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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.34 Lisboa jun. 2017

 

RESENHA

 

Recensão do livro "No Centro, à Margem. Sociologia das intervenções urbanísticas e habitacionais do Estado no centro histórico do Porto"

Review of "No Centro, à Margem. Sociologia das intervenções urbanísticas e habitacionais do Estado no centro histórico do Porto"

 

 

Sónia AlvesI

[I]Instituto de Ciências Sociais – Universidade de Lisboa, Portugal. e-mail: sonia.alves@ics.ulisboa.pt.

 

 

No Centro, à Margem. Sociologia das intervenções urbanísticas e habitacionais do Estado no centro histórico do Porto

João Queirós

Porto: Edições Afrontamento, 2015

 

Este livro é a primeira parte da tese de doutoramento do sociólogo João Queirós, orientada por Virgílio Borges Pereira, com quem o autor tem desenvolvido investigação sobre a temática da habitação e da questão social na cidade do Porto (Pereira e Queirós, 2012; Pereira e Queirós, 2014; Pereira, 2016).

Como é anunciado no prefácio, o livro oferece uma leitura histórica e de interpretação sociológica das condições que estiveram na génese de diferentes fases de política habitacional e urbanística na cidade do Porto. Segundo o próprio autor, o objetivo do livro é o de “ elaborar um retrato sócio histórico e uma apreciação sociológica da génese e estruturação das políticas estatais direcionadas para o centro histórico do Porto, designadamente nas suas vertentes urbanística e habitacional, com vista à inteleção do modo como estas contribuíram para a (re)produção do tecido urbano e social desta área da cidade ” (Queirós, 2016, p. 15, itálicos no original). Um importante contributo do livro é, precisamente, o de discutir, de forma crítica, as causas e os efeitos de políticas públicas em processos de recomposição do tecido social portuense.

O livro divide-se em 5 capítulos, que percorrem diferentes períodos da história recente da política habitacional e urbanística do Porto, oferecendo uma descrição apurada das condições habitacionais das famílias residentes no centro histórico.

Na introdução, o autor refere um conjunto de razões que justificam a relevância de um estudo deste tipo, focado na cidade do Porto. Saliento as que se relacionam diretamente com as características do stock habitacional da cidade: uma elevada proporção de habitação social comparativamente à média nacional (respetivamente 14% e 3% do total da habitação), mas também uma elevada proporção de alojamentos vagos (cerca de 20%, dos quais 7% estão em edifícios muito degradados) e ainda de habitação precária, tais como ilhas (onde, se estima, vivem ainda 5% da população portuense).

No primeiro capítulo, que foca as décadas de 50 e 60, o autor explica a proliferação das formas de habitação precária à luz da inação do estado e de movimentos de êxodo rural que aumentam a procura de habitação por parte de uma população de fracos recursos. As ilhas, casas minúsculas construídas no interior de estreitos quarteirões com pouca luz, e os quartos sobrelotados, sem instalações de casa de banho, que resultam da subdivisão de edifícios antigos e degradados do centro histórico, são a resposta de um setor privado altamente especulativo que explora as necessidades habitacionais de uma classe trabalhadora de baixos rendimentos. É também o resultado da falta de ação do estado (ao nível da regulação, fiscalização e provisão de habitação) que não promove a defesa dos direitos destes cidadãos.

Para além de oferecer uma descrição apurada das condições de enorme miséria habitacional que se vivem na urbe portuense em meados do século XX, o primeiro capítulo interpreta os propósitos e os efeitos das respostas de política habitacional e urbanística desenvolvida pela Câmara Municipal do Porto nesse período. Nomeadamente, o Plano de Salubrização das Ilhas e o Plano de Melhoramentos que corresponde, segundo Queirós, “à mais ampla iniciativa habitacional do estado alguma vez realizada no Porto” (Idem: 23). Lançado em 1956, o Plano de Melhoramentos permitiu a construção, em 10 anos, de seis mil fogos de alojamento público. Uma habitação para acomodar população desalojada na sequência da erradicação de ilhas (estima-se que 13 mil ilhas foram demolidas) e de outro tipo de habitação destruída para a concretização de obras de infraestruturação ou de desenvolvimento urbano (ex. criação de ruas, equipamentos, etc.). Uma transferência estimada em cerca de 45 mil pessoas de áreas centrais para os novos bairros de habitação social construídos na periferia. A concretização de um objetivo do Plano Diretor da Cidade do Porto de 1962, de descompressão demográfica do centro histórico e de renovação urbana de alguns quarteirões, com vista à reabilitação do património edificado para a afirmação da cidade como um centro de negócios e de turismo. A criação de miradouros, a demolição de quarteirões para ampliar a visibilidade e a acessibilidade a monumentos classificados, a reorganização e requalificação do comércio local, a criação de percursos turísticos, são exemplos de ações com vista à concretização desses objetivos.

Uma parte da investigação de João Queirós é dedicada à análise do Estudo de Renovação Urbana do Barredo do arquiteto Fernando Távora apresentado em 1969 à Câmara Municipal do Porto. O interesse do autor por este estudo é justificado a dois níveis. Por um lado, porque o arquiteto desenvolve uma abordagem de ‘conservação integrada’ que combina a ideia de reabilitar preservando quase integralmente o conjunto edificado e, tanto quanto possível, o tecido social existente (ver pp. 46-55). Por outro lado, porque o estudo oferece um levantamento exaustivo das condições de habitação e de ocupação de dois quarteirões do Barredo (na Ribeira) que João Queirós utiliza (no segundo capítulo), para complementar outra informação estatística e documental e, assim, traçar o retrato socioeconómico, sociográfico e sociológico do centro histórico do Porto nas vésperas do 25 de abril.

No terceiro capítulo, a partir de relatos de moradores, ex-moradores e técnicos, somos transportados para o contexto revolucionário de 1974 e convidados a perceber as causas dos movimentos sociais, de participação política, dos residentes organizados em comissões e associações de rua ou de bairro. João Queirós ajuda-nos a entender os movimentos de ocupação de fogos municipais desabitados e as formas de participação pública em colaboração com as brigadas técnicas locais (arquitetos, assistentes sociais, etc.) como parte de um movimento global de luta pelo direito à ‘habitação’ e à ‘cidade’. A criação do CRUARB (Comissão para a Renovação Urbana da Área da Ribeira-Barredo) para a condução do processo de renovação urbana da zona ribeirinha, de acordo com os princípios e a metodologia de intervenção proposta por Fernando Távora, e as vicissitudes de natureza ideológica e política que condicionaram a sua ação entre 1977 e 2004 são analisadas nos capítulos seguintes.

No quarto capítulo são discutidas as políticas do estado de incentivo à compra da casa, em detrimento de apoio à requalificação e ao arrendamento urbano, bem como a influência da agenda e do financiamento europeu para as estratégias desenvolvidas no centro histórico do Porto durante os anos 90. Nomeadamente, a criação da “Fundação para o Desenvolvimento da Zona Histórica do Porto”, com cofinanciamento do Programa Europeu de Luta contra a Pobreza, e o “Projeto-Piloto Urbano do Bairro da Sé” a que o CRUARB se candidatou e administrou durante um período em que escasseava o financiamento para a reabilitação urbana em Portugal (ver Alves, 2016). Porque o financiamento europeu não autorizava a requalificação do edificado para fins habitacionais (considerada uma competência dos Estados-Membros), os investimentos públicos no âmbito da intervenção no bairro da Sé dirigem-se sobretudo à requalificação de espaços e equipamentos públicos, e à revitalização do sector comercial e do turismo, mantendo-se a estratégia de transferência de população mal alojada para os bairros sociais de localização periférica. No centro histórico reforçam-se as tendências de desertificação populacional e de terciarização, sobretudo no cluster da animação, lazer e cultura. Com a falta de regulação de horários de animação noturna e estratégias de revitalização comercial e urbana conduzidas por interesses económicos, as necessidades de bem-estar da população residente vão sendo cada vez mais secundarizadas.

No quinto capítulo, através da análise de discursos (de políticos, de técnicos, …) e documental (ex. legislação, documentos estratégicos, etc.), o autor defende que desde 2004 a gentrificação se afirma como estratégia de transformação urbana do centro histórico do Porto, constituindo a Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU) Porto Vivo, SA. o mecanismo institucional que a operacionaliza. O novo urbanismo neoliberal que o modelo das SRUs consubstancia, e que sujeita os interesses dos moradores a interesses económicos de privados (investidores do setor da construção, da promoção imobiliária e do turismo), é responsável pela diminuição da oferta de habitação no centro histórico e sobretudo de uma habitação acessível à maior parte da população que habitava a área.

O livro de João Queirós é um manifesto contra as políticas de requalificação urbana que, mostrando pouca humanidade, favorecem, através de processos de requalificação do ambiente construído, a progressiva destruição do tecido social original dos territórios intervencionados. É um manifesto contra as políticas públicas que para além de alimentarem ciclos de especulação e endividamento relacionado com o negócio do imobiliário, produzem sentimentos de desconfiança e de insatisfação face à ação pública. Por ser um livro que desenvolve uma análise crítica, bem fundamentada, às políticas e às práticas de habitação e urbanismo, esta é uma obra de leitura obrigatória que não pode ser ignorada.

 

REFERÊNCIAS

Alves, S. (2016) “Poles Apart? A Comparative Study of Housing Policies and Outcomes in Portugal and Denmark”, Housing, Theory and Society, DOI: 10.1080/14036096.2016.1236036         [ Links ]

Pereira, V.B. (Org.) (2016) A Habitação Social na Transformação da Cidade. Sobre a Génese e Efeitos do «Plano de Melhoramentos para a Cidade do Porto» de 1956 , Porto: Edições Afrontamento (Coleção O Estado, a Habitação e a Questão Social na Cidade do Porto, vol. 2).         [ Links ]

Pereira, V.B., Queirós, J. (2014) “'It’s not a bairro, is it?': subsistence sociability and focused avoidance in a public housing estate”, Environment and Planning A, 46: 1297-1316.         [ Links ]

Pereira, V.B., Queirós, J. (2012) Na Modesta Cidadezinha: génese e estruturação de um bairro de casas económicas do Porto [Amial, 1938-2010] , Porto: Edições Afrontamento (Coleção O Estado, a Habitação e a Questão Social na Cidade do Porto, vol. 1).

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