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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.39 Lisboa dez. 2019

https://doi.org/10.15847/citiescommunitiesterritories.dec2019.039.art06 

ARTIGO ORIGINAL

 

Agricultura familiar urbana: limites da política pública e das representações sociais

Urban family agriculture: limits of public policy and social representations

 

Annelise Caetano Fraga FernandezI; Almir Cezar Baptista FilhoII

[I]Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil. e-mail: annelisecff@yahoo.com.br

[II]Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento/Serviço de Agricultura Familiar/Superintêndencia Federal da Agricultura no Rio de Janeiro, Brasil. e-mail: almircezarfilho@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo descreve os entraves para a aplicação da política pública da agricultura familiar em meio urbano no Brasil. Mostramos que uma série de representações associadas ao rural-agrícola tem moldado os critérios de classificação dos técnicos de assistência técnica rural (ATER), do mesmo modo que define na prática os limites de aplicação desta política em meio urbano. A mobilização de movimentos sociais ligados à agricultura urbana, especificamente no município do Rio de Janeiro, resultou na construção de uma arena pública que denunciou a falta de acesso de agricultores familiares cariocas às políticas agrárias. Como resultado deste esforço recíproco entre debate e ação, os critérios de classificação da agrariedade em meio urbano foram explicitados e o reconhecimento da agricultura familiar urbana foi dado como um problema público e, junto à possibilidade de interseção entre as políticas de agricultura familiar e agricultura urbana, o tema ganhou projeção nacional.

Palavras-chave: agroecologia, arena pública, Rio de Janeiro, agricultura urbana, segurança alimentar.


ABSTRACT

The article describes the obstacles to the application of family farming public policy in urban areas in Brazil. We show that a series of representations associated with rural-agricultural have been shaping the classification criteria of rural technical assistance technicians (ATER) and in practice define the limits of application of this policy in urban areas. The mobilization of social movements linked to urban agriculture, specifically in the city of Rio de Janeiro, resulted in the construction of a public arena that denounced the lack of access of Rio de Janeiro family farmers to agrarian policies. As a result of this reciprocal effort between debate and action, the criteria for urban agrarian classification were made explicit, and urban family farming was recognized as a public problem and the possibility of intersection between family and urban agriculture policies, designing the theme nationally.

Keywords: agroecology, public arena, Rio de Janeiro, urban agriculture, food safety.


 

Introdução

O presente artigo analisa as tensões e potencialidades da aplicação da política nacional de agricultura familiar em meio urbano no Brasil. Pretende-se demonstrar que parte importante desses impasses deve-se à dificuldade dos aplicadores da Política Nacional de Agricultura Familiar em identificar a agrariedade em meio urbano, informados por expectativas ideais de agricultura familiar e de estabelecimentos rurais que não se encontram de modo recorrente em espaços urbanos. Posto desta forma, já se trata do encaminhamento de um problema público, construído em uma arena argumentativa que procuramos descrever neste artigo. As questões aqui apresentadas são efeitos de dois processos simultâneos: a pressão de movimentos sociais do município do Rio de Janeiro em defesa da agricultura, vinculados à agroecologia e à agricultura urbana (AU), e, em parte, reagindo a esta demanda, o reconhecimento do órgão público federal a respeito da reduzida efetividade das políticas agrárias no estado do Rio de Janeiro, confirmando em alguma medida a fragilidade da atividade econômica exclusivamente rural no estado. Ainda que o debate aqui presente traga evidentes contornos locais, procura-se mostrar que o Rio de Janeiro (sobretudo o município) pôde contribuir para a adequação nacional da política pública orientada à agricultura familiar em contextos de complexidade metropolitana. Além disso, contribuiu para evidenciar a construção da Política Nacional de Agricultura Urbana reivindicada pelo Coletivo Nacional de Agricultura Urbana (CNAU)[3].

Com base na produção bibliográfica sobre definição de agenda (Kingdon, 2001, Hannigan, 2009, Fuks, 2001), descrevemos o debate público estabelecido no Rio de Janeiro (em diferentes instâncias federativas) em torno do qual se deu o reconhecimento da agricultura familiar urbana como um problema público merecedor de atenção pelos órgãos estatais. Queremos chamar atenção para dois aspectos deste debate. O primeiro é sua capacidade de revelar as oposições e resistências de técnicos e instituições que constituíram seu campo de atuação profissional sob a égide do agrícola rural e, neste sentido, têm pouca afinidade por aquilo que poderia ser uma agricultura da cidade ou agricultura urbana. O segundo aspecto busca demonstrar os resultados e potencialidades do reforço recíproco entre debate e ação nessas arenas (Fuks, 2001), possibilitando a interseção entre políticas públicas distintas, a convergência de agendas dos movimentos sociais e as práticas da agricultura urbana.

O que definimos como arena pública tem se constituído a partir da atuação de movimentos sociais em território fluminense[4] há cerca de uma década, de sua inserção em conselhos participativos e, recentemente, de uma frente parlamentar municipal[5]. Optamos, no entanto, por descrever a articulação entre atores, organizações e instituições a partir de um fórum de debates específico, o Fórum Permanente da Agricultura Urbana, constituído em 2017, como consequência de uma pauta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar - em sua instância municipal (CONSEA-RIO) - demandada à Secretaria Especial de Agricultura Familiar e Desenvolvimento[6]. Os dois autores deste texto, como representantes de suas respectivas instituições, vêm acompanhando este e outros fóruns de debate sobre a agricultura carioca[7], o que faz desta produção resultado de uma pesquisa-participante, aquela na qual participam pesquisadores e pesquisados e há a realização concomitante da investigação e da ação (Haguette, 1992).

 

1. Desruralização, desagriculturalização e agricultura urbana no Rio de Janeiro

De acordo com Baptista Filho (2018), o estado do Rio de Janeiro, localizado na Região Sudeste do Brasil, possui 0,5% do território nacional. Possui a terceira maior população estadual do país (16 milhões de habitantes). Com base em dados de 2015[8], aponta como o segundo maior PIB[9] estadual (556,4 bilhões), representando 12% do PIB brasileiro, o que equivale a 35% maior do que a média nacional. Justificando esses números, identifica-se uma forte concentração da atividade produtiva no setor de serviços, equivalente a 75,9%. Já a indústria corresponde a 23,6%, enquanto o setor agropecuário contribui com 0,54%, o que corresponde a R$3 bilhões anuais. Com base nesses números do setor agropecuário fluminense, observa-se, por um lado, que a agricultura e o espaço rural fluminense são maiores do que se supõe, demonstrando sua potencialidade para o desenvolvimento do estado. Por outro lado, este número é dez vezes menor do que os indicadores nacionais da agropecuária, que correspondem a 5,7% do PIB brasileiro. Também é possível observar uma tendência crescente de desagriculturalização e perda de territórios rurais, já que em 2011 a atividade agropecuária fluminense correspondia a 0,9% do PIB nacional, em contraste com 0,54% já apontado em 2015. Historicamente, os baixos indicadores da agricultura fluminense encontram justificativas no colapso da grande monocultura tradicional e o caráter rudimentar da pequena agricultura, além do fato de que o Rio de Janeiro, nas últimas quatro décadas, foi pioneiro na industrialização e urbanização e hoje passa por uma pós-industrialização precoce.

Em um total de 43,6 mil km² de extensão territorial estadual, apenas dois milhões de hectares correspondem aos estabelecimentos agropecuários e, deste total, 56% têm menos de 10 ha. Deste modo, a fragilidade da atividade agrícola fluminense contribui para um perfil de forte pluriatividade com o desenvolvimento de atividades não-agrícolas, tipicamente rurais ou não.

Confirmando o quadro de pluriatividade, Medeiros, Souza e Alentejano (2002), Novicki (1994) e Grynspan (1998) destacam o perfil rural-urbano dos trabalhadores que se envolveram nos conflitos de terra e na constituição dos assentamentos rurais na Região Metropolitana na última metade do século XX. Ao mesmo tempo que tinham origem rural, possuíam também inserção em atividades consideradas urbanas, tais como a construção civil, comércio, etc. Não tinham, deste modo, a pretensão de tornarem-se agricultores típicos. Viam na luta pela terra, uma forma de conciliação entre trabalho e moradia.

A imprecisão entre territórios e usos rurais-urbanos acabou por refletir-se também na política de crédito rural do estado. Segundo estudo de 2011 (Baptista Filho, 2018), 94% dos agricultores familiares não tomaram financiamento de qualquer fonte naquele ano. A incapacidade do poder público em aplicar políticas públicas agrárias, seja pela baixa demanda ou por inadequação dos demandantes aos critérios de enquadramento dessas políticas, acaba por contribuir para a consolidação de tais processos em curso. Dito de outro modo, a desassistência de políticas públicas agrárias ao longo de décadas tem contribuído para o “declínio do peso do setor agrícola no cenário econômico e social fluminense” (SEAD, 2017).

Este cenário é ainda mais grave na capital. O plano diretor do Município do Rio de Janeiro não reconhece nenhuma área como território rural e desde a década de 1960 extinguiu a Secretaria Municipal de Agricultura.

 

 

Nas últimas décadas, houve um crescente processo de invisibilização da atividade agrícola do município que, embora não tenha desaparecido, coexiste ameaçada por processos de expansão urbana, por instalação de grandes empreendimentos ou por políticas excludentes de conservação ambiental. Este é o caso da Zona Oeste da cidade. Ali se desenvolveu uma pequena agricultura de base familiar. Imigrantes, migrantes, descendentes de ex-escravos estabeleceram seus cultivos em terras menos valorizadas. Algumas delas, áreas de encostas, grotas, áreas próximas aos rios e lagoas.

O mapa abaixo, de 1957, quando a cidade era ainda Distrito Federal (capital do país), mostra como a agricultura de base familiar concentrou-se em morros e baixadas, até então áreas menos ocupadas da Zona Oeste do Rio de Janeiro. No alto identifica-se o Maciço de Gericinó-Mendanha, abaixo o Maciço da Pedra Branca e à direita, o Maciço da Tijuca[10]. Pode-se observar também, pela localização dos mercados, que essa agricultura possuía escala para o abastecimento da cidade.

 

 

Posteriormente, essas terras tornaram-se alvo de especulação imobiliária ou foram transformadas em áreas de proteção ambiental, sobretudo do tipo parque[11].

Não foram apenas as dinâmicas territoriais que afetaram a agricultura carioca, mas também o processo mais amplo de tecnificação e racionalidade capitalista que alterou a posição que outrora esta agricultura ocupava no abastecimento da cidade. Progressivamente abandonada pelas instituições, com baixos recursos tecnológicos e restrições de manejo, a produção da Zona Oeste tornou-se periférica, abastecendo feiras e estabelecimentos comerciais locais ou intermediários que buscam a produção “na porta”. Ainda que historicamente fragilizada, esta agricultura apresenta expressão econômica, sendo responsável pelo sustento de algumas centenas de famílias no município e está, portanto, apta à cobertura das políticas públicas agrárias.

No entanto, havia denúncias dos agricultores de que desde 2005 tentavam conseguir, sem sucesso, o documento oficial da política agrária (DAP)[12]emitido pelo governo federal que confere não apenas o reconhecimento político da identidade de agricultor familiar, como, por meio deste título, permite acessar mercados institucionais[13], direitos sociais e outras políticas públicas relevantes.

A interface entre conservação da natureza, meio urbano e agricultura familiar com características fortemente tradicionais do Maciço/Parque Estadual da Pedra Branca foi aos poucos sendo anunciada por mediadores de organizações, pesquisadores e técnicos que atuaram em pesquisas e projetos com os agricultores. Os traços históricos da agricultura do Sertão Carioca[14] ganharam visibilidade, e assim, suas relações com o espaço urbano e mercados e os conflitos das comunidades tradicionais com a gestão dos órgãos ambientais[15].

Nos anos 2000, os agricultores do Maciço passaram por um processo de conversão à produção orgânica/agroecológica, graças à atuação de mediadores e inserção em projetos, resultando também na entrada em mercados alternativos e fóruns de participação política. O ano de 2010 marcou a aproximação dos agricultores do Maciço da Pedra Branca com a Rede Carioca de Agricultura Urbana (Rede CAU), que neste período se constituía como tal[16].

As organizações que neste momento conformaram a Rede CAU, a partir de princípios agroecológicos, vinham desenvolvendo desde o início dos anos 2000 ações de estímulo às expressões da agricultura nos múltiplos espaços urbanos (hortas, quintais, escolas, creches, espaços comunitários), em suas conexões com a saúde, cultura, ambiente, segurança alimentar. Na instância federal, o marco desta mobilização em torno da agricultura urbana é o ano de 2003, durante o Governo Lula, com a campanha de combate à fome e à pobreza, quando houve o incentivo às hortas comunitárias em espaços urbanos, por sua vez,fomentadas pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome[17]. A agricultura urbana, nesta perspectiva, era compreendida como parte de uma Política de Segurança Alimentar e Nutricional capaz de produzir alimentos saudáveis e acessíveis aos moradores da cidade (Mattos et al, 2015). Neste contexto, os CONSEAS tornaram-se instâncias participativas fundamentais para a discussão de temas relacionados à fome, nutrição e alimentação escolar.

Em sintonia a essas dinâmicas na capital, em 2006 se constituía a Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro, reunindo experiências de agricultura familiar de base agroecológica nos municípios fluminenses de Seropédica, Nova Iguaçu, Barra do Piraí, Magé, Campos, Maricá, Paraty, Região Serrana, Vale do Paraíba.

A constituição, portanto, de um território-rede (Haesbaert, 2004) de agroecologia na capital e Região Metropolitana do Rio de Janeiro, teve como resultados a mobilização política de grupos em torno da agricultura familiar e agroecológica e a conquista de mercados alternativos e institucionais para os agricultores. Um marco importante deste processo de acesso às feiras na capital fluminense foi a criação, em 2010, do Circuito Carioca de Feiras Orgânicas pela Prefeitura.

O mapa abaixo demonstra os espaços de comercialização de alimentos (as feiras orgânicas, agroecológicas, da roça), o mercado institucional[18](escola pública), os locais de produção e suas associações, e um grupo de consumidores de alimentos orgânicos (Rede Ecológica). Trata-se de um retrato importante do processo de recomposição territorial que está em curso na Zona Oeste da cidade com o objetivo de afirmar que “a agricultura existe e resiste no Rio de Janeiro”[19]. Esta dinâmica pode ser interpretada como expressão dos novos movimentos sociais econômicos, nos quais o mercado é agenciado como uma prática política e identitária (Picolloto, 2008).

 

 

2. Agricultura na cidade e agricultura da cidade

A agricultura do Maciço da Pedra Branca, pelas suas características históricas[20], tem sido apresentada por diferentes atores - tanto como uma agricultura com feições rurais, quanto uma agricultura com perfil urbano - à medida em que sofre alterações em suas formas de organização e também carrega as contradições vivenciadas em meio urbano, inclusive de desassistência das políticas agrárias.

A aproximação da Rede CAU com os agricultores do Maciço da Pedra Branca e com organizações atuantes no local promoveu uma agenda comum de lutas. A agricultura com características familiares da Zona Oeste passa a ter forte representação na Rede CAU e é incorporada também como uma das expressões da agricultura na cidade e da cidade do Rio de Janeiro. Seus impedimentos para acessar as políticas agrárias em um contexto de forte urbanização deram visibilidade a uma das dimensões possíveis da agricultura urbana – a agricultura familiar urbana. No entanto, é apenas por ocasião da criação do Fórum Permanente de Agricultura Urbana que o termo é explicitado.

Agricultura na cidade e agricultura da cidade são expressões de entendimento comum que se encaixam no termo agricultura urbana. Contudo, para Mougeot (2000), a agricultura urbana stricto sensu é aquela que está integrada no sistema econômico e ecológico urbano. Em uma perspectiva próxima, Daniela Almeida (2016: 185) afirma que é preciso pensar a agricultura urbana como prática da cidade e não na cidade, já que esta última pode ser vista como estranha à cidade, como um resíduo ou forma arcaica determinada a desaparecer. Para a autora, é preciso pensar a agricultura urbana como uma prática que produz novos espaços, que reinventa a cidade e cria novos pontos de vista sobre ela, conforme pode ser lido no folder de divulgação “Agriculturas e Resistências na Região Metropolitana de Belo Horizonte” (ERÊ,2017):

"É preciso combater os estereótipos de que ela é irrelevante (se comparada a outras questões sociais e ambientais urbanas[21]), inviável (do ponto de vista de outros espaços com mais retorno econômico) e incompatível (devido aos impactos ambientais que pode causar ou sofrer)."

Nos termos de Mougeot (2000) e Almeida (2016), a agricultura praticada no Maciço da Pedra Branca poderia ser classificada como uma expressão da agricultura na cidade, ou seja, uma agricultura familiar praticada em moldes tradicionais, em vias de desaparecimento e que foi englobada pelo processo de expansão urbana. Ainda que localizada na cidade, preserva fortes traços de uma paisagem e modos de vida rurais. No entanto, essa agricultura da forma como é apresentada pela Rede CAU, passa a ser também da cidade, à medida que se reinventa no movimento agroecológico e passa a ser pensada politicamente em conjunto com outras expressões de agricultura. A face pública deste movimento busca, portanto, afirmar que a cidade é um espaço legítimo para a agricultura que, por sua vez, deve ser protegida por um conjunto de políticas públicas ainda pouco sensíveis a essas práticas.

Os coletivos que atuam na cidade em defesa da agricultura, além de apontarem a necessidade de diálogo entre políticas públicas, denunciam os instrumentos de ordenamento urbano - tais como os planos de estruturação urbana (PEU) e a Lei de uso e ocupação do solo (LUOS) - que incentivam o parcelamento do solo, a ocupação de áreas alagadiças e diminuição de áreas agrícolas (Conferência, 2018). Uma importante estratégia tem sido o diálogo dos movimentos com técnicos urbanistas da Prefeitura que compõem o Comitê de acompanhamento do Plano Diretor (em revisão até 2021). O objetivo desta aproximação é apresentar informações e “modos de ver” que permitam aos técnicos propor instrumentos de salvaguarda de práticas agrícolas históricas, assim como reconhecer experiências pouco convencionais de agricultura.

Almeida e Costa (2014) apresentam três matrizes teóricas de compreensão da agricultura urbana. A primeira, vista pela perspectiva da espoliação urbana, analisa as práticas agrícolas nas periferias como estratégias de subsistência das populações mais pobres. Esta perspectiva tem o mérito de trazer uma visão politizada das desigualdades do modo de produção capitalista no espaço urbano. Todavia, fica restrita a um único sentido de explicação da heterogeneidade de espaços e motivações dos atores, além de considerar que tais condições devem ser superadas pelo crescimento econômico. A segunda leitura compreenderia a agricultura urbana sob um ponto de vista tecnicista ou paliativo dos impactos ambientais da cidade, de promoção da segurança alimentar e luta contra a pobreza sem, contudo, fazer o enfrentamento de questões relacionadas à desigualdade e à insustentabilidade do desenvolvimento urbano.

Por fim, as autoras apresentam a contribuição de Lefebvre (2011) para pensar o urbano não apenas como expressão da sociedade industrial, mas como um tecido que é resultado da superação desta realidade. Trata-se de pensar o direito à cidade como uma proposta que entende o urbano como virtualidade iluminadora; como uma ação política que ressalta os atributos próprios da cidade e que recusa os processos de homogeneização impostos pelo modo de produção capitalista.

A partir deste balanço, Almeida e Costa (2014) entendem que muitos estudos ainda demonstram estranhamento no uso da expressão agricultura urbana, porque o termo revela algo que não se encaixa no pensamento moderno, que opõe cidade ao campo e ao mesmo tempo sinaliza para a conciliação da cidade com a agricultura. As autoras, assim, defendem cultivar o conceito da agricultura urbana:

Justifica-se o uso do termo em si para provocar o estranhamento e colocar em debate a dialética do urbano como virtualidade e como tecido urbano estendido; a possibilidade de um ambiente urbano onde coexistem natureza e sociedade. Esclarecer os sentidos implícitos e explícitos de cada termo permite identificar o que une e o que separa cada um dos posicionamentos encontrados e avaliar cenários possíveis para a agricultura urbana como um novo campo de estudos e como um campo de articulação política.

Em diálogo com as autoras, nos parece importante reconstituir a gênese de um conceito em construção - agricultura urbana - em um campo de disputas que é sempre dinâmico e relacional. Neste sentido, é relevante mostrar como, do ponto de vista das práticas, das representações dos atores sociais e dos agentes de políticas públicas, são percebidas as muitas qualidades da agricultura urbana e seus efeitos sobre as políticas públicas. De acordo com Bourdieu (2006:107), “trata-se de fazer a história social das categorias de pensamento do mundo social”.

 

3. O Fórum Permanente de Agricultura Urbana

O Fórum Permanente da Agricultura Urbana foi criado em 2017, através da articulação de conselheiros do CONSEA-RIO com a DFDA–RJ/ SEAD.

As dificuldades reiteradas enfrentadas pelos agricultores cariocas para conseguirem a DAP, documento que oficialmente atesta a agricultura familiar e os permite acessar políticas públicas de compras governamentais, em especial o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), tornaram-se o tema gerador a partir do qual o fórum foi pensado e orientado.

Por um lado, a criação do Fórum foi resultado da nova configuração da Secretaria de Desenvolvimento Agrário no Rio de Janeiro a partir de 2016[22], que demonstrou abertura para a construção participativa de caminhos para o fortalecimento da agricultura no município carioca. Por outro, é também resultado de um fato político: o desaparecimento do registro da DAP de um agricultor no ano de 2015. Tratava-se da DAP de um agricultor, residente no PEPB, ligado ativamente à Rede CAU, e presidente do CONSEA-RIO no período 2014-2015. Este fato sobre o qual nos debruçaremos a seguir foi responsável pelo reconhecimento de um problema público – a falta de acesso da agricultura carioca às políticas agrárias – confrontando a Emater[23], a SEAD e a Prefeitura.

Sustentamos como hipótese que parte importante das resistências institucionais e o mal-estar causado pelas cobranças à Emater advinham do fato de que a luta pela DAP estava sendo pautada por um movimento de agricultura urbana, a Rede CAU. Em um plano simbólico, pautada pelos ideais que o movimento aciona de uma cidade agricultável em suas múltiplas dimensões e em contraste com o habitus (Bourdieu, 2006) dos funcionários da Agência estadual de ATER, conformado pelo rural-agrícola. Além disso, a politização dos movimentos de agricultura urbana, com inserção nas articulações de agroecologia, expunha, a despeito do inegável sucateamento da Emater, as práticas pouco transparentes e ineficientes do órgão. O chancelamento deste debate pela instância federal responsável pela política pública de agricultura familiar constrangeu a Emater a dar satisfação pública sobre suas ações no município.

Ao longo do ano de 2017, foram realizados cinco encontros[24] com a presença de representantes de diferentes organizações: a Emater, CONSEA-RIO, IBGE[25], pesquisadores, agricultores, associação de agrônomos, técnicos, representantes da Prefeitura, entre outros. As reuniões eram sempre coordenadas pela Secretaria Executiva do CONSEA-RIO e pela SEAD. A dinâmica das reuniões baseou-se na apresentação das características, do histórico da agricultura municipal e dos principais entraves sofridos pelos agricultores para acessar mercados. Como encaminhamento de soluções, foi feita a apresentação e o debate de casos específicos, avaliados após a visita conjunta de um técnico da SEAD e da Emater, sobre a possibilidade ou não de concessão das DAPs.

A reunião do dia 24 de junho de 2017 contou com a participação de um representante do SEAD de Brasília, responsável pela emissão das DAPs em âmbito nacional, e de todas as regulamentações sobre o tema. Nesta ocasião, o representante da sede do Órgão explana sobre as alterações que em breve ocorrerão no cadastro[26] e pontua que identificar a agricultura urbana é uma questão nova e envolve “sentar junto” e fazer a discussão com todos os técnicos da Emater. E conclui: “esta é a primeira vez que sou convidado a discutir uma situação sobre a qual não existe normatização”, mas destaca a importância deste debate para pensar o futuro da agricultura familiar frente às novas dinâmicas do rural e a outras formas de agricultura que não são mais rurais. Além disso, diz ele: “estamos trabalhando com um instrumento que traz vícios de origem, já que tem como base uma resolução do Banco Central para fins de crédito rural e posteriormente foi utilizado como uma política pública”. Após esta explanação, são apresentados alguns casos específicos com a finalidade de identificar se encaixam-se ou não na legislação vigente. Entre esses casos, encontram-se aqueles considerados limites - que são os quintais produtivos.

 

4. O urbano na aplicação das políticas agrárias

Dentre os quatro critérios para a aquisição da DAP (renda, domicílio em mesmo município, tamanho da propriedade e documentos que comprovem o controle da terra), não consta nenhum impedimento para a sua concessão em meio urbano. No entanto, a Lei 11.326/2006, que estabelece as diretrizes para a Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais, considera no Art. 3 como agricultor familiar aquele que pratica atividades em meio rural. O que dá a entender, portanto, que não existe agricultor em meio urbano.

A negativa recorrente da emissão do documento aos agricultores, por parte da Emater, pôs em evidência um conjunto de entraves estruturais das instituições responsáveis pela aplicação da política. Além disso, evidenciou os princípios práticos de classificação dos técnicos de ATER, relacionados a representações dominantes sobre o rural como lócus específico de atuação das políticas agrárias.

A justificativa de que o meio urbano era um impedimento para a concessão da DAP é colocada expressamente por um delegado do MDA[27] em reunião com os agricultores do Maciço da Pedra Branca, no ano de 2011. Esta informação foi checada por mediadores envolvidos em projetos com os agricultores na Zona Oeste. Segundo foi averiguado à época, o zoneamento rural era de fato um pré-requisito para a concessão da DAP com a finalidade de acesso ao crédito rural, mas não para a simples concessão do documento, que confere o reconhecimento formal do agricultor familiar. Paralelamente, outra suspeita difusa que circulava entre os diferentes atores, era o boato de que os agricultores não conseguiam o documento pelo fato de suas propriedades encontrarem-se em uma área de conservação ambiental. Embora ambas as hipóteses tenham se mostrado parcialmente infundadas, elas demonstram que muitas vezes as políticas públicas consolidam-se a partir de versões ou interpretações de seus agentes em suas práticas profissionais.

Decididos a superar as barreiras institucionais, em 2012, técnicos, pesquisadores, consumidores e agricultores do Maciço da Pedra Branca e Mendanha organizaram o que foi chamado de um mutirão pró-DAP. Foram levantados os agricultores que se encaixavam nas regras relativas ao tamanho da propriedade, renda e documentos de comprovação do controle da terra. O próprio grupo responsabilizou-se pelas visitas técnicas e levantamento de dados de produção e renda. Com visita pré-agendada à Emater, este coletivo dirigiu-se ao seu escritório e as três primeiras DAPs foram concedidas aos agricultores. A partir desta data, algumas outras DAPs foram emitidas, mas ainda com bastante dificuldade.

Em 2014, houve o desaparecimento do registro da DAP de um agricultor do Maciço da Pedra Branca no sistema e a alteração da matrícula do primeiro agricultor a obter a DAP no ano de 2012. Este último passava a constar agora como um agricultor quilombola[28] e tinha novo número de matrícula. Ato contínuo ao desaparecimento do registro do documento, a mesma técnica da Emater, responsável pelas DAPs aos quilombolas do PEPB, escreve um e-mail ao MDA, em junho de 2015, perguntando se poderia conceder DAP a agricultores que exploravam no PEPB. O responsável do MDA posiciona-se negativamente, acionando a lei de crimes ambientais Lei 9.605/1998. O que antes era uma hipótese infundada e sem registro escrito, tornou-se um impedimento formal para a concessão de DAPs aos agricultores do parque (excetuando-se os quilombolas, protegidos de modo expresso na Constituição). Este incidente, transformado em fato político pela Rede CAU, dá origem a uma série de manifestações de protesto em eventos e atos públicos. A redação de documentos técnico-científicos avalizando as práticas agrícolas no Maciço da Pedra Branca e o acionamento de legislações mais apropriadas para interpretar a permanência dos agricultores em unidades de conservação[29] foram, em seguida, encaminhados à superintendência da SEAD. Por fim, em dezembro de 2015, a SEAD produziu uma nota técnica (MDA, 2015), na qual se posicionava favoravelmente à concessão da DAP aos agricultores residentes no PEPB.

Embora o problema relatado gire em torno de questões relacionadas às legislações ambientais e critérios de tradicionalidade, a questão de fundo diz respeito ao processo de evolução urbana carioca, que dispôs dos territórios agrícolas para a especulação imobiliária ou para a criação de áreas protegidas. Ainda que esta agricultura tenha feições agrárias mais próximas de modelos convencionais, ela foi reivindicada pela Rede CAU em um contexto de luta pelas diversas expressões da agricultura na cidade e da cidade. Para os técnicos da Emater, apenas a chamada agricultura convencional seria merecedora de atenção, mas não no contexto de um pacote interpretativo vinculado à agricultura urbana.

As reuniões do Fórum evidenciaram o fato de que as representações sobre o urbano, embora não fossem um impedimento explícito, materializavam-se em critérios específicos de julgamento sobre a possível concessão ou não para a DAP. De acordo com Baptista Filho, economista da DFDA-RJ[30] e responsável pelo encaminhamento institucional da questão, a agricultura em meio urbano ou periurbano apresenta características que ele define como de não-convencionalidade, quando comparada à agricultura familiar no meio rural. Para o economista, uma forma dessas práticas urbanas alcançarem a política pública da agricultura familiar é o critério da agrariedade que deve ser identificado a partir dos seguintes critérios elencados nas notas técnicas 007/2017 e posteriormente 005/2018, produzidas pela Secretaria: a) vizinhança propícia: propriedades localizadas em zonas de baixa densidade demográfica ou vizinhas a unidades de conservação; b) dimensão e uso da propriedade: em geral tendem a ser menores do que 1 módulo fiscal, mas esta limitação pode ser equacionada com uma produção intensiva, confinada ou de valor agregado; c) culturas exploradas; d) casos em que o foco seja a comercialização, beneficiamento e processamento: produtos processados podem se tornar os principais produtos comercializados, desde que a maior parte venha da propriedade; e) relação com os recursos naturais do imóvel: o imóvel contém recursos naturais? Água, solo, iluminação; f) relações de identidade e paisagem: ainda que em espaço urbano, a atividade agrícola pode criar uma ambiência específica de ruralidade e de relações humanas entre fornecedores, produtores e consumidores, além da presença de culturas, técnicas e tecnologias tradicionais; g) fonte de renda da Unidade de Produção Familiar: deve ser preponderantemente egressa da comercialização dos produtos cultivados na propriedade e; h) finalidade do imóvel: deve ser majoritariamente voltada para a exploração dos recursos naturais; j) quando a área do estabelecimento for maior do que quatro módulos fiscais: deve-se considerar critérios de conservação ambiental que impõem limites à área cultivada.

Com base nesses critérios, os presentes na reunião do Fórum no dia 24 de junho de 2017 dispuseram-se a analisar os resultados da visita técnica, realizada em conjunto pelo engenheiro agrônomo da SEAD-RJ e da Emater, ao quintal de uma agricultora, que aqui será denominada como Andreia[31]. Após inúmeras ponderações, julgou-se por bem conceder a DAP à agricultora. Mas seu caso foi considerado um caso limite para a concessão do documento, com grande parte de critérios elegíveis, mas outros tantos, não.

 

5. Quintais produtivos e o limite da política pública da agricultura familiar em meio urbano

Segundo a descrição dos dois engenheiros agrônomos, o quintal da Andreia possui 162 m²[32]. Em sua área explorada, a maior parte dos cultivos é em vasos e mudas. A renda dela vem de produtos processados que ela obtém na propriedade: faz sucos, sorvetes e biscoitos de chaya[33]. Ela adquire parte das matérias-primas de terceiros e também comercializa produtos orgânicos de terceiros. Tem uma renda total de cerca de R$4.700,00. Assim, eles descrevem a visita, revelando uma avaliação negativa de conformidade da agricultora urbana:

Nós visitamos, fotografamos toda a propriedade. Ela nos relatou que sua renda gira em torno de quatro mil reais. Na hora de calcularmos, observamos que cerca de mil e quatrocentos reais vêm de produtos de fora. A agricultura seria maior parte da renda entre aspas. Não é um comércio convencional; 70%, 80% vem do beneficiamento.

O representante da SEAD/DF argumenta com os técnicos responsáveis pela visita a respeito do beneficiamento: “mas quando você visita um agricultor que está na área rural e faz queijo, a renda dele vem do queijo e ele é enquadrado”. O técnico da Emater, não satisfeito com a argumentação, contrapõe: “162m²! Vasos! A pessoa não se enquadra! Tira folhas de uma planta!”

O representante pondera: “tudo que foge ao convencional é difícil. Não queremos que vocês se comprometam, mas sim que partilhem esta responsabilidade com a SEAD. Há mecanismos de se precaver, comprovar dados de renda e critérios de avaliação”. Por fim, o representante da SEAD/DF[34] avalia em conjunto com os técnicos da agência RJ a possibilidade de concessão da DAP para a Andreia.

Observa-se que, neste caso, as características urbanas causaram desconforto aos técnicos e ganharam materialidade nos critérios de classificação empregados. Na visita, os técnicos problematizaram o tamanho da propriedade, os cultivos em vasos, a necessidade de aquisição de matérias primas externas, a maior parte da renda adquirida com produtos processados. A despeito das reticências dos avaliadores, o respaldo dos agentes em instância federal (responsáveis pela regulamentação da política) e o ambiente de controle social promovido pelo Fórum permitiram a validação do quintal da Andreia como elegível à concessão da DAP. Comprovou-se assim a finalidade produtiva da propriedade, com o aproveitamento pleno dos espaços, apesar de sua microextensão (quando se considera um estabelecimento agrário) e a exploração agrícola como principal fonte de renda. Quanto aos recursos naturais do imóvel, a água e o solo são oriundos de fontes externas e, a despeito de uma vizinhança bastante urbanizada e de um sistema produtivo diferenciado do agrícola, há uma paisagem agroflorestal e relações de troca entre os produtores, fornecedores e consumidores.

Um conjunto de notas técnicas produzidas pela SEAD no período entre 2017 e 2018 produziu um corpus argumentativo em defesa da agrariedade como o critério distintivo para a concessão da DAP. Podendo ser concedida tanto em meio rural, como urbano. No entanto, avalia-se que os quintais produtivos, na grande maioria dos casos, não se enquadram de modo satisfatório aos critérios da política pública da agricultura familiar. Trata-se de uma situação limite e, justamente por isso, é preciso pensar outros mecanismos de proteção e incentivo para os quintais produtivos.

 

Conclusão

No campo de estudo das políticas públicas, tanto o referencial de definição de agenda, quanto de arenas sociais enfatizam a necessidade de compreensão das conjunturas, esquemas argumentativos e janelas de oportunidades que permitem que um problema seja reconhecido ou torne-se público.

Podemos definir a seguinte questão que emerge desta arena (Fórum Permanente de Agricultura Urbana): em que medida é possível a aplicação da política agrária em meio urbano? Esta questão nasce como resultado da confrontação entre atores envolvidos com as práticas de agricultura urbana, da agricultura familiar e de um órgão público federal de aplicação da política agrária. Esta arena expôs as limitações de acesso a políticas públicas e a ausência de mecanismos do planejamento urbano para a proteção de ambas as práticas na realidade carioca. Expôs também como tais restrições legais conformam e são conformadas pelos critérios de classificação da vida social. As políticas públicas, uma vez confinadas às regras de aplicação em caixinhas do rural, do urbano, tornam-se incapazes de se adequar à complexidade e à intersetorialidade dos fenômenos da vida real.

O seguinte percurso temático e político precisou ser trilhado para colocar a pauta da agricultura urbana na agenda das políticas agrárias: o debate sobre segurança alimentar, nutricional e combate à fome que inicialmente encontrou abrigo nas agências de Desenvolvimento Social e nos CONSEAS. É no âmbito deste conselho que são feitos esforços para dar forma à Política Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). O atendimento a esta política pública, no entanto, tem como primeiro requisito a aquisição da DAP pelos agricultores; um documento da política agrária (PRONAF) regulado por outra pasta.

O caso em questão revelava, portanto, a necessidade de interlocução entre três políticas públicas distintas: PRONAF, PNAE e PNAUP, respectivamente voltadas para a agricultura familiar, alimentação escolar e agricultura urbana. A última delas ainda em construção. As reivindicações da Rede CAU foram acolhidas como legítimas pela SEAD naquilo que é próprio ao seu campo de atuação: as políticas agrárias.

A formulação do termo agricultura familiar urbana, embora possa parecer óbvia ou autoevidente, foi concebida na dinâmica do Fórum Permanente de AU e teve um caráter de inovação institucional no âmbito da SEAD e no escopo de atuação da política de agricultura familiar. Como desdobramento deste processo, foi criada a portaria n.523/2018 que disciplina a emissão de DAPs no Brasil e, explicitamente no seu Art.3º., afirma que a atividade agrária pode ser desenvolvida em ambiente rural ou urbano. No âmbito interno, procurou-se relativizar a associação confusa entre agrário e rural e a ênfase naquilo que é essencial ao exercício do órgão, que é a atividade agrária.

Nos termos de Fuks (2001), a disponibilidade de mecanismos institucionais permite que determinadas condições percebidas difusamente como incômodas ou injustas sejam redefinidas como problemas públicos. Segundo o autor, a Lei, para além da sua instrumentalidade, é também um “evento comunicativo” capaz de criar significados e novas formas de interpretação da realidade. Embora a agricultura familiar urbana esbarre nos limites de atuação da política agrária da SEAD, a projeção deste debate permite que tais experiências sejam reconhecidas e posteriormente encaixadas em outros programas de alcance nacional ou que possam contribuir para a formulação de novas políticas. Acreditamos ser esta a grande contribuição do Rio de Janeiro.

A agricultura familiar urbana não abarca todas as formas de AU, mas no contexto aqui apresentado, dada a sua expressão econômica, deu visibilidade política à agricultura urbana como um todo, ao mesmo tempo que denunciou a incapacidade de a política pública de agricultura familiar acolher todas as suas manifestações na vida real, sobretudo aquelas que se realizam nas regiões metropolitanas.

Quintal produtivo é, portanto, a delimitação territorial que exprime o estado da arte do debate sobre agricultura urbana no Rio de Janeiro; exprime também o limite das políticas públicas e das representações a respeito do rural e do urbano. Definido no dicionário como pequeno terreno na parte posterior de uma casa, é uma modalidade residencial típica do espaço urbano. Contudo, dadas as condições de espoliação urbana em muitas cidades, o que torna os espaços livres disponíveis ao capital, os quintais são metáforas do urbano que se deseja preservar ou reinventar. O adjetivo produtivo assume a função comunicativa de anunciar sua ressignificação: acionando sentidos de subsistência, produção da vida, segurança alimentar, geração de renda, entre outros. É, portanto, metáfora de “morar e plantar na metrópole”[35] ou de como encaminhar o problema público da agricultura urbana no Rio de Janeiro.

 

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LISTA DE SIGLAS:

ANA: Articulação Nacional de Agroecologia.

AARJ: Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro.

AU: agricultura urbana

CAF: Cadastro da Agricultura familiar

CNAU: Coletivo Nacional de Agricultura Urbana

CONSEA: Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

DAP: Declaração de Aptidão ao PRONAF

DFDA: Delegacia Federal de Desenvolvimento Agrário

EMATER: Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural

IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

MDA: Ministério do Desenvolvimento Agrário

PEPB: Parque Estadual da Pedra Branca

PIB: Produto Interno Bruto

PNAE: Programa Nacional de Alimentação Escolar

PRONAF: Programa Nacional de Agricultura Familiar

Rede CAU: Rede Carioca de Agricultura Urbana

SEAD: Secretaria Especial de Agricultura e Desenvolvimento Rural

 

Received: 02-08-2019; Accepted: 27-11-2019.

 

NOTAS

[3] O CNAU foi criado em maio de 2014 no III Encontro Nacional de Agroecologia realizado em Juazeiro -BA.

[4] Tudo que é referente ao estado do Rio de Janeiro.

[5] A Frente Parlamentar de Agricultura Urbana foi lançada em 26 de junho de 2017 pelo Vereador Renato Cinco na Câmara Municipal do Rio, com objetivo de fortalecer a temática da agricultura urbana e segurança alimentar e, em especial, aprovar a LOSAN – Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, pela via legislativa, dados os inúmeros obstáculos para encaminhá-la via poder executivo.

[6] DFDA-RJ/SEAD - Trata-se da Delegacia Federal de Desenvolvimento Agrário (Rio de Janeiro) da Secretaria Especial de Agricultura e Desenvolvimento Rural.

[7] Gentílico do município do Rio de Janeiro.

[8] Ano anterior ao início da crise econômica e, portanto, com dados menos enviesados e contaminados.

[9] Produto interno bruto.

[10] Todos os três maciços tiveram partes do seu território transformadas em parques em períodos históricos distintos. O Parque Nacional da Tijuca foi criado em 1961, mas já era uma floresta com objetivos de conservação da natureza e visitação, desde 1861, por ato do Imperador D. Pedro II. O Parque Estadual da Pedra Branca foi criado em 1974 e o Parque Estadual do Mendanha em 2013.

[11] Em especial destaca-se o Parque Estadual da Pedra Branca (PEPB), na Zona Oeste da cidade, com um território que corresponde a 12% do município carioca.

[12] A DAP - Declaração de Aptidão ao PRONAF (Programa Nacional de Agricultura Familiar) permite aos agricultores acessarem crédito rural e mercados institucionais entre outros benefícios.

[13] Um desses mercados, a venda de alimentos para escolas públicas faz parte da política pública chamada Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

[14] Sertão Carioca no passado era o nome atribuído à Zona Rural do Rio de Janeiro.

[15] A partir de 2014, houve o reconhecimento de três comunidades quilombolas residentes no Parque Estadual da Pedra Branca.

[16] A Rede CAU foi formada em outubro de 2009.

[17] É importante destacar que neste período, apesar de uma perspectiva favorável à construção de uma Política Nacional de Agricultura Urbana, houve poucos avanços. E, com as mudanças no Governo Federal, em 2012/2013, houve a interrupção das ações do MDS orientadas à agricultura urbana.

[18] Venda de alimentos para as escolas, pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

[19] Lema criado pela Rede CAU.

[20] Localizada em área do município que no passado compunha a sua zona rural, ainda mantém a rusticidade dos modos de vida e o uso de técnicas agrícolas tradicionais.

[21] Pode-se acrescentar também o estereótipo de que é irrelevante para as políticas agrárias.

[22] Com o Impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) foi extinto e posteriormente substituído por uma secretaria: a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário.

[23] Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural. Trata-se de um órgão público em instância estadual e responsável pela emissão da DAP.

[24] Em 2018 houve apenas uma reunião, porque grande parte de seus membros estavam envolvidos em agendas comuns, entre elas a reativação do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural e organização de sua Conferência.

[25] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

[26] O cadastro de DAPs passará a ser chamado de CAF: Cadastro da Agricultura Familiar.

[27] Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que em 2017 foi transformado em Secretaria (SEAD).

[28] Quilombolas são aqueles que residem em quilombos, comunidades descendentes de negros escravizados e que são beneficiárias de políticas de proteção reconhecidas pela Constituição brasileira de 1988.

[29] Lei 9.985/2000 – Sistema Nacional de Unidades de Conservação; Lei 11. 428/2006 - Lei da Mata Atlântica; Lei 23.93/1995 – Lei de Populações Nativas; Decreto 6040/2007 – Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.

[30] Com a posse do Governo Bolsonaro em 2019 houve o esvaziamento das políticas para a agricultura familiar no Brasil, a SEAD foi extinta e parte de seus funcionários foi transferida para o Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

[31] Nome fictício.

[32] Tamanho, portanto, muito menor que 1 módulo fiscal, critério espacial mínimo considerado para o acesso à política pública de agricultura familiar.

[33] Chaya (Cnidoscolus aconitifolius), é um vegetal folhoso mesoamericano.

[34] Distrito Federal (Brasília).

[35] Lema do movimento de agroecologia Articulação Plano Popular das Vargens (APP Vargens), na Zona Oeste do Rio.

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