against their employers to claim rights, for instance with respect to the final count of working hours before dismissal. In this struggle for worker rights, the truth of the worker and that of the employer oppose each other with unequal power, and the worker loses systematically. Court proceedings transcribed for the article show employers that do not even admit the existence of the woman that worked for them, producing a sense of unworthiness and feelings opposite to those she experienced in the house: she becomes therefore aware of mistreatment and disdain due to the total invisibility imposed on her.

The obstacles to the recognition and formalization of work are resumed in the article by José Soeiro and Mafalda Araújo, focused on the provision of care by relatives or friends, typically understood as unpaid work. The article analyzes the experience of collective action of the informal caregivers’ movement in Portugal, as it sought to “break a legal clandestinity” and played a crucial role in the public debate and in the legislative process leading to the approval of a Statute of Informal Caregivers in July 2019.

Light is therefore shed on the dynamics of participation of the very persons providing care in the regulation of their work, as well as the growing potential of a paradigm that entails a social and economic upgrade of care in family contexts. The article also invites readers to reflect on the borders and interconnections of paid and unpaid domestic work, which help understand one another with regard, for instance, to the gender dimension pervading both; or to the social representations of «altruism» and «gift» as hindering the recognition of rights; or to the crucial importance of a shared identity to generate and reinforce collective claims, something also relevant in the collective action of domestic workers (Marchetti, 2012).

Ana Paula Gil analyses the provision of care in another context, the residential institutions for elderly persons, focusing on how the working conditions of frontline workers influence service quality. The empirical data collected in the Greater Lisbon Area exposes problems associated with contractual factors (lack of staff, low pay, little training, long working hours and work overload), interpersonal factors (bad working atmosphere, inexistent or insufficient supervision) and motivational factors (little value ascribed to the work and its actual demands, including the hardship of physical work and of dealing with illness and death). The author observes that the lack of job quality impacts not only on the physical and mental health of caregivers, especially causing depression, tendonitis and spine problems, but also on the quality of the services provided. The fact that Portugal is the OECD country with the lowest ratio of care workers per elderly population translates in impressive ways into the accounts of interviewees about institutions where care recipients are bathed once a week and remain usually tied to a bed or to a chair.

The study by Ana Paula Gil shows that the dignification of work calls for professionalization. As shown in the preceding articles for the domestic sphere, these institutional contexts are also prone to the valorization of aspects such as personal dedication or working for passion above professional competences, which are neglected or even wasted in the case of women who have professional training or experience in the area. Particularly striking are the trajectories of migrant women described by Gil, some of which include experiences of care provision in institutions (often with no legal certification) and in homecare (as «live-in» domestic workers).

The two last articles bring additional contributions from South America. In the first one, Sílvia Ferro examines the demographic and social conditions underlying the changes in care migration flows in the last quarter of the twentieth century, paying particular attention to the participation of South American countries in those flows. Concurring with the notion that global care chains are a feature of contemporary capitalism (Hochschild, 2000), the author frames the migratory movements in wider economic developments, which are key to understand the departure of many women from South America to undertake care work in North America and Europe.

Ferro highlights the intensification of intra-regional mobility, that is, between different countries of South America, from the early years of the twenty-first century onwards, when several of these countries implemented redistributive policies and experienced an acceleration of economic growth. The analysis also comprehends the impacts and challenges emerging from the new stage initiated with the financial crisis of 2008, followed by economic recession and the return of neoliberal policies. In times of global care crisis and public budget contraction, a disproportionate amount of costs are borne by migrant domestic workers, who find themselves, as concluded by Ferro, in a position of disadvantage vis-a-vis conflicts concerning time use and geographic mobility.

In the final article, Ester Martins Ribeiro and Rosana Baeninger look empirically into the city of São Paulo, in Brazil, not as a place of origin but as a place of destination. They characterize the migration of Filipina women and the social relations determining their concentration in the sector of domestic work, especially the growing interest they have earned from wealthy families and placement agencies. Seeking to free women from domestic chores as well as childcare and eldercare without questioning the scarce participation of men, families find in the Filipina women a response to their daily needs and social status expectations: these are educated workers, fluent in English, available to sleep at the working place and associated with a docile and loyal behaviour. These women, in turn, leave their own families behind, in particular their children, to whom they send a large part of their earnings, and are construed in the public discourse of their country of origin as «modern heroes» – probably one of the most disturbing hypocrisies in a global capitalism that likes to present itself as distant and superior to the mechanics of exploitation that marked the past centuries.

As a whole, the articles gathered in this issue offer a wide and sharp vision over inequalities pervading and structuring domestic work. They also signal efforts of contestation and transformation. Apparent too is the effort expended by all of the authors to prevent an acritical reproduction of the power relations they find in the contexts of their studies. They attempt to break with such paradigm, for example, when they examine work relations through the words and interpretations of domestic workers; or when they discuss migrations based on dynamics occurring in the countries of origin and not only in the countries of destination. The lingering gaps in the registration and measurement of domestic work are also underlined in several articles. The social sciences cannot exempt themselves from their own responsibility in the realities they study.

On the 16th of June 2020, in an online conference organized by the International Labour Organization, domestic workers from around the globe reported on the consequences of the Covid-19 pandemic as experienced in their countries. They also described the action undertaken by various organizations, namely unions that are members of the International Domestic Workers Federation, to support domestic workers confronted with unemployment, lack of social protection, illness, homelessness, hunger, physical and sexual violence, racism. The testimonies collected in that conference confirm the importance of greater knowledge about what is going on, critical reflection, and conceptual and practical tools to support a world with more social justice.

The imperatives of developing cross-disciplinary perspectives and compare different settings to grasp a better understanding of domestic services and of the various dimensions underlying their relation with the past, with global workforce circuits, with dynamics of self-mobilization and professional identity, or with broader dynamics of prejudice and discrimination, were the meeting point from which we started to discuss the need to locate and systematize a variety of studies, enhancing dialogue between them and participation in the public debate about these topics. This thematic dossier intends to be a first step in that project.

 

Referências / References

Hochschild, A. R. (2000) “Global Care Chains and Emotional Surplus Value”, in W. Hutton, A. Giddens (Eds.), On the Edge. Living with Global Capitalism, London: Jonathan Cape, pp. 130-46.

Marchetti, S. (2012) “Together? On the not-so-easy relationship between Italian labour organisations and migrant domestic workers’ groups”, Working Paper 2012/3, ICDD – International Center for Development and Decent Work, University of Kassel, available at https://www.uni-kassel.de/einrichtungen/international-center-for-development-and-decent-work-icdd/publications/working-papers.html.

Melo, H. P. de (1998) “O serviço doméstico remunerado no Brasil: de criadas a trabalhadoras”, Diagnóstico do Setor Serviços no Brasil, Texto para discussão nº 565, Rio de Janeiro, Junho de 1998.

Willis, P. (2000) The Ethnographic Imagination , Maiden: Polity Press in association with Blackwell Publishers.         [ Links ]

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