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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.32 Lisboa jun. 2016

https://doi.org/10.15847/citiescommunitiesterritories.dec2016.033.art03 

ARTIGO ORIGINAL

 

Discursos hegemónicos sobre a cidade: desenvolvimento e crescimento verde em Braga.[1]

Hegemonic discourses about the city: "development" and "green growth" in Braga.

Anabela CarvalhoII

[II]ICS - Universidade do Minho, Portugal. e-mail: carvalho@ics.uminho.pt.

 

 


RESUMO

O objectivo deste artigo é desconstruir discursivamente a cidade de Braga. Através da análise de comunicação política e de publicidade, procura-se ilustrar o potencial analítico de conceitos formulados por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe para compreender a forma como determinados discursos se tornam hegemónicos, moldando o sentido da cidade e a identidade dos sujeitos. Laclau e Mouffe vêem os significados como algo que nunca está completamente definido mas apenas parcialmente fixado por pontos nodais constituídos através de práticas de articulação. “Desenvolvimento” e “crescimento verde” foram dois pontos nodais importantes que fixaram o significado das relações sociais em Braga em diferentes momentos históricos. A “natureza” e o “ambiente” emergiram numa variedade de contextos discursivos para apoiar o projecto da Câmara Municipal e os interesses empresariais na cidade. À medida que estes significantes se foram desgastando, transformaram-se em significantes vazios, permitindo todos os tipos de usos discursivos na construção e fortalecimento da posição hegemónica dos poderes locais. Ao mesmo tempo, as posições e a identidade dos cidadãos foram, também, sendo reconstruídas por esses discursos.

Palavras-chave: cidade, discurso, desenvolvimento, crescimento verde, hegemonia.


ABSTRACT

The goal for this article is to discursively deconstruct the city of Braga. By analyzing political communication and advertising, it aims to show the analytical potential of concepts proposed by Ernesto Laclau and Chatal Mouffe to understand how certain discourses become hegemonic, shaping the meaning of the city and the identity of subjects. Laclau and Mouffe view meanings as something that his never completely defined but only partly fixed by nodal points constituted through practices of articulation. “Development” and “green growth” were two key nodal points that fixed the meaning of social relations in Braga in different historic moments. “Nature” and “green” emerged in a variety of discursive contexts to support both the city council’s project and business interests. As these signifiers became increasingly eroded, they turned into empty signifiers allowing for all sorts of discursive uses in constructing and reinforcing the hegemonic position of local powers. Simultaneously, the subject positions and identities of citizens were also reconstructed through those discourses.

Keywords: city, discourse, development, urban growth, hegemony.


 

1. Introdução

Apesar do interesse geral pelos impactos sociais e culturais da globalização, o dia-a-dia de cada cidadão permanece amplamente moldado por vivências do espaço, da comunidade e da cidade, ou seja do local. Uma vez que as características físicas das geografias urbanas criam tanto possibilidades como limitações em termos de sociabilidade, trabalho, mobilidade, lazer, etc., as mesmas podem ser vistas como um importante factor constitutivo da cultura e identidade locais. Porém, como muita pesquisa tem mostrado, os processos de construção do espaço (e da vida nesse espaço) estão profundamente dependentes dos significados particulares que lhe são atribuídos e que se encontram em constante reconstrução. A "experiência urbana" (Harvey, 1989) é, por isso, constituída discursivamente.

O objectivo deste artigo é "desconstruir" a cidade de Braga nos primeiros anos do corrente milénio, utilizando como instrumento de crítica o trabalho de Ernesto Laclau e de Chantal Mouffe (especialmente o seu livro de 1985). Apesar de múltiplos trabalhos proporem análises discursivas das cidades, ou de alguma dimensão do urbano (e.g. Jacobs, 2004; Ravelli & McMurtrie, 2016; Soja, 2000), são raros os que recorrem à abordagem de Laclau e Mouffe. [3] Na análise aqui apresentada irá recorrer-se à "caixa de ferramentas" conceptual que os mesmos propuseram para a análise de processos sociais e políticos e dos discursos em que assentam e procurará demonstrar-se a sua proficuidade para a análise do urbano. Laclau e Mouffe não distinguem o discursivo do material e vêem os significados como algo que nunca está completamente definido mas apenas parcialmente fixado por pontos nodais constituídos através de práticas de articulação: "A prática de articulação consiste na construção de pontos nodais que parcialmente fixam o significado" (Laclau & Mouffe, 1985: 113). Demonstrarei que "desenvolvimento" e "crescimento verde" são dois pontos nodais importantes que fixaram o significado das relações sociais em Braga em diferentes momentos históricos. Apesar das questões ambientais terem sido excluídas do projecto de "desenvolvimento", a partir dos anos noventa o "verde" transformou-se no enfoque de novas articulações discursivas por parte de agentes políticos e empresariais, sustentando as suas posições hegemónicas.

A "natureza" e o "ambiente" surgiram numa variedade de contextos discursivos para apoiar o projecto da Câmara Municipal para a cidade, liderada pela mesma pessoa durante 37 anos (até 2013). À medida que estes significantes se foram desgastando, transformaram-se em significantes vazios, ou "significante(s) sem um significado" (Laclau, 1996: 36), permitindo todos os tipos de usos discursivos na construção e fortalecimento da posição hegemónica dos poderes locais. A palavra "verde" tem sido utilizada arbitrariamente por promotores imobiliários para fixar o significado do espaço e funcionado como um símbolo-chave em benefício de uma estratégia que, paradoxalmente, destrói aquilo que tenta comercializar. Este artigo dará particular atenção à propaganda política e à publicidade como práticas articulatórias que contribuem para uma percepção particular do espaço e da identidade específica dos sujeitos.

Começar-se-á por analisar (algumas) abordagens sobre o discurso, política urbana e visões sobre o que uma cidade é ou deveria ser. A análise do contexto histórico em que se desenvolveu uma forma particular de política hegemónica em Braga ajudará a explicar as cadeias de equivalência [4] que se construíram e os significados que foram atribuídos aos ambientes construídos e naturais. Seguir-se-á uma análise da (re)construção discursiva de questões ambientais e do desenvolvimento de um discurso hegemónico de "crescimento verde".

 

2. Discursos de governação urbana

A governação urbana implica um contínuo reequilíbrio de três elementos principais: relações sociais, economia e natureza/ambiente. Porém, o peso destes elementos no processo de produção do espaço varia. Grande parte da investigação indica que existem três discursos dominantes na governação urbana contemporânea que expressam diferentes configurações da relação sociedade - economia - ambiente: o "discurso de inclusão social", o "discurso de crescimento" e o "discurso de sustentabilidade".

Com o enfraquecimento do Estado-Providência, a componente social da política urbana, que em determinados momentos históricos esteve na base de muitas visões do futuro urbano, perdeu alguma da sua proeminência ao nível da tomada de decisão política. Contudo, a investigação demonstra a contínua importância das relações entre a organização espacial, as questões de inclusão/exclusão social e a distribuição de recursos (e.g. Sharp, Pollock & Paddison, 2005). Em cidades europeias e especialmente em cidades americanas, as condições sociais em zonas empobrecidas contrastam fortemente com o estilo de vida opulento de outras zonas, com todas as implicações que isto tem nas sociedades, a nível de educação, emprego e cidadania. Além disto, o carácter cada vez mais multicultural de muitas cidades no mundo "(des)industrializado" levanta questões prementes no que diz respeito à etnicidade e à justiça espacial (e.g. Harvey, 1996; Paganoni, 2012).

A política urbana tem sido profundamente influenciada por um novo "discurso de crescimento" em todo o mundo (e.g. Jonas & Wilson, 1999). Num contexto de mobilidade acrescida, reestruturação do trabalho e "forças globalizantes", os responsáveis pela tomada de decisões salientam a necessidade de atrair investimento e capital para as cidades.[5] Reivindicam cidades competitivas num ambiente económico altamente competitivo. E para o serem, devem - de acordo com este discurso - atrair indivíduos empreendedores e projectos inovadores (Ni & Ji, 2014). A (então) nova política urbana (Cox, 1993) e a ideia de "cidade empreendedora" (Hall & Hubbard, 1998; Harvey, 1989) estão associadas a uma lógica de acumulação mercantilista. A "competitividade" e a "prosperidade" são os principais significantes neste discurso, que é fomentado por "coligações de crescimento" compostas por personalidades ligadas à construção civil, agências governamentais, representantes de governos municipais, entre outros. As entidades públicas subscrevem frequentemente uma filosofia laissez-faire no que diz respeito ao "livre mercado" (cf. Vojnovic, 2003).

As cidades têm, indubitavelmente, um enorme impacto ambiental a todos os níveis. A utilização de recursos e a produção de efeitos ambientais negativos estão concentrados espacialmente e são geralmente mais elevados per capita nas cidades do que em áreas rurais. Dadas as grandes pressões que as cidades exercem sobre os sistemas ambientais e a consciência das possibilidades limitadas de que estes dispõem, têm-se desenvolvido esforços significativos com vista à diminuição dos malefícios que as cidades causam aos sistemas naturais. Enquanto que tradicionalmente os espaços urbanos eram vistos como uma ruptura com a natureza, a atenção voltou-se progressivamente para formas de coexistência entre a cidade e a ecologia. Foi-se, portanto, desenvolvendo, desde há várias décadas, o interesse não apenas no papel da "cidade na ecologia" mas também no da "ecologia na cidade" (Næss, 2001) - ou seja, na especificidade da natureza na cidade. As exigências ambientais dos espaços urbanos e as possibilidades e desafios criados pela mescla de ambientes naturais e construídos conduziram a um "discurso de sustentabilidade", que tenta harmonizar crescimento económico, protecção ambiental e questões sociais (e.g. Frey, 1999; World Commission on Environment and Development, 1987). Este discurso está na origem de muitos regulamentos relativos aos transportes, ao ordenamento do território, à gestão de resíduos, etc., que foram sendo desenvolvidos a nível local, nacional e internacional. Contudo, o progressivo afastamento do Estado de vários processos de governação e a tendência para transferir responsabilidades, conduzindo deste modo os problemas ambientais para os cidadãos ou instituições privadas, pode dificultar as tentativas de resolução da actual crise ambiental, sujeita que está, continuadamente, a uma ideologia neoliberal orientada para o crescimento económico (Wanner, 2015). A "sustentabilidade" tornou-se um significante primordial mas parece frequentemente reduzir-se a um significante vazio, como refere Davidson (2010) numa análise de entrevistas e grupos focais com vários actores sociais em Vancouver.

Este artigo procura ilustrar o potencial dos conceitos analíticos formulados por Laclau e Mouffe para compreender a forma como determinados discursos se tornam hegemónicos e como são reconfigurados através de práticas de (re)articulação. [6] A análise do desenvolvimento histórico da governação urbana em Braga demonstrará a natureza contingente dos significados e das identidades, assim como o modo como posições de dominação são (re)construídas dentro de diferentes sistemas estabelecidos pelo discurso.

 

3. Braga: o projecto de "desenvolvimento" e a sua cadeia de equivalência

A recente história da terceira maior cidade do país foi marcada pelo facto do seu município ter sido controlado, entre 1976 e 2013, por um único partido e por uma mesma pessoa. De facto, Mesquita Machado subiu ao poder como Presidente da Câmara Municipal de Braga em meados da década de 1970 e foi reeleito nove vezes como candidato do Partido Socialista.

Através da sucessiva articulação e desarticulação de ideias e valores no seu discurso, Mesquita Machado defendeu um projecto específico para a cidade que moldou a sua expansão física e influenciou os estilos de vida e identidades dos seus cidadãos. Para se compreender a forma particular de política hegemónica de Braga, é necessário identificar as circunstâncias sociais e políticas em que esta se tornou dominante, o que também ajudará a explicar de que forma fronteiras antagónicas (Laclau, 2000) foram construídas e controladas.

Começaremos por uma breve síntese da história da cidade. Após dominarem a cidade celta de Bracai no século III a.C., os Romanos fizeram de Bracara Augusta a capital da região da Gallaecia. Após ter passado pelas mãos dos Suevos, Visigodos e Mouros, Braga recebeu um foral no séc. XVI. Desde então e até ao século XVIII, a cidade conheceu um período de intenso desenvolvimento da Igreja Católica através da construção de inúmeras igrejas, conventos e mosteiros. Com os seus numerosos locais de devoção religiosa, centros administrativos da Igreja Católica e instituições para o estudo da teologia, Braga é ainda hoje considerada um centro do Catolicismo. Do século XIX em diante, o objectivo de modernizar a cidade conduziu a uma grande vaga de construção de estradas, o que moldou a sua geografia. Contudo, faltou às autoridades locais uma visão integrada de longo prazo para a cidade que inviabilizou a implementação de políticas adequadas de planeamento urbano (Bandeira, 2002).

Após as longas décadas do Estado Novo, com a sua característica opressão política, limitação da liberdade e baixos níveis médios de instrução, o contexto revolucionário de 1974 propiciou uma série de possibilidades para a reconfiguração das relações sociais. Contudo, demonstrando a "impossibilidade de toda a 'objectividade'" (Laclau, 1990: 182), a transformação política de então provocou apenas uma (re)fixação parcial de relações sociais e identidades. A "revolução dos cravos" abriu caminho ao pluralismo democrático, ao ressurgimento de lutas de identidade, à redistribuição da riqueza e à concretização de muitos outros ideais. Contudo, à radicalização do campo político (Mouffe, 1993) nos primeiros anos após a revolução, seguiu-se um processo de desarticulação de muitos aspectos do projecto revolucionário. O país transformou-se progressivamente numa democracia neoliberal padrão.

O contexto político e económico de meados dos anos 70 era favorável à constituição de um projecto urbano de crescimento material e inclusão social. Mesquita Machado articulou esse contexto num sistema de relações centrado na ideia de "desenvolvimento" da cidade. "Desenvolvimento" tornou-se sinónimo de uma variedade de aspirações, representando entre outras coisas, a melhoria das condições económicas e habitacionais, bem como o acesso alargado à mobilidade.

O "desenvolvimento" transformou-se num ponto nodal, isto é, um significante capaz de fixar o significado de muitos outros significantes numa cadeia de equivalência. A partir de meados da década de 70, aliou construtores e moradores, ricos e pobres, unindo aparentemente os seus interesses. O desenvolvimento foi assim associado a uma visão "liberal" de acumulação de riqueza e transformação do espaço físico. Nas décadas de 80 e 90, a indústria de construção civil cresceu rapidamente surgindo um grande número de pequenas e médias empresas neste sector e nos seus associados. A construção civil foi em grande parte não regulamentada, devido à falta de estratégias concertadas de planeamento e à permissividade das autoridades municipais.

É possível fazer uma comparação entre o projecto de Mesquita Machado e o "discurso de crescimento" analisado na secção anterior. Um estudo de Wilson e Wouters (2003) de três cidades localizadas no rust belt do Midwest americano traçou as linhas gerais de um discurso que descreve o "promotor imobiliário como um salvador cívico" capaz de assegurar o futuro da cidade: "O promotor imobiliário é apresentado no discurso como um indivíduo omnisciente, inteligente, comum, cuja energia e espírito empreendedores não conhecem limites" (Wilson & Wouters, 2003: 124). Uma visão semelhante está presente numa declaração de 2002 do Primeiro-Ministro de então, António Guterres, que considerou que graças à "visão, ousadia e prestígio" de Mesquita Machado, Braga "sofreu um desenvolvimento ímpar" e era uma "referência a nível nacional" (Praça, 2002).

Desde cedo, a Câmara da cidade construiu discursivamente o "desenvolvimento" como um projecto de inclusão social e promoveu uma política de habitação ao alcance de todos, através da aquisição de terrenos para construção civil em vários pontos da cidade. Combinada com a dinâmica do mercado privado, esta política conduziu ao rápido aparecimento de blocos de apartamentos de tamanho médio, que resultaram de uma gestão casuística do espaço disponível. A falta de planeamento coordenado, combinada com os valores sociopolíticos da época, resultou no sacrifício de inúmeras infra-estruturas públicas tais como parques, jardins e outras instalações culturais e de lazer. A habitação acessível fez aumentar o fluxo populacional para a cidade, que por sua vez se traduziu numa oportunidade económica para a especulação imobiliária.

Como se pode depreender do que foi anteriormente referido, o "desenvolvimento" também significou "democracia social" e "solidariedade". Num folheto distribuído em 2001 aos habitantes de Braga, o Presidente da Câmara afirmou: "temos hoje uma ocupação democrática da cidade, onde todos os grupos sócio-económicos coabitam, onde todos têm um lugar", em contraste com outras cidades e seus "guetos (…), que são chagas iniludíveis" ("Braga, Terra Solidária", s.d.). Mesquita Machado terminou apelando a todos os cidadãos para se unirem a ele na procura de "um concelho mais desenvolvido, mais justo e mais solidário".

Esta comparação com outras cidades também é visível noutro folheto do mesmo período. Aí, Mesquita Machado enumerou uma série de "primeiros lugares" da sua cidade em comparação com outras. No texto, a ênfase era dada ao "desenvolvimento, de que todos nos orgulhamos" ("Braga, Terra de Progresso", s.d.). Numa extensão adicional da cadeia de equivalência, o "desenvolvimento" foi assim equiparado a ideias de competição interurbana. [7]

O desenho espacial de Braga - e os estilos de vida dos seus cidadãos - continuaram a ser fortemente marcados pela construção de estradas, também estas associadas a "progresso" e "desenvolvimento". Quando a via de cintura externa da cidade foi concluída, o Presidente dirigiu-se aos seus habitantes através de um folheto onde anunciava que "todos os Bracarenses (sem excepção)" estavam orgulhosos por esta obra. A figura 1 mostra um outdoor da Câmara Municipal com a imagem de uma rede de estradas e passagens superiores e o slogan: "Braga: uma aposta de sucesso". As imagens das várias estruturas viárias em Braga e em seu redor foram também utilizadas em muitos outros media com o intuito de promoverem a cidade.

 

 

Nas últimas três décadas, a mobilidade automóvel foi recorrentemente promovida, numa abordagem de tipo predict and provide que conduziu a um crescente aumento do trânsito (cf. Evans, Guy & Marvin, 1999). As zonas jovens da cidade são intersectadas por vias rápidas que faceiam áreas residenciais. Por outro lado, a vida tornou-se cada vez mais difícil para peões e ciclistas. Com o intuito de aumentar o fluxo de tráfego, as passadeiras e semáforos foram substituídos, em muitos casos, por passagens superiores. No entanto, estas parecem exercer um efeito dissuasor sobre muitas pessoas, o que se traduziu ao longo dos anos num elevado número de peões atropelados ao tentarem atravessar a estrada de forma insegura.

A hegemonia do projecto de "desenvolvimento" subverteu as diferenças entre condutores e peões, e entre condutores e ciclistas. O "homem-carro" (car driver hybrid) (Urry, 2004) foi construído como a posição do sujeito-padrão e as necessidades e direitos específicos de outros não foram reconhecidos. Através de uma lógica de equivalência, tanto as pessoas abastadas como as mais desfavorecidas foram agrupadas sob as mesmas categorias discursivas. Na verdade, são visíveis na cidade diferenças impressionantes entre as condições de vida dos diferentes grupos sociais mas as questões de justiça social da cidade continuam por debater de forma extensiva.

O outdoor na figura 1 e os que serão analisados posteriormente têm de ser observados no contexto da história social e económica local. Durante muito tempo, a construção civil foi essencialmente "contra a natureza", o que pode ser explicado pelo passado de privação vivido nas aldeias e pequenas vilas da região por muitos daqueles que se mudaram para a cidade. A memória viva da falta de condições de habitação, saneamento básico, água, electricidade e acessos rodoviários criou um desejo de "progresso" e de bens materiais. Nos termos de Laclau, podemos situar a "natureza" do outro lado da fronteira antagónica do projecto de "desenvolvimento", ou seja, do mesmo lado que a falta de mobilidade, isolamento e pobreza. Em suma, pode dizer-se que a principal cadeia de equivalência do discurso que sustenta este projecto incluiu, entre outros, crescimento material, inclusão social, (auto) mobilidade e competição interurbana.

Como indicado anteriormente, o "desenvolvimento" transformou-se num significante vazio capaz de simbolizar o que quer que seja (Laclau, 1996) [8] e num ponto nodal de um projecto hegemónico. Thomassen (2005: 10) defende que a análise da hegemonia deve averiguar "(…) qual o significante que assume a tarefa de representar o todo. Embora tal seja, em última análise, contingente, não é arbitrário. A capacidade de cada significante específico assumir ou ser susceptível de assumir esta tarefa não é a mesma porque ela ocorre num terreno já parcialmente consolidado, permeado por relações de poder."

O "desenvolvimento" foi certamente um poderoso significante no contexto social, económico e político de Braga. Contudo, como veremos posteriormente, até mesmo este discurso foi alvo de reconfigurações para conseguir assegurar a sua posição hegemónica.

 

4. Novo discurso de "crescimento verde"

Apresentando a contínua expansão física como desejável, o discurso de "desenvolvimento" subverteu diferenças entre presente (construção civil) e passado (património), crescimento e natureza, entre outras. Actualmente, a linha do horizonte em Braga é dominada pelo betão (ver figura 2). A alta taxa de construção exerceu grandes pressões sobre os terrenos adjacentes à cidade, causando elevados custos ambientais, visuais e estéticos.

 

 

Apesar da grande expansão do ambiente construído nas últimas décadas nenhum parque foi criado na cidade. As áreas verdes permaneceram limitadas a rotundas e a pequenas porções de terra entre estradas e edifícios de apartamentos. Braga e os seus arredores enfrentaram também vários outros problemas ambientais. O (pequeno) rio Este foi emparedado ao longo de toda a extensão que atravessa a cidade, de modo a tornar-se possível a construção de casas e estradas nas suas margens, com consequências estéticas e funcionais significativas (o desaparecimento do leito de cheia tem levado à ocorrência de cheias em edifícios adjacentes em períodos com pluviosidade mais intensa). O rio foi também objecto de descargas de esgotos a céu aberto em diversos pontos da cidade.

Confrontada com a oposição discursiva analisada anteriormente e com a crescente visibilidade dos discursos que defendem a protecção da natureza e do ambiente nos media e outras arenas, a partir de finais dos anos 90, sensivelmente, a Câmara Municipal tentou "absorver" estes discursos, apresentando-se como um agente pró-verde. O facto de a autarquia bracarense ter promovido os concursos "Janela florida" e "Varanda florida", em que eram atribuídos prémios aos proprietários das casas que exibissem flores mais apelativas, é um exemplo ilustrativo desta tendência. Estes eventos foram organizados pelo Pelouro Municipal do Ambiente e construídos discursivamente através de comunicados de imprensa e publicações como substitutos da política ambiental na comunicação pública da edilidade.

Num comunicado de imprensa de 2005, a Câmara Municipal legitimou o seu plano para a construção de um parque - ao qual seria dado o paradoxal nome de "Parque Urbano" - na parte norte de Braga, como se segue:

"Num mundo global, onde a competição pela geração e captação de iniciativas e projectos de desenvolvimento tem que ser assumida como uma função estratégica, as cidades necessitam dotar-se das funções urbanas necessárias à criação de um ambiente "amigável". O Parque Urbano de Braga/Norte, contemplando equipamentos multifuncionais, com valências desportivas, económicas e de lazer, integrados numa vasta área verde envolvente, e servidos por uma moderna rede viária, aporta novas capacidades infraestruturais e logísticas, que contribuem decisivamente para a consolidação de Braga como pólo de desenvolvimento do noroeste peninsular, aumentando, por esta via, a capacidade da cidade para a organização e realização de eventos, atracção de iniciativas empresariais e desenvolvimento de serviços centrados nas actividades desportivas e turísticas."

(Gabinete de Comunicação da Câmara Municipal de Braga, 2005)

Este excerto ilustra a fusão do "discurso de crescimento" (e o elevado valor que atribui à competitividade e ao empreendedorismo) com o discurso "verde". No discurso resultante, o ambiente é visto como útil na criação de "crescimento", mas também como constitutivo do mesmo.

As formas de articulação da economia e do ambiente, ou da prosperidade e da natureza, começaram a ser reconfiguradas, como observam While, Jonas e Gibbs (2004: 554), que defendem que "a relação entre o empreendedorismo urbano e a procura por uma solução para a sustentabilidade urbana está a tornar-se numa condição necessária da actual forma política e económica de urbanização no capitalismo". Estes investigadores consideram que qualquer solução para a "sustentabilidade urbana" se depara com inúmeras pressões contextuais, tais como imperativos económicos, directivas regulamentares, pressões de legitimação pública, intensa competição interurbana e reestruturação neoliberal do estado. Com base em Laclau, podemos afirmar que a ligação entre o empreendedorismo, a sustentabilidade e os outros aspectos supracitados é discursivamente criada e que consequentemente, o "discurso de sustentabilidade" é uma construção puramente contingente. A fixação dos significados é feita através de articulações particulares entre diferentes objectos num contexto sociocultural específico.

Na construção discursiva da Câmara Municipal de Braga, importantes questões ambientais, como os fluxos populacionais ou as políticas de transporte relacionadas com o parque e respectivas instalações não são reconhecidas nem debatidas. Pelo contrário, a Câmara salienta o facto de o parque estar rodeado por uma boa rede de estradas, construindo assim discursivamente a viatura própria como o meio de mobilidade de eleição. Isto tornou-se possível em termos culturais devido à história local do projecto de "desenvolvimento".

Um dos meios promocionais de eleição da Câmara foi o outdoor. Um dos slogans recorrentes durante muitos anos dizia que "É bom viver em Braga". A mensagem aparecia frequentemente em combinação com o brasão da cidade e/ou com a sua sigla ou designação integral. Nos exemplos das figuras 3 e 4, a Câmara Municipal associa a qualidade de vida na cidade aos seus hipermercados. Esta associação entre o poder político e o sector empresarial é naturalizada pelo sistema de relações criado pelo discurso de "desenvolvimento". A mensagem a passar seria a de que o governo municipal proporciona infra-estruturas de consumo aos moradores da cidade, o que, inerentemente, é apresentado como desejável.

 

 

 

Mais uma vez, a tendência foi para incluir a "natureza" no discurso dominante. Na figura 5, a mensagem de que os espaços verdes fazem de Braga um bom lugar para viver é transmitida pela imagem que foi seleccionada para o anúncio, pela faixa verde ao fundo e pelo logotipo no canto inferior esquerdo (a palavra Braga com folhas no topo).

 

 

A análise destas formas de comunicação demonstra que as fronteiras do discurso de "desenvolvimento" foram gradualmente reformuladas para assim absorverem a "natureza". Transformados num novo significante central, os "espaços verdes" não foram apenas associados a "crescimento" como também se tornaram parte do mesmo.

 

5. A articulação da "natureza" com o consumo de espaço

O discurso do sector empresarial na cidade de Braga passou por uma reconfiguração semelhante à que ocorreu na esfera política. Dados os objectivos deste artigo, a indústria de construção civil e as suas práticas publicitárias constituem um objecto de estudo verdadeiramente interessante. Esta indústria também utiliza frequentemente os outdoors como um instrumento de publicidade e comunicação, o que se pode explicar pelo facto de estarem colocados estrategicamente, no que diz respeito ao produto e às rotinas de mobilidade dos consumidores (Gonçalves & Pires, 2004; Pires & Gonçalves, 2004). As articulações discursivas feitas nos outdoors têm um poder significativo na construção da identidade do lugar, devido às relações espaciais que partilham com o local e edifícios circundantes e à sua integração particular num ambiente arquitectónico.

O rápido crescimento da indústria de construção civil culminou, em Braga, numa oferta excessiva do mercado imobiliário. Já em 2001, existiam 70.268 casas para 164.192 habitantes, com uma média de ocupação de 2,3 pessoas por casa. Mais de 10.000 casas encontravam-se desocupadas, com aproximadamente 6.000 para venda ou aluguer (Coentrão, 2004). Não obstante este facto, a indústria de construção civil continuou muito activa, e novos edifícios emergiram a todo o momento, com muitos a permanecer inacabados devido a dificuldades financeiras das empresas de construção. Num contexto de elevada concorrência e confrontada com (alguma) crítica devido à falta de espaços verdes, a indústria de construção civil reagiu apoderando-se da "natureza" como um argumento de vendas, como será demonstrado nos exemplos analisados abaixo. [9]

O outdoor na figura 6 divide-se em duas partes distintas, correspondendo sensivelmente a uma divisão entre imagem e texto. A parte esquerda exibe a imagem de uma floresta com um grande número de árvores. O verde, cor dominante, é realçado por tons alaranjados nas folhas de algumas das árvores e no solo. Na parte direita, um texto em letras verdes contrasta com um fundo branco no qual se pode ler:

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O termo "quinta" transmite conotações positivas, uma vez que se refere a uma propriedade com terras de cultivo e uma casa distinta, em muitos casos uma casa senhorial que pertence a uma família aristocrática ou abastada. Na sequência das alterações demográficas e da modernização das práticas agrícolas, muitas quintas antigas da região foram sendo vendidas a empresas de construção civil.

O local onde surgiu este projecto residencial chegou a fazer parte de uma quinta. Contudo, na altura em que o anúncio foi colocado, não havia já nenhum indício do que fora. Como a imagem demonstra, não há qualquer semelhança entre o referente e o anúncio promocional, visto que o local estava já rodeado por blocos de apartamentos. O que encontramos aqui é uma estratégia de marketing para evocar um passado e uma história espacial que, paradoxalmente, foram sendo suprimidos pelo produto que estava a ser comercializado - uma nova urbanização. Além disso, mesmo num passado (recente), a área assemelhar-se-ia mais a uma zona agrícola do que à cena na imagem. A imagem seleccionada é por isso totalmente arbitrária. O interesse desta reside na tentativa de fixar o significado do espaço e da experiência de viver nesse mesmo espaço através da associação a um ambiente verde idealizado.

Pode fazer-se uma análise semelhante do anúncio da figura 7. Situado numa área urbana, perto de um hipermercado e de um centro comercial, eram aí anunciados "Espaços quase florestais". Acima do texto está a imagem de um conjunto de moradias em banda de design moderno. Mais uma vez, as árvores retratadas no anúncio não existiam e seria pouco provável que crescessem no asfalto circundante. A escolha da estratégia de marketing pode estar novamente motivada pelo nome do local: "Urbanização Bouça da Fonte". "Bouça" é uma designação comum no Minho para um terreno com árvores (equivalente a "bosque"). A expressão pode ter sido adequada para este local num passado relativamente distante. Contudo, num passado mais recente, o terreno fora utilizado para cultivo.

 

 

Na figura 8, o anúncio é de "Condomínios pequenos rodeados de uma grande área verde". Graficamente, o meio ambiente está expresso na figura de um pássaro que descansa num ramo de árvore. Na altura em que a foto foi tirada, o espaço ainda se encontrava em desenvolvimento e não era evidente qual poderia ser o tamanho de uma "área verde", se de facto viesse a existir, mas era já uma realidade que os edifícios de apartamentos já existentes tinham sido construídos junto a uma estrada com quatro faixas de rodagem. A grande maioria dos espaços verdes estava nas encostas circundantes, ou seja, bastante longe, em lugares de difícil acesso e oferecendo apenas fruição visual.

 

 

A crítica de Laclau e Mouffe (1985: 166) "da categoria do sujeito unificado e o reconhecimento da dispersão discursiva em que cada posição do sujeito é constituída", fornece uma base conceptual útil para a análise da combinação das posições do sujeito apresentadas no anúncio da figura 6. Apela-se ao "chefe de família", interessado no bem-estar material e na posição social ligada à posse "exclusiva" e que, ao mesmo tempo, aprecia a natureza. O consumo é apresentado como a forma de concretizar todos estes desejos. Aliás, na maioria das sociedades, as práticas consumistas transformaram-se numa dimensão central das subjectividades sociais. A identidade tende a ser largamente definida por bens e pelo seu valor simbólico. A habitação própria (incluindo características como o tamanho, a localização e o design) tornou-se nitidamente num dos principais símbolos de posição social.

No que refere ao impacto dos discursos sobre o consumo, Laclau e Mouffe (1985: 163-4) salientaram que " (…) os discursos dominantes na sociedade de consumo apresentam-no como progresso social e avanço da democracia, na medida em que permite à vasta maioria da população o acesso a uma crescente diversidade de produtos (…) Abordados como iguais na sua capacidade como consumidores, os diferentes grupos são cada vez mais incitados a rejeitar as reais desigualdades que continuam a existir."

A publicidade é um dos principais fenómenos culturais associados ao consumo nas sociedades contemporâneas. Tem uma profunda influência na construção do significado. As estratégias de marketing para a articulação de identidades comerciais têm sido tão bem sucedidas que, nalguns casos, o produto transformou-se num "mero complemento da verdadeira produção: a marca" (Klein, 2000: 21). As imagens criadas por marcas como Apple e Calvin Klein evocam poderosas associações a valores sociais, estilos de vida e desejos. As dimensões conceptuais e semióticas eliminam a materialidade do produto. Os publicitários compreenderam o potencial simbólico da "natureza" e do "ambiente" e apoderaram-se destes significantes, transformando-os em ferramentas comerciais. "Publicidade verde" e "relações públicas verdes" passaram a ser negócios de milhões nas sociedades capitalistas (Nakajima, 2001).

Nos casos aqui examinados, a "natureza" é materializada pelo discurso publicitário e transformada num "objecto de desejo" alcançável com a aquisição de uma casa. Contudo, há uma ironia fundamental nestes exemplos, visto que o argumento de marketing utilizado pelas entidades ligadas ao sector imobiliário está na realidade a ser destruído pelas mesmas. Referindo-se a um processo semelhante, Linder (2006) mostrou como o valor semiótico do "aquecimento global" tem sido reformulado pela publicidade de tal forma que, ironicamente, contribui para promover o consumismo e o turismo. Isto ilustra a afirmação de Nash (2002) de que a "indecidibilidade constitutiva (da) articulação (de diferentes significantes) indica que a resignificação é uma possibilidade constante".

Vários estudos recentes ajudam a compreender a variabilidade fundamental do significante "natureza". Como foi ilustrado teórica e empiricamente por Macnaghten e Urry (1998), não existe "natureza". O termo tornou-se sinónimo de uma variedade de coisas distintas. O significado que lhe é atribuído dependerá do sistema particular de práticas discursivas e sociais em que funciona e, actualmente, existe uma grande diversidade de visões sobre a natureza. Num mundo profundamente transformado pela actividade humana, a "natureza" já não é apenas o ambiente natural/espontâneo, mas está profundamente integrada, de um modo material e simbólico, em sistemas sociais, culturais e económicos. Esta é a razão pela qual Castree (2000: 28) defende que a produção da natureza é "um processo contínuo em que a natureza e o capital se constituem mutuamente de formas variadas e incertas no tempo e no espaço". Dingler (2005) radicaliza esta leitura propondo um entendimento discursivo da natureza, que transcende o dualismo entre o simbólico e o material, e conceptualiza a natureza como o resultado de relações de poder.

As articulações políticas e comerciais da natureza e do ambiente que aqui discutimos podem estar relacionadas com um contexto discursivo mais alargado, no qual o "desenvolvimento sustentável" adquiriu um carácter hegemónico. A partir dos anos 90, o "desenvolvimento sustentável" transformou-se numa conceito nuclear, "forjando" um novo consenso que supostamente acabará com o conflito entre economia, sociedade e ambiente (Torgerson, 1995). O ambientalismo, que surgiu como uma importante luta social visando expor a relação antagónica do homem com a natureza e promover formas menos exploradoras de lidar com esta, tem sido controlado, em muitos aspectos, por uma variedade de forças sociais que o reconstruíram discursivamente de modo a reforçar todo um conjunto de outros projectos.

Laclau e Mouffe enfatizam que "as identidades são puramente relacionais" e que "não existe nenhuma identidade que possa estar inteiramente constituída" (1985: 111). As identidades no seu todo estão permanentemente abertas à reconstrução, o que se verifica em relação a indivíduos e instituições mas também a outras entidades, incluindo lugares. Como indicado anteriormente, a identidade da cidade de Braga vem sendo definida e redefinida através de práticas discursivas que se encontram em permanente desenvolvimento.

Investigadores e responsáveis por tomadas de decisão estão cada vez mais conscientes do papel preponderante das práticas discursivas na definição daquilo que uma cidade representa. Avraham (2000), McCann (2004) e Sikilington (1998), entre outros, analisaram o papel dos media na construção dos significados das cidades. Mazanti e Pløger (2003: 309) afirmam que "(c)onceitos como a identidade do lugar e o lugar de pertença desempenham (presentemente), um papel fundamental no actual planeamento urbano e em programas de recuperação urbana". Os decisores políticos tentaram "(re)formular a leitura e interpretação dos significados físicos e sociais" de determinadas comunidades, através de estratégias como a "historicização e a esteticização" (Pløger, 2001: 68).

 

6. Conclusões

Neste artigo, a relação entre política urbana, espaço e identidade foi reanalisada à luz dos conceitos analíticos propostos por Laclau e Mouffe. Compreende-se facilmente que o discurso político desempenha um papel constitutivo no que diz respeito aos espaços urbanos. Uma articulação específica das várias dimensões da (vida na) cidade encontra-se materializada em todos os tipos de disposições espaciais, como nos foi possível demonstrar no caso de Braga. Por sua vez, as decisões sobre o desenho espacial têm implicações significativas e de longo prazo para a "experiência urbana". Indivíduos, grupos e classes, bem como as relações entre eles, são afectados de diversas maneiras pelas decisões tomadas na configuração e usos do espaço.

A um nível de análise mais elevado, o presente artigo constitui uma tentativa de compreender a natureza relacional e contingente do significado e da identidade em espaços urbanos, e como estes funcionam numa lógica hegemónica, que é característica de todos os sistemas políticos. Em primeiro lugar, as características espaciais, tanto as construídas como as "naturais", só podem ser compreendidas situando-as no sistema de relações estabelecido pelo discurso. Vimos como o discurso de "desenvolvimento" da Câmara Municipal de Braga criou uma forma particular de inteligibilidade para a cidade e como a identidade do lugar foi definida e redefinida nesse horizonte de significado. Em segundo lugar, a contingência é uma característica fundamental de qualquer projecto hegemónico. Como "o momento (d)a sutura "final" nunca chega" (Laclau & Mouffe, 1985: 86), a constituição de uma ordem hegemónica é um processo contínuo. O significado é renegociado através das articulações e desarticulações em constante transformação. O forte domínio da posição política da Câmara Municipal de Braga sob a liderança de Mesquita Machado foi em larga medida explicado pela sua capacidade de adaptar e alargar as cadeias de equivalência criadas pelo seu discurso. Como vimos, redesenhou a fronteira antagónica definida pelo discurso de "desenvolvimento", para assim incluir a "natureza" no seu projecto hegemónico. O subsequente discurso de "crescimento verde" evitou o conflito fundamental entre crescimento económico e ambiente, unindo diferentes actores e agendas. O carácter mutável do significante "natureza" permitiu muitos tipos de rearticulações. Os discursos comerciais, por exemplo, tornaram o termo tão desprovido de sentido que este pôde ser utilizado para significar mesmo a "natureza como (presumivelmente) existia no passado".

 

 

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NOTAS

[1] Este artigo corresponde a uma tradução adaptada de um capítulo de livro publicado previamente: Carvalho, A. (2008) "Deconstructing a Portuguese city: cement, advertising and the hegemony of 'Green Growth'", in N. Carpentier, E. Spinoy (Eds.) Discourse Theory and Cultural Analysis. Media, Arts and Literature , CressKill: Hampton Press, pp. 179-206.

[3]Alguns trabalhos têm empregue a sua teoria política sobre agonismo e democracia radical (e.g. Lysgård & Cruickshank, 2013) mas são menos os que aplicam analiticamente a teoria do discurso proposta por esses autores.

[4]Laclau e Mouffe (1985) consideram que o significado depende de lógicas de equivalência e de diferença. Uma cadeia de equivalências suspende (temporariamente) diferenças entre vários significantes e torna-os equivalentes.

[5]O "discurso de crescimento" é frequentemente associado ao discurso da "cidade global" (ver Flowerdew, 2004).

[6]Como exemplo de outro tipo de análise discursiva de cidades, ver Paganoni (2012).

[7]Orgulho da cidade é um tema recorrente no discurso da Câmara Municipal.

[8]Numa análise semelhante, Jeffares (2004) demonstrou como "flourishing neighbourhoods" (zonas prósperas) se transformou num significante vazio nos discursos dominantes na cidade britânica de Birmingham.

[9]Os próprios nomes de várias empresas e edifícios expressam esta tendência para apresentar tudo como "verde": Norverde, Verdizela e Habitat 2000 são apenas alguns exemplos.

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