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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.31 Lisboa dez. 2015

https://doi.org/10.15847/citiescommunitiesterritories.dec2015.031.art05 

ARTIGO ORIGINAL

 

LABORATÓRIO DE CIDADANIA. Criatividade e resistência nas favelas da Maré

LABORATORY OF CITIZENSHIP. Creativity and resistance in the favelas of Maré

Otávio RaposoI

[I]CIES-IUL, Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. e-mail: raposao78@gmail.com.

 




RESUMO

As favelas da Maré destacam-se no Rio de Janeiro pelo grande número de ONG a oferecer atividades artístico-culturais para a juventude. Este contexto foi fundamental para a emergência de um dos mais influentes grupos de break dance da cidade, cuja habilidade e dedicação o autonomizou de professores e instituições formais. O uso do estilo para transpor as fronteiras fixadas por diferentes quadrilhas do tráfico de drogas é exemplar do modo criativo como os dançarinos resistem à violência e reclamam a liberdade de ir e vir entre as favelas da Maré, uma estratégia que está a ser reproduzida por outras culturas juvenis.

Palavras-chave: Juventude; Hip-hop; Favela; Etnografia; Cidadania; Criatividade.


ABSTRACT

The favelas (shanty towns) of Maré stand out in Rio de Janeiro by the large number of NGOs offering artistic and cultural activities for youth. This context was crucial to the emergence of one of the most influential groups of breakdancers in the city, whose skills and dedication allowed them to become autonomous from teachers and formal institutions. The use of life style to cross the borders imposed by the drug trafficking gangs is an example of how the creative dancers resist violence and demand the freedom to come and go between the favelas of Maré, a strategy that is being played by other youth cultures. In addition to exposing the cultural practices of these dancers, I narrate in this article the challenges of doing ethnography in a remarkably violent context and the experience of looking for house for lease in the neighborhood.

Keywords: Youth; Hip-hop; Favela; Shanty town; Ethnography; Citizenship; Creativity.


 

Introdução

Nas favelas da Maré viviam e ensaiavam os integrantes de um dos mais importantes grupos de break dance do Rio de Janeiro. Eles reuniam-se numa antiga fábrica abandonada, a Tecno, onde criavam performances e sociabilidades que os uniam em torno de um mesmo coletivo. Tornar-se um b-boy ou uma b-girl (dançarino e dançarina de break dance ) tinha um significado especial na vida desses jovens, pois era um eficiente recurso para a conquista de respeito e visibilidade. Por meio dessa nova identidade, buscavam uma singularidade capaz de contrariar as imagens estigmatizantes a que eram frequentemente associados, por morarem em favelas, serem maioritariamente negros e pertencerem a uma classe social desfavorecida. Ao circularem por outras regiões da cidade, para participar de campeonatos de break dance, projetavam com orgulho a imagem do bairro, reafirmando, através da linguagem corporal, que os seus moradores também tinham qualidades. Alargavam, assim, as redes de amizade e acediam aos múltiplos repertórios, saberes e estilos de vida presentes na metrópole. Também utilizavam aquele estilo de dança para transpor as barreiras fixadas por diferentes grupos armados que se enfrentavam regularmente pela hegemonia do tráfico de drogas na região.

Tomando como eixo de análise uma pesquisa etnográfica recente, o objetivo deste artigo será debater o modo como uma expressão artística – o break dance – produz identidade e proporciona aos seus praticantes parâmetros existenciais que lhes permitem romper com a atomização da vida urbana e ampliar suas visões de cidade, até então condicionadas pelas limitações de viver num território segregado e marcado pela violência.

 

Juventudes, estilos de vida e produções artístico-culturais

A ideia de juventude está naturalizada em nossa sociedade, ciclicamente apontada como fonte de determinados problemas sociais ou vinculada a um imaginário idílico de pureza e beleza. O desejo de manter-se jovem ou possuir uma aparência jovial contribui para o alargamento do seu espaço temporal, tornando a definição de juventude bastante complexa, principalmente quando ser jovem passa a ser um objetivo permanente (Vianna, 1997). Este imaginário de encanto e irreverência convive com outros que associam os jovens a um conjunto de patologias e estigmas – visualizados nos supostos comportamentos violentos e desviantes por eles assumidos –, designadamente quando se trata de jovens pobres, negros e/ou moradores de áreas vistas como desorganizadas ou problemáticas. Desde que a noção de juventude passou a ser reconhecida enquanto categoria de idade, na viragem do século XIX para o século XX, que a sua associação ao desvio e à incivilidade constitui uma prática recorrente (De Tommasi, 2013). A obra de G. Stanley Hall (2004[1904]) foi precursora na elaboração teórica desse tipo de abordagem, ao enquadrar a juventude no paradigma darwinista de evolução biológica. Sob este ponto de vista, a adolescência é entendida como um estado intermediário entre a infância e a idade adulta, cujos momentos de tensão, crise e conflito reproduziriam, em termos orgânicos, a suposta evolução do ser humano: da selvajaria à civilização (Feixa, 2006).

A juventude não é uma condição natural e universal do desenvolvimento humano passível de ser compreendida pela sua condição etária, mas uma construção sócio-cultural. O seu significado varia conforme o contexto, as épocas históricas e as características dos indivíduos em causa: classe, género, etnia, percurso biográfico. Deste modo, não será um abuso de linguagem agrupar um conjunto tão vasto e heterogéneo de indivíduos numa mesma categoria? É esta a opinião de Pierre Bourdieu (2008) para quem a juventude constitui apenas uma palavra. Segundo o autor:

"a idade é um dado biológico socialmente manipulado e manipulável; o fato de se falar dos jovens como uma unidade social, como um grupo constituído, dotado de interesses comuns, reportando esses interesses a uma idade definida biologicamente constitui, desde logo, uma manipulação evidente. (...) é por um formidável abuso de linguagem que podemos reunir sob um mesmo conceito universos sociais que não têm praticamente nada em comum." (2008:145)

Torna-se obrigatório pluralizar juventudes para pôr em evidência diferentes maneiras de viver a condição juvenil e trazer à discussão a heterogeneidade de estilos de vida, valores e padrões culturais, além de trajetos e projetos distintos e não-lineares. Para contrariar uma visão essencialista do termo, importa analisar a juventude como "uma posição" a partir da qual se concebe e se vive num mundo em permanente mudança (Canclini, Cruces e Pozo, 2012:9). Se as fronteiras que marcam a entrada na vida adulta estiverem ligadas, por exemplo, ao ingresso no mercado de trabalho, à saída da casa dos pais e ao nascimento dos filhos, a ideia de que houve um prolongamento do estatuto juvenil ganha relevância.

A antiga trajetória linear rumo à idade adulta converteu-se numa trajetória sem direção definida, marcada por reversibilidades. Esta é a perspetiva de Enrique Calvo (2011) quando advoga que a trajetória juvenil deixou de ter um estatuto teleológico (o autor denomina "seta do tempo") para adquirir um sentido indeterminado, circular e prisional nos dias de hoje . Maria Guerreiro e Pedro Abrantes (2004) partilham tal apreciação e denominaram "transições incertas" este novo padrão de ingresso na vida adulta, cuja natureza tende a ser trespassada por riscos e retrocessos. Esta perspetiva já tinha sido objeto de análise de José Machado Pais (1994), que usou a metáfora "geração ioiô" para caracterizar os constantes movimentos de vai e vem dos jovens de hoje: mudam de trabalho constantemente (o que é agravado pela precariedade generalizada); interrompem os estudos (que podem ser retomados posteriormente); os namoros seguem o ritmo da paixão do momento e só ocasionalmente convertem-se em casamento. Não obstante, o que vários autores (Calvo, 2011; Feixa, 2011; Guerreiro e Abrantes, 2004; Pais, 2001; Lopes, 2000;) concluem é que os processos de transição para a vida adulta são múltiplos e variados, influenciados pelas condições materiais de existência, mas abertos ao sujeito reflexivo e inventivo capaz de dar uso às suas capacidades criativas para alargar os seus "campos de possibilidades" (Velho, 2004).

A noção de juventude como fase de vida ou período particular de desenvolvimento humano passou a existir quando uma série de dispositivos de controlo foram impostos a uma determinada faixa etária, distinguindo-a das demais. Intimamente relacionadas com os processos de construção do capitalismo, as mudanças operadas no seio da família, da escola, da igreja, do exército e do trabalho delimitaram e segregaram a juventude, conferindo-lhe, pela primeira vez, uma "consciência geracional" (Feixa, 1999:37). Separados das outras faixas etárias pelas várias instituições que visavam prepará-los para as responsabilidades do mundo adulto, os jovens passaram a conviver mais entre si, ao mesmo tempo que lhes era legitimado um tempo de moratória social . Um setor considerável da juventude urbana foi afastado da plena participação na esfera produtiva, nomeadamente nos EUA e na Europa, o que também significou serem postos à margem do poder. De fato, para Bourdieu é esta desigualdade que fundamenta a noção de juventude, cuja fronteira com a idade adulta constrói-se mediante um jogo de forças entre gerações (2008:153). Este "diferencial de poder" condiciona as vivências e atitudes dos jovens em diversas esferas sociais (Becker, 2008:29) – quando são obrigados a seguir regras impostas e não negociadas – e legitima os comportamentos entendidos como adequados, em detrimento daqueles rotulados como desviantes, passíveis de sanções. De modo contrário, o lazer costuma ser o domínio, por excelência, dos jovens, um espaço onde gozam de intensa autonomia, em que são os detentores do poder, nem que seja imaginário. Todo este cenário de mudanças alterou os padrões de socialização e conferiu um maior relevo aos grupos de pares nos processos de socialização e construção identitária. Na medida em que deixam de se rever totalmente nos espaços controlados pelos adultos, os jovens buscam abrigos relacionais e simbólicos entre os seus iguais, onde forjam estilos de vida próprios e identidades inovadoras. É essa a opinião de José Machado Pais quando refere que a "produção de subjetividades galga as fronteiras dos lugares específicos das instituições" (2001:404).

A invasão do quotidiano pelo simbólico acentuou a ligação dos processos de construção identitária e de formulação de subjetividades aos estilos de vida e a modos particulares de se relacionar com a estética. O desenvolvimento de uma próspera indústria de lazer e a multiplicação das culturas juvenis intensificaram a relação entre música, visual e estilo de vida, naquilo que Featherstone chamou de "estetização da vida quotidiana" (1995:97). Atualmente, são muitos os trabalhos a priorizar o estudo dos jovens sob a ótica dos estilos de vida. Estes seriam manifestações de culturas juvenis específicas, construídas coletivamente através das experiências sociais dos seus integrantes, nas quais um conjunto de símbolos materiais e imateriais representariam a sua identidade enquanto grupo, delimitando fronteiras intergrupos e expressando valores comuns e identitários (Feixa, 1999). São espaços privilegiados de criatividade e de afirmação dos jovens como sujeitos sociais, em que o tempo lúdico adquire uma forte importância não só na elaboração de projetos individuais e coletivos, mas também na mediação com outros mundos sociais, inserindo na cena pública as suas práticas artísticas e estéticas, as suas contradições e angústias. Para Gilberto Velho, o estilo de vida atua para um determinado segmento social como "(...) forma de expressar sua participação em um sistema de relações simbólicas e significativas mais abrangentes que denominamos cultura e de que participam outros segmentos que podem ser distinguidos de n maneiras em termos de sua inserção na sociedade." (2004:84)

Ao longo do século XX, principalmente após a 2ª Guerra Mundial, esse modelo de juventude, até então restrito à burguesia da Europa e dos EUA, alargou-se a jovens de ambos os sexos das classes menos abastadas e de áreas rurais, inclusive em países periféricos – o Brasil é exemplo dessa ampliação. As vertentes artística e cultural, antes vedadas às camadas populares, consideradas uma grande amálgama de indivíduos "não-instruídos e não-cultivados", deixou de ser exclusiva das elites (Lopes, 2000:18). Isto é bastante claro nalgumas áreas onde vivem as classes subalternas – geralmente favelas e periferias urbanas –, cuja efervescência cultural é responsável por gerar parte substancial das novidades musicais, estéticas, linguísticas e de dança. Muitos dos jovens desses bairros deixaram de ser meros consumidores para transformarem-se em ativos produtores culturais, quando apropriam-se das expressões artísticas não apenas por divertimento, mas também para redefinir as suas identidades coletivas, reclamar direitos e afirmar um modo específico de viver a juventude. Ao circularem pela cidade, as suas produções artístico-culturais trazem à baila preocupações, vivências, imaginários e alegrias, criando um espaço comunicacional que frequentemente transpõe as barreiras etárias, geográficas e de classe. Embora a indústria cultural não tenha deixado de ser desigual – a esfera de produção continua a selecionar os seus consumidores e a impor mecanismo de hierarquização –, tornou-se frequente o mesmo produto ser consumido por públicos distintos (Eco, 1987). Ora, o sujeito social de gostos díspares, adepto de estilos de vida contrastantes, ultrapassando os rígidos marcadores classistas, impõe-se em maior número. As práticas e os consumos culturais continuam a ter enraizamentos estruturais, mas no contexto das sociedades complexas esses processos diversificaram-se consideravelmente, impulsionados pelas facilidades no acesso aos dispositivos tecnológicos e redes digitais. Os jovens pobres não são imunes à crescente exposição aos meios de comunicação de massa, ao maior contacto intercultural e à diversificação dos círculos de sociabilidade. As claras homologias entre origem social dos indivíduos e escolha cultural ou produção e consumo perderam parte do seu sentido explicativo, contrariando a ideia de que os jovens das classes desfavorecidas são todos iguais, imóveis às suas condições materiais de existência. Daí que o seu poder criativo não se limite a mimetizar produções oferecidas pela indústria cultural e pela classe dominante.

 

Metodologia

A metodologia privilegiada para esta pesquisa foi a etnografia, baseada, em larga medida, na observação participante, na realização de entrevistas e no uso de um diário de campo. É sabido que este método permite olhar a realidade "a partir de dentro", um processo que exige do investigador uma prolongada imersão no terreno e o contato direto com os pesquisados (Ferrándiz, 2011; Burgess, 1997). O envolvimento íntimo e respeitoso com as pessoas que estuda é uma das tarefas do etnógrafo, cujo objetivo é apreender vivências e visões de mundo diversas, não para reproduzir acriticamente o ponto de vista "nativo", mas para transformar essa experiência de alteridade num conhecimento novo sobre os mundos culturais onde transita. Este é o ponto de vista de José Magnani, para quem a etnografia configura-se como "forma especial de operar em que o pesquisador entra em contato com o universo dos pesquisados e compartilha seu horizonte, não para permanecer lá ou mesmo para explicar ou interpretar a lógica de sua visão de mundo, mas para segui-los até onde seja possível e, numa relação de troca, contrastar suas próprias teorias com as deles e assim tentar sair com um modelo novo de entendimento ou, ao menos, com uma pista nova, não prevista anteriormente (2009:104).

Uma das particularidades da etnografia é que as informações recolhidas estão dependentes não apenas daquilo a que o pesquisador se propõe a priori, mas, efetivamente, das relações que ele consegue estabelecer no campo. São as práticas, relações e situações que o próprio investigador vive e observa na primeira pessoa, muitas delas só possíveis por via do estabelecimento de uma relação pessoal e duradoura com o investigado, que imprime o caráter etnográfico nos conhecimentos produzidos.

Durante a investigação, procurei aproximar-me dos dançarinos de break dance da Maré com o intuito de construir uma relação de confiança e obter interlocutores privilegiados, objetivo alcançado por via de uma intensa etnografia no terreno. Ao fazer trabalho de campo de Julho de 2009 a Dezembro de 2010, período em que visitava a Maré entre três a quatro vezes por semana, pude conhecer de forma aprofundada as práticas culturais e os estilos de vida dos dançarinos do bairro, bem como as sociabilidades e a segregação quotidiana vivida por eles.

Ao mesmo tempo em que me familiarizava ao bairro, frequentei os ensaios de break dance na Tecno, o que me ajudou a criar uma rotina de trabalho e observação. O break dance ocupava um lugar central na vida dos dançarinos, sendo o principal elo de ligação entre eles. Por esta razão decidi treinar break dance , uma forma de me inserir nas dinâmicas de grupo, acelerar a conquista de confiança e partilhar a mesma "dimensão carnal da existência" (Wacquant, 2002:11). Esta opção metodológica vai ao encontro da perspetiva de Philippe Bourgois, quando afirma que na observação participante cabe ao pesquisador desempenhar um "papel social legítimo" no interior da realidade que se pretende estudar (2006:28). A opção de treinar break dance trouxe benefícios à pesquisa porque não é apenas o investigador que observa o investigado, o inverso também é verdadeiro. E a qualidade do que se observa não é captada exclusivamente pelo olhar do investigador, existe uma mediação na relação que ambos estabelecem.

Para além de uma presença constante nos ensaios, momentos densos de sociabilidade e valor simbólico, observei também as relações que os jovens desenvolviam com as instâncias sociais em que estavam inseridos, como família, escola e trabalho. Ora, eles não eram apenas b-boys ou b-girls da Maré, mas também filhos, pais, amigos, estudantes, trabalhadores e habitantes de uma cidade plural. Daí a necessidade de evitar "folclorizar" o quotidiano dos jovens, pois eles acumulavam um conjunto de papéis sociais que variavam conforme o contexto e a situação específica.

Embora conhecesse todos os b-boys da Maré e pudesse entrevistá-los – eram mais de trinta jovens –, optei por um número menor de entrevistas em benefício da profundidade, tendo selecionado aqueles que desempenhavam papéis de destaque nas sociabilidades do grupo. Entrevistei quinze dançarinos da Maré e dezassete pessoas entre antigos moradores, membros e dirigentes de ONG e representantes locais das favelas . Inicialmente, fiz entrevistas exploratórias com alguns jovens, tanto individualmente como em grupo. Num segundo momento realizei entrevistas semidirigidas (aprofundadas) a quinze jovens, tendo selecionado nove deles para aplicar o método biográfico.

 

Radiografia de uma favela

AA favela é parte integrante do processo de urbanização do Brasil, e a sua emergência deve ser enquadrada no contexto de ausência de políticas habitacionais direcionadas para as populações das classes desfavorecidas, numa época em que as principais cidades cresciam a um ritmo vertiginoso . No século XX, em especial na sua segunda metade, milhões de pessoas migraram do interior para as cidades – especialmente do Nordeste para o Sudeste – para fugir da fome e das más condições de vida. Em cerca de 40 anos, o Brasil tornar-se-ia um país urbano, invertendo a relação urbano / rural, naquele que foi um dos maiores movimentos populacionais da história da humanidade. Se em 1940 os moradores das cidades eram aproximadamente 30% do total do país, esta percentagem cresceu para 68% quarenta anos depois, atingindo a fasquia de 84,4%, em 2010, segundo os Censos do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE). Esta intensa urbanização produziu um crescimento caótico das cidades, a explosão de favelas e o agigantar das periferias urbanas. Hoje, o município do Rio de Janeiro tem mais de seis milhões de habitantes , dos quais aproximadamente 23% (Cavallieri e Vial, 2012) vivem numa das suas 763 favelas .

Na figura 1 é possível visualizar a distribuição das favelas na cidade do Rio de Janeiro (em manchas vermelhas), assim como identificar as favelas da Maré, cujos limites, por mim acrescentados, estão em amarelo.

 

 

Mais de cento e quarenta mil pessoas habitam as dezasseis favelas que formam a Maré (Redes, 2014), naquele que é considerado um dos maiores conjuntos de favelas do Rio de Janeiro. Localizada junto a uma área de mangue da baía de Guanabara, nas proximidades do Aeroporto Internacional, a Maré é circundada por duas importantes vias expressas – Avenida Brasil e Linha Vermelha –, e ocupava a quarta pior posição no índice de desenvolvimento humano (IDH) entre as 126 áreas administrativas da cidade em 2010. Com renda familiar e escolaridade abaixo da média, a população da Maré é composta, maioritariamente, por negros e migrantes nordestinos que ocupam posições subalternas na divisão social do trabalho.

Apesar disso, as situações de pobreza na Maré coexistem com um vigor comercial demonstrado pelos produtos e serviços modernos oferecidos (escritórios de advocacia, imobiliárias, clínicas médicas, lojas de material informático, academias de ginástica, agências de viagens, gelatarias ), que se contrapõem à visão simplista de que as favelas teriam exclusivamente uma função de moradia e os seus moradores seriam todos miseráveis. A existência de um grande número de comerciantes e proprietários de imóveis – alguns fizeram da verticalização das suas casas um bom negócio – é demonstrativa da relativa diversidade económica do bairro . Por outro lado, as múltiplas culturas juvenis presentes na Maré – b-boys, grafiteiros, funkeiros, marombeiros (praticantes de musculação), skatistas, rappers, rockeiros, emos, capoeiristas, sambistas – jogam um papel de destaque na sua ressignificação. Tais dinâmicas configuram circuitos culturais e trocas simbólicas com a cidade mais ampla que contrariam o isolamento que se pretende para as favelas, para além de negar os pressupostos equivocados de ausência, pobreza e homogeneidade a que esses territórios são constantemente associados (Valladares, 2008; Silva e Barbosa, 2005).

 

 

Inicialmente, a Maré era formada por seis favelas, em sua maioria ocupações espontâneas ou planeadas: Morro do Timbau, Baixa do Sapateiro (as suas primeiras construções datam da década de 1940), Parque Maré, Parque Rubens Vaz e Parque União (1950) e Nova Holanda (1960). A implantação do Projeto Rio, no princípio da década de 1980, viria dotar a Maré de infraestruturas básicas (água, eletricidade, instalações sanitárias, pavimentação), erradicando as palafitas que dominavam a paisagem do bairro. A população das palafitas foi realojada em conjuntos habitacionais construídos numa área aterrada próxima às favelas de origem, dando origem a novas localidades: Vila do João, Vila do Pinheiro, Conjunto Pinheiro e Conjunto Esperança (Vieira, 2002; Jacques, 2002). O decreto que criava a 30ª Região Administrativa da Maré, em 1988, agregou novas localidades ao bairro: Conjunto Marcílio Dias, Parque Roquete Pinto e Praia de Ramos. Posteriormente, outros conjuntos habitacionais foram construídos para abrigar famílias removidas das áreas consideradas "de risco" (encostas de morros, margens inundáveis de rios): Conjunto Bento Ribeiro Dantas (1992), Nova Maré (1996) e Salsa e Merengue (2000).

A Maré integra uma área de 426,9 hectares com mais de 40 mil domicílios . Esta imensidão obrigou-me a fazer um recorte etnográfico, também motivado pelos constantes confrontos armados entre as quadrilhas do tráfico de drogas que disputavam o domínio do bairro. Centrei o trabalho de campo nas localidades controladas pelo grupo criminoso Comando Vermelho, designadamente nas favelas Parque União e Nova Holanda, territórios por excelência das sociabilidades do grupo. Na fase inicial do trabalho de campo três fações do tráfico de drogas e uma milícia dominavam distintas localidades da Maré:

  • Comando Vermelho (CV): Parque União, Parque Rubens Vaz, Nova Holanda e Parque Maré.
  • Terceiro Comando Puro (TCP): Baixa do Sapateiro, Nova Maré, Morro do Timbau, Conjunto Bento Ribeiro Dantas, Vila do Pinheiro.
  • Amigos dos Amigos (ADA): Conjunto Pinheiro, Salsa e Merengue, Vila do João e Conjunto Esperança.
  • Milícia : Conjunto Marcílio Dias, Parque Roquete Pinto e Praia de Ramos.

O clima de opressão e medo derivado dos constantes embates armados entre os grupos criminosos, acrescido da ação truculenta da polícia, intensificava a segregação a que historicamente os moradores da Maré foram relegados. Os jovens eram os mais atingidos pela "experiência de confinamento territorial", por serem facilmente acusados de integrar grupos criminosos adversários (Machado da Silva, 2008:13). O medo de sofrerem agressões caso fossem considerados "X-9" (informante) ou "alemão" (inimigo) fazia com que a esmagadora maioria dos jovens circulasse apenas no perímetro correspondente à área de influência da quadrilha atuante na sua vizinhança. Ou seja, raros eram os jovens capazes de visitar favelas sob o jugo de uma fação rival à da sua área de residência. O receio de atravessar a fronteira não era imaginário, e alimentava-se da ostensiva exibição de armas, dos tiroteios frequentes e de boatos que desestimulavam o direito de ir e vir.

 

Arte e cultura legitimam a circulação dos dançarinos da Maré

Mais de trinta dançarinos frequentavam regularmente a Tecno, uma antiga fábrica abandonada da favela Parque União, que se transformou no principal point para a prática do break dance na Maré. A arrojada sociabilidade vivida pelos b-boys do bairro nesses ensaios chamou-me a atenção desde o primeiro instante, pois a aprendizagem não era mediada por nenhum professor ou pessoa exterior ao grupo. Eram os próprios jovens que dinamizavam os treinos do início ao fim: decidiam desde o horário e a regularidade dos ensaios até as músicas ouvidas e os movimentos ensaiados, além de apoiar os "novatos" na aprendizagem da dança. A liberdade gozada pelos jovens na Tecno foi decisiva para a escolha deste grupo como o centro da pesquisa, uma "janela" privilegiada para ter acesso às suas sociabilidades, práticas culturais e redes de amizade. Mais do que apenas dançar, eles aproveitavam-se desta autonomia para estabelecer entre si uma sociabilidade inovadora e criar um estilo de vida específico baseado na mobilização de imaginários, identidades coletivas e estéticas ligadas ao "mundo b-boy". Ao mesmo tempo em que se demarcavam dos adultos e de outros grupos juvenis, numa permanente clivagem e oposição entre "nós" e "eles", preenchiam de forma criativa os "vazios" deixados pelas tradicionais instâncias socializadoras: escola, trabalho, família, religião. Não que estas tenham deixado de exercer forte influência, mas na contemporaneidade a participação dos jovens em territórios simbólicos mediados pelas redes amicais adquiriu uma intensidade inédita. Principal componente identitário desses dançarinos, o estilo de vida b-boy fornecia conteúdos, valores e ideologias para a formulação de uma identidade coletiva. Informações e materiais performáticos eram incentivados, servindo também de paradigma cultural para interpretarem o mundo à sua volta, organizarem a trajetória pessoal e delinearem estratégias de conduta perante os desafios enfrentados.

O grupo era muito jovem, tinha entre 16 e 21 anos de idade, e formado quase exclusivamente por rapazes. Janaína era a única exceção, uma b-girl de 16 anos que conheceu o estilo no morro do Timbau, onde mora. Embora os dançarinos da Maré fossem de uma classe social baixa, a maioria não pertencia aos extratos mais pobres do bairro. Pelo contrário, integravam núcleos familiares estáveis em que os pais trabalhavam regularmente, embora em posições marginais na divisão social do trabalho: eram cozinheiros, pedreiros, pintores, motoristas, copeiros, costureiras, diaristas ou técnicos de enfermagem. Quase todos os dançarinos trabalhavam e/ou estudavam na altura da pesquisa, sendo poucos os que faziam parte da chamada "geração nem-nem": não trabalhava nem estudava. Por toda a Maré assistia-se a uma forte afinidade nas sociabilidades juvenis entre brancos, negros e mestiços, sendo comuns os casais mistos. Essa amálgama de tons de pele também era visível nos ensaios da Tecno e revelava uma certa indiferença dos jovens às distinções "raciais". Assim, todos conviviam entre si sem se importar com as diferenças de cor de pele.

Respeitados entre os adeptos de break dance da cidade, os dançarinos da Maré eram polos de referência no circuito carioca de hip-hop, uma façanha conquistada pelos seus bons desempenhos em campeonatos e eventos de dança. Não por acaso, os treinos da Tecno eram muito prestigiados, reunindo uma grande quantidade de dançarinos, alguns vindos de outros bairros e municípios Embora menos frequentes, até estrangeiros frequentavam a Tecno. Esse intercâmbio era muito valorizado, pois incrementava a troca de informações e a conexão com o circuito "glocal" de hip-hop, além de conferir notoriedade aos b-boys da Maré, "cicerones" daqueles que vinham ao bairro treinar. Essa partilha dava aos jovens a sensação de pertencerem a uma consagrada cultura global, um orgulho manifestado em performances e declarações:

"Eu falar que sou b-boy para mim é tudo. Falar assim: «Eu sou b-boy», eu estou falando: «é minha vida». Entendeu?! B-boy é minha vida porque é uma coisa que eu vivo, entendeu? Está no meu dia a dia. Então não tem como não ficar com orgulho de falar." Duda, 20 anos. Entrevista, 8 de fevereiro de 2010

A difusão do break dance na Maré deveu-se a Luck e Reis, antigos professores de alguns dos dançarinos da Tecno. Eles levaram a dança para a Maré em 2001, quando foram contratados pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM) para dinamizar um projeto de hip-hop em escolas públicas da região. Ao darem aulas de break dance e graffiti em várias escolas da Maré, Luck e Reis incentivaram a formação de vários núcleos de dançarinos no bairro. Os mais importantes foram criados na Nova Holanda, no morro do Timbau e na Vila do João, onde havia ONG a desenvolver projetos culturais e artísticos direcionados para a juventude.

  • Nova Holanda: a oficina de break dance promovida pelo CEASM , dinamizada por Luck e Reis, consolidou um grupo de empenhados dançarinos que, anos mais tarde, passaram a ensaiar na Tecno.
  • Morro do Timbau: as aulas de street dance no Museu da Maré deram origem a um grupo de dançarinos que se aproximou, mais tarde, do break dance.
  • Vila do João: um projeto de hip-hop levado a cabo pela ONG Ação Comunitária do Brasil foi o responsável pela emergência de dançarinos de break dance na Vila do João e noutras favelas vizinhas. Diferente dos anteriores, este núcleo não contou com a influência de Luck e Reis.

Inicialmente, os dançarinos desses três núcleos não se comunicavam entre si, por estarem estes localizados em favelas dominadas por quadrilhas rivais: Nova Holanda (CV), Morro do Timbau (TCP) e Vila do João (ADA). Constrangidos a não circular nas favelas controladas por outros grupos criminosos, os dançarinos detinham uma visão limitada do bairro. No entanto, os encontros de hip-hop em diferentes favelas da Maré organizados por Luck e Reis, associados ao incentivo dado por esses professores para que os jovens contrariassem a fragmentação imposta, permitiu-lhes fintar alguns dos mecanismos de controlo.

"Antes de dançar eu era muito focado aqui na comunidade da Nova Holanda e não ia para mais lado nenhum porque eu tinha esse medo de atravessar, porque eu via muitas pessoas que passavam daqui para lá: tive uns amigos que morreram. E por lá ser outra fação havia esse medo todo, as pessoas falavam muita coisa: fulano morreu porque passou para lá. Depois que eu comecei a dançar teve uma troca de território: eu saía daqui da Nova Holanda para ir ao morro do Timbau para treinar. Os treinos aqui eram só terças e quintas-feiras e lá o treino rolava todos os dias. E eu tinha vontade de treinar mais, eu queria ficar bom. Então eu tinha de passar para lá." Duda, 20 anos. Entrevista, 15 de dezembro de 2010

A vontade de frequentar outros locais de treino para dançar mais assiduamente motivou os jovens a romper os bloqueios exercidos pelos traficantes. Aos poucos foram ganhando coragem para frequentarem os ensaios uns dos outros, incentivados pelos professores que faziam das suas próprias trajetórias exemplos a seguir. Como relembrou Weltom:

"Esses professores foram conversando comigo, contando que eles moravam na Rocinha e davam aula na Nova Holanda, Baixa do Sapateiro, praia de Ramos. Aí eles explicavam que não valia a pena ficar com medo: "Você sabe conversar, então vai explicar a situação todinha que está acontecendo. Você não é traficante, você é morador, você é trabalhador, você está fazendo uma coisa boa para divertir as pessoas, entendeu?!". Depois dessas conversas a gente foi quebrando esse preconceito, essa parede, essa barreira, e hoje eu transito tranquilamente pela Maré inteira." Weltom, 18 anos. Entrevista, 29 de julho de 2009

À medida que aprofundavam a relação com o break dance e organizavam apresentações públicas nas ruas da Maré para publicitar o estilo de dança, passaram a ser reconhecidos pelos traficantes locais, ganhando legitimidade para transitar entre favelas consideradas adversárias. Nesse processo houve um redesenhar das redes de amizades dos dançarinos, o que culminou na unificação dos núcleos da Nova Holanda e do morro do Timbau . Quando os conheci, no âmbito desta pesquisa, não havia qualquer clivagem entre eles devido a diferenças territoriais, e o principal local de treino foi transferido do morro do Timbau para a Tecno (no Parque União). Integravam o mesmo coletivo jovens que viviam em favelas dominadas por várias quadrilhas criminosas, como Nova Holanda, Parque União, Parque Rubens Vaz, morro do Timbau, Vila do Pinheiro e Praia de Ramos. As camisas de cores berrantes, os bonés de abas planas e os ténis de griffe eram alguns dos marcadores culturais a unificar o grupo num mesmo estilo juvenil, servindo também como elementos de diferenciação com outras "tribos urbanas ".

A estratégia de acionar diferentes pertenças como recurso para minimizar a subordinação e os desmandos das quadrilhas criminosas não era uma exclusividade desses dançarinos. Outros grupos de jovens deslocavam as fronteiras impostas pelo tráfico através da apropriação de expressões artísticas, quando certos marcadores culturais eram evocados para fazer sobressair determinados estatutos: grafiteiro, capoeirista, skatista ou b-boy. Este era o caso de Rômulo, 17 anos, que, ao levar consigo o "carrinho" (skate), era reconhecido como skatista pelos traficantes, o que lhe permitia transitar com relativa segurança por toda a Maré. Ele conheceu o hip-hop em 2005, ao frequentar uma oficina de graffiti dinamizada por Reis na sua escola. Até então, o quotidiano de Rômulo era restrito à Vila do Pinheiro e às favelas adjacentes dominadas pela mesma fação do tráfico de drogas. Não ousava ir para localidades sob o domínio de quadrilhas rivais, um medo que lhe foi incutido desde criança, quando colegas da escola diziam: "Os garotos da Nova Holanda se te pegarem vão querer te matar". A participação em exposições de graffiti na Nova Holanda e no morro do Timbau, com alunos vindos das várias favelas do bairro, fez com que Rômulo transpusesse algumas das barreiras que limitavam as suas sociabilidades a um território específico. Rômulo tornou-se reconhecido pelos bandidos em função do graffiti e do skate, práticas culturais que legitimam a sua circulação por todo o bairro. Como explica, o importante é ter justificação para esses deslocamentos:

"Se algum bandido me parar em qualquer lugar, eu vou explicar e ele vai entender, com certeza, mas isso é um privilégio para poucos. (...) Agora, de bobeira, raramente ando. Não saio de rolé [andar à toa] cortando a Maré. Até um tempo atrás nêgo era parado fácil: «Qual é mané, tu é da onde?», «Sou de tal lugar», «Tá fazendo o que aqui», «Tou de rolé», «Tá de rolé? Como assim tá de rolé?!». É assim parceiro, tem que ter uma justificativa. De rolezinho nêgo não anda." Rômulo, 17 anos. Entrevista, 7 de outubro de 2010

O privilégio de percorrer as várias favelas da Maré está a ser difundido por Rômulo entre os skatistas, uma cultura juvenil em crescimento no bairro. Como a maioria receava atravessar as fronteiras, Rômulo levava e trazia skatistas de uma localidade para outra, transmitindo para esta cultura urbana os ensinamentos recebidos por via do hip-hop. Esse esforço de mediação está a contribuir para tornar os skatistas imunes às desconfianças das fações do tráfico, pois, como afirma Rômulo: "Hoje em dia se tiver um carrinho debaixo do braço está beleza".

 

Fazendo cidade na Maré

A alteração no modo de os dançarinos da Maré apropriarem e viverem o bairro, fruto do seu engajamento ao hip-hop, não pode ser desligada da emergência de inúmeras ONG e equipamentos culturais. Muitos deles foram criados pelos próprios moradores, na tentativa de ampliar as oportunidades educacionais e culturais da população local e responder a determinadas demandas a partir de um olhar de quem vive essa realidade. Assim surgiu o CEASM no morro do Timbau, em 1997, uma associação civil sem fins lucrativos impulsionada por um grupo de residentes com formação universitária, cujo principal objetivo era dinamizar cursos de pré-vestibular comunitários para contrariar o reduzido número de licenciados da Maré . As ações desta ONG diversificaram-se e, entre vários projetos e atividades, promoveu a inauguração do Museu da Maré em 2006, o primeiro museu numa favela brasileira . A partir dessas experiências inovadoras, muitas outras ONG, associações e equipamentos culturais foram criados, entre os quais os mais emblemáticos foram: Redes de Desenvolvimento da Maré, Observatório de Favelas, Luta pela Paz, Centro de Artes da Maré, Tecno, Vila Olímpica da Maré, Lona Cultural, Ação Comunitária do Brasil e Grupo de Capoeira Angola Ypiranga de Pastinha. Embora sejam projetos bastante diferenciados, refletem o protagonismo dos moradores da Maré na articulação de ações culturais, artísticas, desportivas e educacionais, com o propósito de afirmar os seus direitos na cidade e contrariar a invisibilidade pretendida para as favelas. Como refere Eliana Silva, diretora da ONG Redes e uma das fundadoras do CEASM:

"A provocação feita com a criação dessas instituições foi muito no sentido de dar uma resposta de dentro para fora em relação a certas demandas que historicamente eram vistas de uma maneira muito preconceituosa. A criação do CEASM era muito no sentido de você empoderar as pessoas de dentro para estar respondendo a essas demandas. (…) O fato do pré-vestibular hoje colocar 60 a 70 jovens todos os anos, fez com que em 12 ou 13 anos tivéssemos quase mil moradores nas universidades. Essas pessoas estão fazendo coisas distintas na Maré, coisas interessantes no campo da cultura, da arte, da educação e na própria questão social." Eliana Silva. Entrevista, 24 de setembro de 2010

A proximidade entre as favelas da Maré e uma área industrial em notória decadência nas margens da Avenida Brasil é visível a todos que visitam o bairro. Se algumas fábricas abandonadas foram ocupadas para abrigar novas moradias, outras foram adaptadas para servir de equipamentos culturais à sua população. O aproveitamento desse vazio urbano, decorrente da desindustrialização da região, para desenvolver atividades inovadoras e criativas denota um forte caráter de resistência, afirmando a Maré como um rico território cultural. Nesse processo, as representações dominantes de ausência, homogeneidade, miséria e criminalidade vinculadas ao bairro são contrariadas, ressignificando-o como espaço heterogéneo, de potência e virtualidades.

Na figura 3 podemos localizar as ONG e os equipamentos culturais mais importantes, assim como a antiga zona industrial (mancha em amarelo) comprimida entre a Maré e a Avenida Brasil.

 

 

A explosão de iniciativas culturais formais e informais na Maré, associadas aos múltiplos processos relacionais, políticos e culturais que as atravessam, é exemplar das lógicas de "fazer cidade" denominadas por Michel Agier (2011:41). A contestação aos discursos de não-civilizado, não-cidadão, direcionados àqueles que viveriam numa não-cidade – as favelas –, foi acompanhada de intensas lutas da sua população que resultaram em melhorias urbanísticas significativas. As inovações no campo da arte e da cultura protagonizadas pelos jovens do break dance devem ser enquadradas neste contexto de luta e transformação.

Grande parte dos dançarinos aprofundou relações com as ONG do bairro, aproveitando melhor as oportunidades que estavam à sua disposição: ingressaram em cursos profissionalizantes, tornaram-se monitores de break dance e organizaram eventos de hip-hop. Aprenderam, assim, a negociar com representantes do Estado e do chamado Terceiro Setor (organizações sem fins lucrativos e não governamentais), articulando o estatuto b-boy e as experiências de vida num bairro marginalizado para dar legitimidade às suas produções artísticas e fomentar ações de visibilidade dentro do território. A capacidade de transitar entre variados campos sociais faz dos dançarinos da Maré verdadeiros "go-betweens" (Velho, 2001:22), pois empreendem múltiplas ligações entre o centro e a periferia, o "asfalto" e a favela ou as ONG e a rua. A aprendizagem informal implícita nesse processo facilita o seu acesso às múltiplas redes de significação existentes na cidade, sendo um recurso valioso para interagirem com o mundo. Isso é muito importante para obterem empregos formais e conhecerem pessoas de outros extratos sociais, quando são exigidas competências próprias, sejam elas intelectuais, linguísticas ou de etiqueta . A fragilidade desse capital simbólico pode ter consequências graves, como explicou Philippe Bourgois na sua análise sobre os descendentes de porto-riquenhos do Harlem, para os quais o "choque cultural" e o isolamento no bairro tinham por efeito torná-los inaptos a conseguir empregos na área de serviços (2010:162). Contrariamente aos personagens desse livro, os b-boys da Maré podem ser considerados "biculturais", pois conseguem manipular com primor diferentes códigos de conduta: do "jogo de cintura" exigido numa favela dominada pela economia clandestina das drogas às formalidades necessárias para desenvolver projetos sociais (idem:188).

 

Considerações finais

A Maré é um "laboratório" de cidadania único no Rio de Janeiro, nomeadamente na elaboração de um "agir urbano" (Agier, 2011:42), que opera ações não subordinadas e de resistência cultural contra políticas de banimento e confinamento direcionadas aos que vivem nas margens da cidade. As respostas, improvisadas pelos dançarinos com o objetivo de transpor o cerco a que estão sujeitos, alteraram o modo como vivem e sentem o bairro, tornando possível a criação de um sentimento de pertença à Maré (como um todo). Rivalidades estimuladas pelo tráfico foram superadas, novas formas de representar o bairro, inauguradas, e as redes de amizade alargaram-se consideravelmente. A dança tornou-se estruturante na vida do grupo, responsável por sustentar densas relações de amizade e configurar um importante abrigo relacional. Até o seu ingresso no break dance, as redes de amizades dos b-boys da Maré estavam concentradas nas localidades onde viviam. Eles não circulavam em outras favelas do bairro, a não ser aquelas controladas pela quadrilha da sua área de residência, devido ao temor de serem punidos. O receio de atravessar a fronteira não era injustificado, pois os relatos dos abusos cometidos por bandidos não eram raros e estavam gravados na memória dos moradores. A partir do break dance (e do hip-hop), os seus adeptos passaram a deter "passe livre" para circular não só por toda a Maré, mas também por outras favelas dominadas pelo tráfico de drogas, o que alterou o modo de se relacionarem com o bairro e a cidade. Em simultâneo, a participação em eventos e campeonatos em várias regiões do Rio de Janeiro, inclusivamente fora desta cidade, fomentou experiências riquíssimas que os conectaram com os múltiplos estilos de vida e repertórios culturais que coexistem nas chamadas sociedades complexas.

Os dançarinos da Maré querem ser reconhecidos como bons dançarinos e criadores ativos, recusando a imagem de desempregados, marginais ou favelados. O reconhecimento de pertença a um grupo respeitado no circuito de break dance carioca deve ser entendido como um instrumento nesse sentido, ao incentivar uma forma de estar na vida pautada por um "senso de atitude" que desconstrói os tradicionais estereótipos a que são associados (Pardue, 2007:675). Isso os encoraja a circular pela cidade e a serem operadores subjetivos do mundo, e não meros reprodutores. Ao vincular imaginários, relações de pertença e conhecimentos que amplificam a capacidade dos jovens de sonhar, o hip-hop apresenta-se como uma excecional máquina expressiva. Neste contexto, a famosa frase de Oscar Wilde faz todo o sentido: "a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida". Isto porque a identidade b-boy incentiva um estilo de vida coerente com um conjunto de crenças, valores e práticas que elevam o break dance "ao estatuto de princípio filosófico e existencial" (Carrano, 1999:319).

 

 

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