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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.32 Lisboa jun. 2016

https://doi.org/10.15847/citiescommunitiesterritories.dec2016.033.art10 

ARTIGO ORIGINAL

 

Casas em série, construções temporárias e lotes vazios. Os subúrbios através da arte contemporânea.

Tract houses, temporary constructions and vacant lots. Suburbia and contemporary art.

Margarida Brito AlvesI

[I]Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa, Portugal. e-mail: leonorcms@gmail.com.

 




RESUMO

Na arte do século XX é claramente identificável uma ampla transposição das tradicionais fronteiras definidas entre diferentes categorias artísticas e, em particular, o desenvolvimento de transferências entre arte e arquitectura. Com efeito, o processo transgressivo que ao longo das décadas iniciais do século XX determinou as primeiras vanguardas foi recuperado e consolidado a partir do segundo pós-guerra através das dinâmicas criadas pelas neo-vanguardas - nas quais podemos reconhecer uma deliberada convergência entre os campos convencionalmente estabelecidos pela arquitectura e pela produção artística. A partir dos anos 1950, assistiu-se à afirmação de uma zona de contacto entre estas duas áreas: um território nebuloso, definido não apenas por uma mútua influência, mas também pela partilha de um léxico tectónico. Num contexto determinado por deslizamentos entre diferentes media, e em articulação com as revisões do modernismo que começavam a emergir, foi então que a prática artística, de certo modo funcionando como uma heterotopia, se constituiu como um espaço de crítica, capaz de analisar, confrontar e problematizar tanto a arquitectura como as diversas formas de desenvolvimento urbano. Ao revisitar e discutir os seus modos de operar e questionar as suas soluções, até certo ponto, a arte expandiu o debate sobre a produção arquitectónica e o planeamento das cidades. Recuperando algumas das referências teóricas centrais que definem este processo, e partindo do trabalho de vários artistas - na sua maioria norte-americanos, tendo em conta a particular expressão que este tipo de propostas teve nesse contexto -, este artigo procura discutir os múltiplos modos através dos quais a arte contemporânea problematizou a expansão urbana e a periferia.

Palavras-chave: Arte e Arquitectura; Periferia; Heterotopias.


ABSTRACT

In twentieth-century art, it´s clearly identifiable a general overcoming of the traditional boundaries between different media, and the development of obvious interchanges between art and architecture in particular. In fact, the transgressive process initiated in the scope of the first avant-gardes, was recaptured and consolidated during the second half of the century by the dynamics created by the neo avant-gardes – in which we can recognize a deliberate convergence between the fields conventionally established by artistic and architectural production. From the 1950s on, a contact zone between these two areas has been defined: a blurred territory determined not only by a mutual influence, but also by the sharing of a tectonic lexicon. In a scenario determined by slips between media, and in articulation with the revisions of modernism that began to emerge, it was then that artistic practice, somehow functioning as an heterotopia, became a critical space where architecture was analyzed, confronted and challenged. Moreover, revisiting and discussing its practices, and questioning its solutions, to a certain extent, art expanded the debate on architecture. Recapturing some of the main theoretical references that define this process, and drawing from the work of several artists, this paper aims to discuss some of the multiple ways contemporary art has been addressing urban growth and suburbia.

Keywords: Art and Architecture; Suburbia; Heterotopias.


 

Numa imagem fotográfica captada em Bayonne - New Jersey, em meados da década de 1960, vemos uma sequência de casas, idênticas, apenas diferenciadas por pequenas variações de cor. Num mesmo ciclo de imagens, podemos reconhecer uma realidade semelhante em Staten Island, Westfield, ou em Minneapolis; encontrar instantâneos registados em estações de serviço de auto-estradas; depararmo-nos novamente com construções em série, ou observar, simplesmente, pormenores dessas construções. Casa após casa, após casa, após casa.

Homes for America, é o título de um trabalho de Dan Graham, inicialmente apresentado em 1966, no Finch College Museum of Art [2] de Nova Iorque, como uma projecção de slides que reunia cerca de vinte imagens que registavam diversas realidades suburbanas norte-americanas.

No final desse ano, uma parte dessas mesmas imagens seria publicada na revista Arts Magazine, enquanto documentação de um artigo, da autoria do próprio artista, sobre os empreendimentos de construção anónima, standartizada e massificada, desenvolvidos no pós-guerra, e no qual eram criticamente problematizadas a ausência de conexão dessas construções com as comunidades locais, assim como a exclusão de características regionais ou individuais.

O carácter projectual e modular, tal como as noções de serialidade e de repetição, que nesses anos determinavam o trabalho de diversos artistas do designado minimalismo norte-americano - como Donald Judd, Dan Flavin ou Robert Morris -, eram desse modo subversivamente levados a um outro plano, distanciado do espaço heterotópico dos museus e das galerias de arte, e dirigidos a um quotidiano urbano - mas estabelecendo contudo um paralelo entre arte e arquitectura, que revelava correspondências entre ambas as práticas.

Não deixa aliás de ser interessante recordar que foi exactamente no mesmo ano - em 1966 - que Robert Venturi publicou Complexity and Contradiction in Architecture, o seu "suave manifesto" em favor de uma "arquitectura não directa" (Venturi, 1995:1) - no qual recuperava uma série de valores que tinham sido suprimidos perante a codificação e o reducionismo de um modernismo ortodoxo, e assumia uma posição de tolerância perante a dinâmica urbana que lhe era contemporânea, como evidenciava a sua célebre afirmação "Main Street is almost right" (Venturi, 1995:146). Com efeito, nesse livro era desenvolvida uma argumentação que viria a contribuir decisivamente para o debate em torno de uma revisão da linguagem arquitectónica, e do pós-modernismo norte-americano em particular. De resto, esta publicação antecipava os casos de estudo que o próprio Robert Venturi, em parceria com Denise Scott Brown, desenvolveria poucos anos mais tarde com um grupo de alunos: Learning from Las Vegas [3], de 1968, e que viria a traduzir-se num livro, com o mesmo título, publicado em 1972, e Learning from Levittown[4], de 1970 - tratando-se justamente de análises centradas na observação do crescimento de algumas cidades e subúrbios norte-americanos, tal como acontecia no trabalho de Dan Graham e de vários outros artistas.

O desenvolvimento urbano do pós-guerra era assim submetido a um duplo olhar, crítico, que evidenciava uma renovada proximidade entre arte e arquitectura.

Na verdade, na sequência das transgressões, deslizamentos e contaminações entre categorias artísticas que desde cedo pontuaram o século XX, a arquitectura vinha a constituir-se como uma referência na produção artística - um processo que podemos mapear através das muitas dinâmicas introduzidas pelas primeiras vanguardas, mas que adquiriu mais clara expressão a partir dos anos 1960, já no âmbito das neo-vanguardas.

É pois sobretudo no contexto do pós-guerra que podemos distinguir uma deliberada convergência entre os campos tradicionalmente definidos como arte e como arquitectura, tornando-se aliás evidente a configuração de um território não apenas de mútua influência, mas de justaposição, e até de partilha de um mesmo léxico construtivo, senão mesmo arquitectónico - tal como, no caso norte-americano, exemplificavam as obras de artistas como Mary Miss ou Alice Aycock.

Não é assim de estranhar que, perante os sucessivos desdobramentos de uma prática como a escultura, Rosalind Krauss, no seu texto de 1979, «Sculpture in the Expanded Field», tenha precisamente identificado a arquitectura como um dos vectores de contenção para definir o supostamente expandido "campo da escultura" - que tentava então (ainda) demarcar.

Esta manifesta convergência ganhou consistência ao longo das décadas seguintes, e é essencialmente nesta linhagem que podemos inscrever o trabalho de muitos artistas [5] que não apenas exploraram a relação entre arte e arquitectura, mas agiram criticamente na arquitectura e questionaram as, muitas vezes, anónimas e desordenadas, formas de desenvolvimento urbano.

É assim neste quadro mais amplo que podemos situar Homes for America de Dan Graham, mas também diversas outras obras da sua autoria que procuraram problematizar a arquitectura, e os subúrbios em particular, tal como mostra Alteration to a Suburban House, produzida em 1978, e que, assinalando uma necessária revisão, estabelece um confronto directo com a linguagem da arquitectura moderna.

Trata-se de um projecto que apenas foi formalizado em maquete e que consiste na substituição da fachada de uma casa por um plano de vidro, e pela colocação de um espelho no seu interior, paralelo a esse vidro, que bissectava longitudinalmente o espaço habitável. Essa intervenção diluía as fronteiras entre espaço público e espaço privado, dado que, ao mesmo tempo que expunha uma parte de um quotidiano doméstico aos olhares exteriores, transportava igualmente para um miolo interior a reflexão das dinâmicas de rua. Ao desconstruir a idealização da habitação nos subúrbios norte-americanos, este projecto funciona como uma declarada provocação a obras como a de Mies van der Rohe - e talvez mais especificamente à manifesta sobre-exposição da Farnsworth House, construída em 1951, nos arredores de Plano, no Illinois, e cujas fachadas tinham a particularidade de serem integralmente formalizadas em vidro, dissolvendo a fronteira entre interior e exterior. Dan Graham estabelecia assim um diálogo mediado com a arquitectura moderna, mas definia sobretudo uma possibilidade de a revisitar criticamente através de uma certa ironia.

A relação entre espaço público e espaço privado foi também explorada por Gordon Matta-Clark, como é evidente em Splitting, produzido em 1974, e que correspondeu ao acto de serrar ao meio uma tradicional habitação de dois pisos situada na Humphrey Street em Englewood, uma zona de New Jersey.

Colocando igualmente em causa uma noção idealizada de habitação, os dois cortes paralelos, realizados pelo próprio artista, eliminaram a separação entre interior e exterior, introduzindo uma abertura que possibilitava uma comunicação não controlada entre ambos os espaços, e revelando, desse modo, o ambiente doméstico, usualmente afastado dos olhares exteriores.

A prevista e iminente demolição da casa em questão estabelecia à partida que os resultados da operação do artista estavam inevitavelmente condenados a desaparecer - tal como, também a desaparecer, estava o próprio bairro tradicional em que a construção se situava, perante as transformações decorrentes de especulação imobiliária.

Abordando a casa como um ready-made, Matta-Clark apropriou-se de um objecto preexistente através de uma aparatosa intervenção, mas problematizou sobretudo uma série de questões - sociais, políticas, urbanas e arquitectónicas - que desde cedo caracterizaram a sua obra.

Com efeito, o interesse de Gordon Matta-Clark por temas relacionados com a arquitectura, levou-o, em 1974, a formar, com Suzanne Harris e Tina Girouard, o colectivo Anarchitecture, que procurava dinamizar a discussão sobre as ambiguidades e a transitoriedade do espaço. Apesar de tomar a arquitectura como um dos seus principais campos de referência, a noção de anarchitecture introduzia-lhe contudo uma disfunção, referindo-se sobretudo a espaços e a práticas que lhe eram tangenciais ou complementares.

Estas preocupações eram já identificáveis em trabalhos como Bronx Floors, desenvolvido entre 1972 e 1973, e que consistiu na subtração, ilegal, de secções dos pavimentos, paredes e tectos de edifícios abandonados, situados numa zona então particularmente problemática de Nova Iorque. Esses fragmentos foram apresentados na Green Gallery, a par de fotografias que registavam os espaços de onde tinham sido extraídos, após a intervenção do artista - documentando a sua proveniência mas também a precariedade da habitação no Bronx.

Gordon Matta-Clark chegou aliás a interessar-se pelo próprio sistema imobiliário, tendo adquirido, ao longo de 1973, um conjunto de cinco terrenos situados em Queens e em Staten Island que tinham sido colocados à venda nos leilões da instituição pública City of New York. Revelando no entanto as consequências do sistema, esses terrenos resumiam-se a reduzidos lotes residuais ou intersticiais, resultantes do próprio planeamento urbano da cidade.

Tratavam-se de espaços sobrantes, alguns mesmo inacessíveis, sem qualquer interesse do ponto de vista comercial, e que se tornaram propriedade do artista através de um processo burocrático - mas que não visavam, nem permitiam sequer, qualquer usufruto. Reality Properties: Fake Estates, a designação desse projecto, consistiu na compra dos lotes em questão e na organização de "documentação escrita sobre a parcela de terreno, incluindo dimensões exactas e localização, e talvez uma lista das ervas que ali crescem", integrando ainda "uma fotografia à escala real da propriedade", tal como recordou Pamela M. Lee (Lee, 2001:99).

Como exemplifica este trabalho, o próprio desenvolvimento urbano das periferias, muitas vezes desregrado e caracterizado por zonas de expansão industrial foi objecto de reflexão na obra de diferentes artistas, tais como Ed Ruscha, que, em 1966, apresentou Every Building on the Sunset Strip - um conjunto de imagens formalizado como um desdobrável, no qual era reproduzida uma sequência fotográfica dos edifícios então existentes numa secção do Sunset Boulevard em Hollywood -, ou Robert Smithson, que em Dezembro de 1967 publicou, na Artforum [6], o ensaio The Monuments of Passaic, no qual descrevia uma viagem de autocarro que fez até à sua cidade natal em New Jersey.

Esse ensaio de Smithson era acompanhado por fotografias que registavam uma paisagem em transformação, revelando um olhar estético sobre infraestruturas, como os suportes em betão para uma auto-estrada em construção; como uma ponte, em aço e madeira, votada ao abandono; um conjunto de tubos de drenagem, ou um guindaste.

Elevados à condição de "monumentos" (Lejeune, 2011: 367) - e assumindo designações como The Bridge Monument Showing Wooden Sidewalks ou The Great Pipe Monument - estes elementos eram perspectivados como parte integrante da própria história da paisagem. Como parte de um processo entrópico, em constante fluxo, capaz de estabelecer uma dialéctica entre passado e presente. Através dessa leitura, Robert Smithson relacionava-se com um tempo em ampla extensão e com um espaço em sucessiva reconfiguração, oferecendo uma visão desdramatizada sobre uma paisagem indiferenciada.

Chegado à localidade, onde não reconhecia um "centro", mas apenas um recorrente "vazio" (Smithson, 1996: 72), perante a observação de lojas, restaurantes ou parques de estacionamento, Smithson anotava a banalidade e a vulgaridade do tecido urbano construído, assumindo contudo uma aceitação condescendente dessas construções. Provocatoriamente, chegava a questionar se Passaic havia "substituído Roma enquanto cidade eterna" (Smithson, 1996: 74), - uma pergunta que encontraria claras ressonâncias numa formulação de Robert Venturi, que, em 1972, descreveria Las Vegas como fonte de inspiração de um novo tempo e como um local a partir do qual se poderiam tirar lições, afirmando que "visitar Las Vegas a meados dos anos 60 era como visitar Roma em finais dos 40" (Venturi, 1972).

Levando por diante a comparação, ainda em 1967, Smithson distribuiria na Dwan Gallery um folheto, no qual, sob o título See the Monuments of Passaic New Jersey, convidava o público a participar numa visita guiada à localidade: " What can you find in Passaic that you can not find in Paris, London, or Rome? Find out for yourself. Discover (if you dare) the breathtaking monuments on its enchanted banks " (Smithson, 1996: 356).

É esta estetização da periferia que, avançando para o contexto alemão, podemos igualmente identificar nas fotografias de Bernd e Hilla Becher - que, a partir da década de 1960, registaram séries de edifícios e de estruturas industriais, produzindo imagens que apresentavam como "esculturas anónimas". Ao documentarem uma paisagem periférica em transformação, essas fotografias salientavam a decadência, mas também a beleza, dessas construções, ao mesmo tempo que denunciavam a destruição de todo um património não apenas industrial, mas igualmente social e cultural.

Todas estas abordagens, que marcaram as décadas de 1960 e 1970, constituíram-se como referências para muitos artistas que emergiram em diferentes contextos ao longo das décadas seguintes e que têm vindo a revisitar e a problematizar incisivamente a arquitectura e as dinâmicas urbanas.

Um exemplo amplamente referenciado é o da britânica Rachel Whiteread, autora do mediático e controverso projecto House, desenvolvido em 1993 - que se localizava num bairro do East London e que acabou por ser demolido no ano seguinte após acesa polémica [7] -, mas, desse mesmo ano, vale a pena destacar o vídeo How do we know what home looks like? The Unité d´Habitation de Corbusier at Firminy, produzido pela norte-americana Martha Rosler.

Gravado em Firminy-Vert, esse vídeo, que assumiu um carácter documental, revisitou uma das unidades de habitação projectadas por Le Corbusier, procurando analisar as alterações e "melhorias" que ao longo do tempo foram sendo introduzidas no edifício pelos seus habitantes. Através de entrevistas a diferentes moradores, Rosler questionou a capacidade de resistência do idealismo subjacente ao projecto, quando confrontado com sucessivas vivências quotidianas.

Nesta linha, podemos também assinalar a obra do catalão Domènec, que num claro exercício de citação, e até de irrisão, tem vindo a elaborar réplicas de estruturas modernistas que procuram reactivar a reflexão em torno dessas propostas. Ao catalisar uma releitura do modernismo, e denunciando os seus fracassos, o artista resgata por vezes construções que nunca saíram do projecto, ou que tinham sido destruídas, dotando-as de novos usos.

É esse o processo que podemos reconhecer em trabalhos como Domestic, de 2000 - uma fotografia que regista uma maquete da Unidade de Habitação de Le Corbusier simbolicamente abandonada no meio de uma floresta -; Unité Mobile (Roads are also Places) - um vídeo com origem numa irónica intervenção realizada a 25 de fevereiro de 2005 na Unidade de Habitação de Marselha, que fora projectada em 1947; ou Superquadra - Casa Armário, de 2007 - e que consiste na recriação de dois enormes blocos residenciais projectados por Lúcio Costa em Brasília, através da sua adaptação a uma escala de abrigos individuais.

É ainda dentro destas coordenadas que podemos salientar a obra de Los Carpinteros, um grupo cubano inicialmente constituído em 1991 por Dagoberto Rodríguez, Marco Castillo e Alexandro Arrechea, e que produz esculturas e instalações que cruzam processos da arquitectura e do mobiliário, reconhecendo a primeira como uma "fonte de obsessão" (Los Carpinteros, 1999).

Entrando directamente em diálogo com o desenvolvimento urbano contemporâneo, em 2000, na Bienal de La Habana, Los Carpinteros apresentaram pela primeira vez Ciudad Transportable, uma instalação constituída por um conjunto de estruturas executadas em alumínio e tecido, que, numa escala reduzida, recriava uma configuração urbana que reunia diversos equipamentos - tais como um bloco de habitação, uma fábrica, um hospital, um edifício militar, uma universidade, uma prisão, uma igreja, ou um armazém. Tratava-se de uma proposta que estabelecia os elementos mínimos para o funcionamento de uma cidade e que reintroduzia uma certa componente utópica. Definida como um modelo para uma cidade nómada, a instalação foi depois apresentada em locais como Nova Iorque, Los Angeles e Xangai.

Já em 2007, no Faena Arts Center em Buenos Aires, Los Carpinteros apresentaram El Barrio, um caótico aglomerado de casas formalizadas em cartão que problematizava o crescimento exponencial das periferias e a ausência de planificação das cidades contemporâneas - tomando a escultura justamente como um lugar de crítica e ironia.

Por último, é ainda de evidenciar o trabalho da artista e arquitecta eslovena Marjetica Potrc, que, propondo alternativas para as actuais políticas de expansão urbana, explora uma vertente colaborativa e relacional, objectivada em reconfigurar dinâmicas sociais através da definição de modos alternativos de construir e de habitar - e que muitas vezes se constitui como uma crítica aos códigos modernistas. É esse o caso das três séries de desenhos expostas em 2007, na galeria londrina Blow de la Barra: The Great City of Medellin - que, tomando como caso de estudo a evolução de uma cidade na Colômbia entre os anos 1950 e 1980, cartografava a transformação de um promissor meio industrial moderno num contexto com sérios problemas de violência e de droga -, mas também de Hybrid House: Caracas, West Bank, West Palm Beach - apresentado em 2003 no Palm Beach Institute of Contemporary Art em Lake Worth, e que se definia como "um caso de estudo arquitectónico" que, ironicamente, justapunha estruturas habitacionais precárias provenientes de três contextos diferenciados.

Como nos mostram todas estas propostas, a produção artística tem vindo a constituir-se como um território a partir do qual a arquitectura e o desenvolvimento urbano podem ser problematizados. Tratam-se de formalizações que funcionam como heterotopias, espaços simultaneamente dentro e fora, tal como nos propôs Michel Foucault no seu ensaio Des Espaces Autres - originalmente apresentado como conferência em 1967 e publicado em 1984.

Com efeito, nesse texto, por oposição à "grande obsessão com a história" que determinara o século XIX, o autor identificava uma obsessão com "o espaço", notando estar na época "da simultaneidade", "da justaposição", "do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso" (Foucault, 1994: 752). Michel Foucault reconhecia então uma sobreposição de regimes espaciais que o conduziu à noção de heterotopia - um espaço heterogéneo, com várias camadas, real, mas determinado por relações invertidas. Desse modo, enquanto a utopia seria um espaço sem lugar real, a heterotopia corresponderia a um espaço de representação, de contestação, e de inversão da realidade - mas que com ela se articula.

Nestes termos, é assim enquanto heterotopia que a produção artística tem vindo a assumir-se como um lugar de crise, afirmando-se como um espaço complementar, e até de extensão, para a reflexão em torno das práticas urbanas e arquitectónicas, actuando criticamente sobre a realidade construída.

 

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NOTAS

[2] No contexto da exposição Projected Art, organizada por Elayne Varian, e que decorreu entre 8 de Dezembro de 1966 e 8 de Janeiro de 1967.

[3] Learning from Las Vegas consistiu num projecto de investigação conduzido por Robert Venturi e Denise Scott Brown, que contou com a participação de alguns dos seus estudantes da Yale School of Art and Architecture e que procurava desenvolver uma análise "desprovida de juízos de valor". O projecto incluiu uma primeira fase de estudo, com a duração de três semanas, seguida de um período de quatro dias passados em Los Angeles e dez em Las Vegas.

[4] Learning from Levitown ou Remedial Housing for Architects foi um projecto de investigação desenvolvido em 1970 por Robert Venturi e Denise Scott Brown com alguns dos seus alunos, e que tomou como matéria de análise a habitação social suburbana de New Haven. De acordo com Denise Scott Brown, o objectivo do projecto seria "colocar os estudantes a pensar realisticamente em vez de ideologicamente acerca da habitação social". O resultado deste estudo foi sintetizado na exposição Signs of Life: Symbols in the American City, organizada em 1976 na Renwick Gallery of the Smithsonian Institution, em Washington.

[5] Ver, por exemplo, Gill Perry, Playing at Home. The House in Contemporary Art, London: Reaktion Books, 2013, ou Imogen Racz, Art and the Home; London/ New York: I B Tauris, 2015.

[6] Robert Smithson, «The Monuments of Passaic», Artforum, vol. VI, N.4, New York, Dec. 1967, p. 48-51.

[7] Após dois anos de preparação, e com o apoio do Artangel Trust, no Outono de 1993, Whiteread betonou o interior de uma casa vitoriana num bairro do East London, criando um volume maciço que, depois de ter sido removida a estrutura exterior da casa que lhe servira de molde, se revelou como um negativo dessa construção. Ao transformar um espaço privado em público, e ao dar matéria ao que anteriormente era vazio, sem que o volume deixasse contudo de ser identificável enquanto habitação, a escultura constituía-se como uma construção fantasma - o que desagradou a muitos dos habitantes do bairro e suscitou fortes polémicas, levando a que House acabasse por ser demolida em Janeiro de 1994. Para aprofundar esta questão, ver o catálogo Rachel Whiteread - House, London: Phaidon, 1995.

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