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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.39 Lisboa dez. 2019

https://doi.org/10.15847/citiescommunitiesterritories.dec2019.039.doss-art01 

ENSAIO

 

A arte como arma em território hostil: Enfrentamentos nas produções de Lyz Parayzo

Art as a weapon in a hostile territory Confrontation in Lyz Parayzo's productions

 

Debora Armelin FerreiraI

[I]Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, Brasil. e-mail: deboraarmelin@hotmail.com.




RESUMO

A proposta deste ensaio é a de analisar como a linguagem da performance (body art) pode ser utilizada como uma potente ferramenta na contribuição para o empoderamento e visibilidade de artistas transexuais, a partir da leitura do conjunto de obras da artista brasileira Lyz Parayzo. Pretende-se demonstrar como estas produções promovem espaço para a criação de suas próprias narrativas dentro do campo das artes, assim como dentro do espaço urbano, atuando como forma de resistência e sobrevivência em São Paulo, uma das cidades mais violentas e que, ao mesmo tempo, é uma das mais importantes no que se refere ao circuito artístico no Brasil.

Palavras-chave : Arte Contemporânea, escultura, corpo, transexualidade, São Paulo, violência.


ABSTRACT

The purpose of this research will be to analyze how art can be used as a powerful tool in order to contribute to the visibility, empowerment and confrontation trying to create personal narratives within the artistic field as a form of resistance from the work of Brazilian trans artist Lyz Parayzo inserted in the context of the city of São Paulo, which stands out as one of the most important of the art circuit in Brazil but, at the same time, is one of the most violent ones regarding the LGBTQIA+ population.

Keywords: Contemporary Art, Sculpture, Body, Transexuality, Sao Paulo, violence.


 

Introdução

O presente texto tem como objetivo compreender como a produção artística de autoria da artista brasileira transexual Lyz Parayzo assume um papel social, político e cultural na afirmação da identidade de gênero e suas questões dentro do território brasileiro, mais especificamente na cidade de São Paulo.

Parayzo pensa o seu trabalho como instrumento de resistência e de luta, uma forma de defesa num contexto de extrema violência contra a população trans em que a artista está inserida. Iniciando sua carreira na cidade do Rio de Janeiro, a artista vive atualmente em São Paulo, duas cidades que refletem, cada uma à sua maneira, fortes marcas de um colonialismo patriarcal, de pensamentos e ações que seguem a lógica hetero-cis-normativa, insistindo na dicotomia sexo-gênero. Frequentemente esses padrões de comportamento acabam por impor relações de poder, em que se tem como consequência uma violência física e/ou psicológica.

Na primeira parte desta pesquisa apresenta-se uma leitura dos dados sobre a violência contra transexuais no Brasil, analisando como o discurso político atual pode influenciar toda uma sociedade e propondo também uma breve compreensão do conceito de identidade de gênero a partir do olhar de Judith Butler e Michel Foucault. Na segunda parte será feito um curto panorama das representações LGBTI+ [2] na História da Arte desde a Arte Romana, passando pelo Renascimento até o modernismo, ressaltando a importância do corpo como linguagem potente. Por fim apresenta-se uma biografia da artista Lyz Parayzo propondo a leitura de algumas de suas obras.

Parayzo, a partir da construção de esculturas e joias, utiliza seu corpo para dar vida a esses objetos. Corpo este que carrega memórias e vivências servindo como local de fomento para seu próprio fazer artístico e questionando o papel da arte visual como uma possível linguagem produtora de sentidos e significados.

A relevância desse trabalho encontra-se no fato de que as abordagens artísticas de Lyz Parayzo, bem como o de muitas ativistas LGBTI+, são descritas como tendo um caráter e mérito social e que, portanto, suas práticas artísticas poderão revelar como a arte se insere no contexto da arte política na defesa contra a violência de gênero no Brasil.

Há uma urgência em se tratar da questão de gênero no Brasil devido ao grande número de assassinatos de transexuais. Em 2018 foram contabilizadas 163 mortes [3] e, apesar do surgimento de muitos movimentos sociais e culturais, ainda se faz necessária a luta por visibilidade e inserção social dentro do seu próprio território, em que continuam a ser marginalizados.

Enfrentamentos num território hostil

“Ser trans é cruzar uma fronteira política”

(Paul B. Preciado)

É urgente abordar a questão de gênero no Brasil como forma de consciencializar a população da existência de uma variedade de gêneros (LGBTI+) gerando debates sobre a temática e exigindo dos governos federais, estaduais e municipais políticas públicas que assegurem uma qualidade de vida a essa população.

De acordo com o relatório da TGEU - Transgender Europe (Figura 1), entre os anos de 2011 e 2017, o Brasil liderou o ranking de países que mais mataram transexuais no mundo e, em 2018, a ANTRA - Associação Nacional de Travestis e Transexuais [4] registrou 163 assassinatos, dentre eles 158 foram de travestis e mulheres trans, 4 homens trans e 1 pessoa não-binária. E só este ano (até dezembro 2019) já foram contabilizadas 62 mortes em todo o país.

 

 

O discurso homofóbico e transfóbico no Brasil ganhou legitimidade pela voz do atual presidente Jair Bolsonaro (PSL – Partido Social Liberal) em declarações de intolerância contra a população LGBTI+, ganhando reforço da bancada conservadora e evangélica do Congresso, que se apoiava no cristianismo neopentecostal na tentativa de oprimir e perseguir identidades de gênero que não sigam a heteronormatividade.

O jornal El País Brasil [5] relatou numa reportagem publicada em março de 2019 que, durante o período eleitoral ocorrido em setembro e outubro de 2018, 51% dos entrevistados LGBTI+ sofreram pelo menos uma agressão, sendo 56% deles travestis e transexuais. E 83% dessas agressões ocorreram em espaços públicos. Como também pode ser confirmado na tabela do Observatório de Pessoas Trans Assassinadas, da TGEU (quadro 1), a grande maioria das mortes se deu nas ruas.

 

 

Porém, na última eleição, o Estado de São Paulo elegeu sua primeira representante transexual como deputada, Érica Malunguinho, e Minas Gerais elegeu uma senadora, Duda Salabert, ambas do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) que diante de todo panorama nacional surgem como uma oportunidade de promover o debate contra o preconceito e as desigualdades em diferentes esferas e, principalmente, na política.

Conservadores e religiosos reforçam o preconceito e a intolerância e podem, inclusive, incitar a violência contra a população LGBTI+ se apoiando em estruturas sociais heteronormativas sob o viés da “moral e bons costumes”, determinadas pela classe hegemônica que acredita no binômio masculino e feminino e da obrigatoriedade do sexo biológico e a identidade de gênero serem correlatas.

Tendo como base os Estudos Culturais de Stuart Hall, podemos afirmar que identidade não é algo inato, ela se desenvolve gradativamente por meio da relação entre indivíduos e grupos dentro de uma sociedade, construindo identidades que são múltiplas mas, ao mesmo tempo são indissociáveis, como raça, etnia, classe social e assim como a identidade de gênero.

Como aponta Judith Butler (2003), essa dicotomia sexo vs. gênero é criada pela sociedade a partir de uma “ordem compulsória” que exige essa relação, procurando quebrar velhos paradigmas impostos, assim como da estabilidade binária do sexo como somente feminino e masculino. A filósofa sugere pensar que:

“Essa produção do sexo como pré-discursivo deve ser compreendida como efeito do aparato de construção cultural que designamos como gênero. (…) Quando a “cultura” relevante que “constrói” o gênero é compreendida nos termos dessa lei ou conjunto de leis, tem-se a impressão de que o gênero é tão determinado e fixo quanto na formulação de que a biologia é o destino. Neste caso, não a biologia, mas a cultura se torna o destino (Butler, 2003: 25 – 26).

Ainda de acordo com Butler (2015), a partir da interpelação em que possibilita circunstâncias para as construções das identidades, “Relatamos a nós mesmos simplesmente porque somos interpelados como seres que foram obrigados a fazer um relato de si mesmos por um sistema de justiça e castigo” (Butler, 2015: 22), que encontra em Foucault, em scientia sexualis, o estabelecimento de uma relação de poder sobre a sexualidade dos sujeitos a partir do ato da confissão, e essa relação de poder faz com que a divisão binária de sexo/gênero seja construída de forma austera seguindo o modelo heterossexual.

O corpo do sujeito se torna uma linguagem que revela a contraposição entre sexo e gênero que vai além do normativo, e permite, assim, que intervenções físicas sejam feitas, modificações estas permanentes, fisiológicas e/ou através do uso de ornamentos e indumentárias que adequem seu visual ao seu desejo identitário de gênero.

Pensar a identidade de gênero é compreendê-la como uma constituição psicológica e cultural, como nos expõe Guacira Lopes Louro (1997), como o reconhecimento de si próprio a partir de relações dadas dentro de um determinado espaço físico, cada qual carregando suas histórias e suas memórias. Os sujeitos, portanto, são moldados de forma constante a partir de características que os diferenciam e os definem, compreendendo que nascer com determinada sexualidade não determinará sua identidade de gênero.

 

LGBTI+ nas Artes

O território do campo do conhecimento como o das artes também apresenta características hegemônicas legitimadas por instituições que seguem um pensamento eurocêntrico e que acarretou (e ainda acarreta) exclusões de determinados grupos durante toda História da Arte. Dentro de um contexto brasileiro vemos a necessidade de descentralizar pensamentos hierárquicos no objetivo de decolonizar [6] o olhar, romper com velhos discursos normativos a partir de novas narrativas nas produções artísticas contemporâneas.

Ao analisarmos obra de artes desde o Renascimento à modernidade no que se refere às representações de sexualidade e gênero vemos, quase que exclusivamente, homens brancos se relacionando, uma vez que na Grécia Antiga, essas relações eram aceites desde que entre homens jovens. Como exemplo, um detalhe do teto da Capela Sistina, uma obra renascentista pintada por Michelangelo entre os anos de 1508 e 1512 (Figura 2). Nela se observa uma cena de homens se beijando o que representa, no contexto do Juízo Final, o beijo gay no lugar do pecado condenável, o pecado da sodomia.

 

 

Enquanto representações andróginas que ilustravam os deuses em esculturas presentes na arte Romana em que eram atribuídos os dois sexos, somente eram aceitos por se tratarem de divindades como na escultura de Hermafrodito (Figura 3), filho de Hermes e Afrodite, apresentando aspectos femininos e masculinos.

 

 

Durante a modernidade, encontramos o caso de Lili Elbe (1882-1931), artista queer conhecido como Einar Mogens, casado com a também artista Gerda Wegener e que em determinado momento deixa aflorar a sua identidade feminina. Lili Elbe chegou a fazer cirurgias para mudança de sexo e se tornou referência na história LGBTI+ após sua história ser conhecida quando foi retratada no cinema com o filme “The Danish Girl”, 2015, dirigido por Tom Hooper.

 

 

A produção artística contemporânea se apresenta de forma descentralizada, deixando-se um pouco o peso da utopia das vanguardas ao interagir a arte com a realidade. Encontramos também um pluralismo nas diferentes linguagens e formas de representação, as quais são baseadas não somente nas experiências do cotidiano, mas igualmente na relação entre sujeitos, e na compreensão e percepção do outro.

A performance se apresenta como uma potente linguagem provocadora de questionamentos e reflexões, uma vez que corpos dissidentes assumem seu local de fala. São sujeitos que, a partir da ideia de Spivak (2010), “sob a condição de subalternidade”, a população transexual nunca ganhou espaço para falar de si e por si e essas vozes, quando conquistam uma posição de prestígio e, nesse casom o acesso ao circuito de artes, obtém certa “visibilidade”.

E esta linguagem faz com que todo o processo seja muito mais significativo que o resultado final, nos remetendo ao conceito de “artificação” proposto por Roberta Shapiro (2007) em que a “arte como atividade (e não como objeto)” aumenta “as instâncias de legitimação” que não apenas a academia, curadores e críticos de arte e promovendo um mecanismo de reconhecimento de objetos considerados “não-arte” em arte, a partir de um contexto que abrange questões de âmbito social, econômico e político.

 

Lyz Parayzo: objetos para sua auto-defesa

A artista nasceu Lisandro Coelho de Souza, no ano de 1994, em Campo Grande, subúrbio do Rio de Janeiro em uma casa entre mulheres: mãe, avó e suas tias. Lyz conta durante uma entrevista [7] que foi na adolescência que sua sexualidade se manifestou e tomou consciência de que não se encaixava nos padrões heteronormativos, relatando que “o primeiro contato feminino com o meu corpo foi pintar as unhas, aí, eu tive uma relação diferente socialmente porque eu vi que pintar as unhas catalisava uma série de sensações de violência.”

 

 

A família, sendo grande parte evangélica e outra parte espírita, teve grandes dificuldades em entender e aceitar a declaração do então Lisandro, o que teve como consequência relações bastante complicadas. Exceto com a sua avó que, após um tempo, percebeu a necessidade de estar ao lado da neta, embora ainda tenha dificuldade em usar o artigo “a” para se referir a ela e chamá-la de Lyz.

Ingressa no curso de teatro, mas devido ao seu distanciamento e de sua família com as artes (em especial o teatro, visto que em Campo Grande havia apenas um cinema) sentiu dificuldade em lidar com o curso, o que a fez questionar a continuidade dos estudos. Decide então cursar a Escola de Artes Visuais do Parque Lage no Rio de Janeiro e ali conquista seu espaço, não só no que se refere à questão de gênero, mas de classe também. Recebe uma bolsa de estudos e, ao ocupar aquele lugar, concebe seu entendimento de quem era e qual o seu papel como artista.

Lyz narra que sua ida até à escola de artes sofria variações. Seu trajeto de Campo Grande até o Parque Lage, localizado em uma área mais nobre da cidade, levava duas horas entre ônibus, metrô e ônibus e sentia certos marcadores sociais. Enquanto em Campo Grande, os moradores faziam piadas quanto ao seu gênero, ao chegar ao local de destino, era como se houvesse um certo respeito, um “perdão de classe” por ela estar transitando aquele espaço.

Adota, então, o nome de Lyz Big Field, escolhendo este sobrenome que faz referência à sua origem geográfica, considerada periferia do Rio de Janeiro, como forma de falar de suas urgências, questionar os corpos que são julgados unicamente por serem de áreas periféricas pois, no Brasil, o seu sobrenome e seu local de origem ditam quais são seus privilégios e, no seu caso, os acessos aos espaços de artes.

Com sua ousadia, a artista queria romper fronteiras, queria desafiar a lógica colonial e patriarcal do Parque Lage, que defendia um discurso superficial de inclusão. Foi censurada em três apresentações, a primeira, não tendo sua obra selecionada para uma exposição, fez uma intervenção dispondo uma série de fotografias de seu próprio ânus dentro dos banheiros masculinos. Foi neste momento que assumiu como nome social Lyz Parayzo, com o intuito de “abrasileirar” seu nome, devido a uma critica feita por um professor do Parque Lage que lhe perguntou como queria que fosse chamada.

Na segunda fez uma crítica à “gourmetização” da cantina da universidade, o que faria com que os preços dos produtos se tornassem inacessíveis aos alunos bolsistas. E por último, na abertura de uma exposição, Lyz se posta seminua sob um tijolo enquanto Augusto Braz rasga grandes pedaços de um papel cor-de-rosa (que se assemelha aos papéis higiênicos considerados baratos e de baixa qualidade) e posteriormente cola em seu corpo tomando forma de um vestido de gala com o qual, ao fim, Lyz caminha lentamente pelo espaço.

Os trabalhos da artista tratam não somente da temática do gênero e do corpo, que não anseia em ser encaixado em determinadas classificações, um corpo que é fluido, transitando entre o masculino e feminino, mas também fala sobre classes refletindo como os espaços institucionais no Brasil são elitistas e segregantes, um “local de disputa” em suas palavras. Suas obras seguiam uma lógica de crítica não somente dos espaços, mas também sobre quem os ocupava.

Uma de suas obras é “Putinha Terrorista” (Figura 6), de 2017, em que panfletos impressos com sua foto nua ou seminua, afirmando o lugar de prostituta e suas respectivas descrições, com telefone e endereço de galerias de artes do Rio de Janeiro, são jogados durante aberturas aleatórias de exposições pela cidade. Assim, Lyz pensa em “transfigurar o lugar marginalizado da prostituição dentro da sociedade em algo potente, criticando os espaços museológicos” como um espaço que se vende, colocando-os como as próprias prostitutas.

 

 

A consciencialização de que não poderia permanecer por muito tempo numa posição de apenas crítica às instituições artísticas chega quando decide revisitar sua história, sua ancestralidade. Com a obra “Manicure Política” (Figura 7), a artista traz à tona a história das mulheres de sua família: sua avó era manicure e sua mãe esteticista.

Neste trabalho monta um salão de beleza intitulado “Salão Parayzo” construindo um cenário totalmente cor-de-rosa, em que pinta a unha do espectador enquanto conversam. E entre os assuntos discutidos, questiona o que é ser mulher na sociedade atual, fazendo o público refletir quanto ao preconceito, discriminação e violência. Essa interacção com o espectador faz com que também ele seja incluído na performance.

 

 

No primeiro semestre de 2018, Lyz se muda para São Paulo, para uma residência artística na FAAP – Fundação Armando Álvares Penteado. Nesse momento resolve criar objetos, algo que sempre resistiu fazer por acreditar que estes não dariam conta de suas urgências, tal como o seu próprio corpo dava.

Nesse momento segue com a ideia de olhar para a sua história: grande parte dos homens de sua família era ourives. Inicia então a série de joias no ateliê da faculdade, que era maioritariamente frequentado por homens. E ali sofre constantes ataques de violência psicológica por parte do técnico responsável pelo ateliê (que chegou a quebrar uma de suas peças e dizer-lhe “Você não deveria estar ali”). A artista que, nessa época, acreditava que ao vestir-se de forma feminina conseguiria melhor aceitação, chegou a cortar os cabelos a fim de amenizar os ataques que sofria.

Lyz Parayzo estudou sobre a História da Arte Brasileira no Parque Lage e um dos movimentos do qual se identificava foi o Movimento Construtivista que tinha representantes artistas como Franz Weissmann (1911-2005), Waldemar Cordeiro (1925-1973), Lygia Clark (1920-1988) e Amilcar de Castro (1920-2002), tomando como referência a técnica de corte e dobra em suas peças de alumínio, uma vez que lhe faltavam recursos para a solda.

Sua série “Bichinhas” faz referência à série “Bichos” de Lygia Clark, atualizando a sua estética e utilizando o nome no diminutivo de uma maneira irônica em razão de suas peças possuírem “um toque de violência no intuito de criar uma poética, da necessidade de se defenderem”, diz a artista. São objetos escultóricos que transcendem a função de ser apenas apreciado, num estado de passividade, tornando-se uma “arma” de defesa para que ela possa se defender da violência sofrida cotidianamente, resistir e sobreviver.

 

 

Há também a ideia de revisitar o Movimento Construtivista como uma “estratégia de hackeamento desse espaço”, em suas palavras para se referir a este território que era, em sua maioria, masculino, branco e de elite. Fala também de suas urgências, ressignificando a estética concreta como forma de dialogar com vários lugares e um público diverso, que conheça ou não as obras de Lygia Clark.

E como desdobramento de “Bixinhas', a artista desenvolve as “Próteses Bélicas” (figuras 9 e 10) numa série de colares e anéis feitos com prata e algumas peças são banhadas a ouro e cravejadas com strass que, ao primeiro olhar, demonstram requinte em sua combinação, estilo e estética, mas que, na verdade, servem como um ornamento de auto-defesa. Essas obras são resultado de uma pesquisa dentro da história da comunidade LGBTI+ no Brasil e sua resistência e enfrentamento quanto às opressões, repressões e violência [8].

 

 

 

A partir de suas produções, Lyz Parayzo reflete sobre sua corporalidade, na tentativa de decolonizar o olhar num exercício que é constante e feito através de pesquisas e vivências dentro de território que se mostra hostil, apesar das conquistas feitas ao longo do tempo a partir do seu próprio trabalho. A artista assumiu um modo de se vestir mais androgênio e entende que seu gênero é fluído, muito além da lógica binária.

Lyz participou do projeto Pivô Pesquisa, associação cultural sem fins lucrativos que serve como plataforma para experimentações artísticas [9] . Foi indicada para prêmio PIPA 2017 e foi finalista do prêmio EDP do Instituto Tomie Ohtake que visa à formação e valorização de jovens artistas. Tem obras compondo a coleção do MAC – Museu de Arte Contemporânea de Niterói e do MAR – Museu de Arte do Rio, e já participou em diversas mostras coletivas nacionais e internacionais. Em 2019, uma de suas obras compôs a exposição “Histórias Femininas: Artistas depois de 2000”, no MASP (Museu de Arte de São Paulo) e teve uma exposição individual na Galeria Verve. Atualmente, faz residência artística em Paris, França.

 

Considerações Finais

Optar pela arte como um meio é contribuir não só para empoderamento de artistas LGBTI+ como também para a legitimidade e reconhecimento de seus trabalhos, desconstruindo a visão hegemônica atuante sobre as produções artísticas e possibilitando a estes artistas criarem as suas próprias narrativas, sendo estes os sujeitos do fazer e não mais objetos de representação.

É preciso levar a identidade de gênero para debate num âmbito social, político e cultural, dentro e fora da academia a fim de compreender sexualidades dissidentes e assim potencializar os enfrentamentos contra preconceitos e violências. Quando damos visibilidade a essa população permitindo que estes corpos ocupem diferentes lugares do espaço urbano e não apenas espaços marginalizados, damos a ela possibilidades de uma vida mais digna [10] e segura. Seu local de circulação na cidade reflete diretamente em sua qualidade de vida.

Lyz Parayzo encontrou na arte uma maneira de se defender e de resistir em seu cotidiano, e seu próprio corpo surge como um local potente para levantar discussões quanto a gênero e classes dentro de espaços que são essencialmente elitistas, brancos e machistas. Hoje a artista se dá conta que esse preconceito tem a ver também com classe, com o território ao qual transita e/ou pertence fazendo um paralelo entre Rio de Janeiro e São Paulo.

No Rio de Janeiro, moradora de periferia, sofria constantes ataques verbais; já em São Paulo, transitando em locais de elite como galerias de artes e museus, esta violência é mais furtiva, uma vez que mesmo havendo ainda um preconceito, artistas transexuais têm, aos poucos, conquistando espaços dentro dessas instituições.

Lyz, através de suas obras, fala não somente de suas urgências mas, num âmbito muito mais amplo, de corpos que estão vulneráveis a ataques físicos e verbais. Fala de uma população que está à margem da sociedade, restando como uma das poucas opções a prostituição, pois este mesmo corpo que é rechaçado e violentado, é também desejado sexualmente, embora de forma velada.

A partir da democratização das artes, de acesso a espaços públicos e privados da população como um todo, independente de idade, sexo, gênero, raça e classe social, a arte pode, então, assumir um caráter informativo e potente ao tratar de questões tão importantes quanto o genocídio e a violência da população transexual e toda população LGBTI+ a fim de consciencializar para a diversidade de corpos que transitam no mesmo território e que devem ser respeitados.

Referências bibliográficas

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Ballestrin, L. (2013) “América Latina e o giro decolonial”, Revista Brasileira de Ciência Política, n.11, pp.89-117. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-33522013000200004 .

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Spivak, G. C. (2010) Pode o subalterno falar?, Belo Horizonte: Editora UFMG.         [ Links ]

Documento sonoro:

Entrevista a Lyz Parayzo (2019) Entrevistadora: Debora Armelin Ferreira. São Paulo, 1 arquivo.m4a (28 min.), registado em Setembro de 2019.

Websites:

https://cargocollective.com/lyzparayzo

https://transrespect.org/wp-content/uploads/2017/11/TvT_TMM_TDoR2017_Map_ES.pdf

Vídeos:

https://www.youtube.com/watch?v=YdwLHaGOxK0

https://www.youtube.com/watch?v=iuafej-C6V4

 

Received: 15-07-2019; Accepted: 03-12-2019.

 

NOTAS

[2] A sigla LGBTQI+ representa Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Intersexuais e as demais orientações sexuais, identidades e expressões de gênero.

[3] Disponível em https://antrabrasil.files.wordpress.com/2019/01/dossie-dos-assassinatos-e-violencia-contra-pessoas-trans-em-2018.pdf

[4]Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2019/01/dossie-dos-assassinatos-e-violencia-contra-pessoas-trans-em-2018.pdf

[5] Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/19/internacional/1553026147_774690.html

[6]Termo cunhado pelo grupo Modernidade/Colonialidade nos anos 2000, definindo que decolinalidade indica o transcender da colonialidade e não apenas a sua superação (Ballestrin, 2013).

[7]Entrevista concedida por Lyz Parayzo em setembro de 2019. Entrevistadora: Debora Armelin Ferreira. São Paulo, 2019. 1 arquivo .m4a (28 min.)

[8]Na década de 1987, ocorreu a chamada “Operação Tarântula” em que policiais perseguiam travestis que se prostituíam com o argumento de que seria um controle do VIH (vírus da imunodeficiência humana). Alguns travestis escondiam navalhas nas gengivas e se cortavam perante os policias, que se afastavam com medo que, do contato com o sangue, pudessem contrair a doença.

[9]Disponível em: https://www.pivo.org.br/sobre/.

[10]Segundo levantamento realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), a expectativa de vida de transexuais e travestis no Brasil é de 35 anos. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2018/02/relatc3b3rio-mapa-dos-assassinatos-2017-antra.pdf

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