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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.29 Lisboa dez. 2014

https://doi.org/10.7749/citiescommunitiesterritories.dec2014.029.art04 

ARTIGO ORIGINAL

 

Caracterização Arquitectónica e Construtiva das Cocheiras Santos Jorge, Estoril, Portugal.

Architectural and constructive characterization of Santos Jorge Coach House, Estoril, Portugal.

 

 

Abraham Ferreira AraújoI; Alexandra de Carvalho AntunesII

[I]Universidade Lusíada de Lisboa, Portugal. e-mail: abraham.araujo@sapo.pt.
[II]
Universidade de Lisboa (Artis/IHA/FL) e Universidade de Aveiro (GeoBioTec), Portugal. e-mail:aca.heritage@gmail.com.

 


RESUMO

O edifício da "antiga garagem, cocheira e cavalariça da casa de António Santos Jorge", no Estoril, foi mandado edificar em 1914, segundo traço de Norte Júnior, ampliando assim a área construída afecta à casa de veraneio da família. Caracteriza-se o edifício, arquitectónica e construtivamente, em resultado da sua observação exterior. Saliente-se a impossibilidade de confrontar os elementos recolhidos no exterior com aqueles que uma observação do interior permitiria. Apresentam-se o seu projecto de construção e a cronologia do edifício para os anos de 1965 a 2005, período de tempo de que o Arquivo da Câmara Municipal de Cascais detém documentação. O principal objectivo deste artigo é contribuir para o conhecimento material e construtivo das Cocheiras Santos Jorge, um singular conjunto actualmente abandonado, e assim concorrer para uma correcta intervenção.

Este estudo evidencia a existência de um complexo mosaico territorial, de distintas paisagens, que testemunham práticas de gestão do recurso água, aplicadas em 1900. Os resultados confirmam a viabilidade da articulação entre diferentes fontes documentais, para benefício do método de caracterização visual, em termos de indicadores necessários para a visualização do metabolismo urbano, contribuindo para uma contextualização da sua futura contabilização.


Palavras-chave: Água, Cartografia, Cultivos, Inquéritos, Território, Área Metropolitana de Lisboa.


ABSTRACT

The building of the ancient "Santos Jorge garage, coach house and stables", in Estoril, was ordered to be build in 1914. The architect Norte Junior was the responsible of the family holiday house enlargement project. The building is characterized both architectonic and constructively, as result of its exterior observation. The impossibility of interior observation which would certainly allow confronting to the exterior elements collected has to be noted. This paper presents the construction project and the buildings' chronology between 1965 and 2005, the time period for which local municipality archive holds documentation. The main aim of this article is to contribute to the material and constructive knowledge about Santos Jorge Coach House, a remarkable and abandoned construction, and so support a correct intervention.


Keywords: Limestone; Santos Jorge Coach House; traditional construction; Estoril; Norte Júnior; Villegiatura.


 

1. Introdução

Muito embora o conjunto edificado designado "antiga garagem, cocheira e cavalariça da casa de António Santos Jorge" tenha sido classificado como Imóvel de Interesse Público, em 1996, pelo Decreto n.º 2/96 de 6 de Março, a sua caracterização construtiva não foi ainda objecto de qualquer descrição ou análise. A abordagem realizada por outros autores (Silva, 1988a; Silva, 1988b; Briz, 1989; Fernandes, 2007; Pereira, 2008) foca-se em aspectos de âmbito estilístico, da História da Arte e da História Local. O conjunto é um indiscutível marco na paisagem urbana ribeirinha do Estoril (Figura 1), para tal contribuem por certo a sua inusitada imponência e a contiguidade com a linha férrea (Figura 2).

 

 

 

A edificação localiza-se na Rua de Olivença, Estoril, Concelho de Cascais, Distrito de Lisboa. Confronta a sul com a referida rua, de tráfego ligeiro, e a norte com a linha de caminho-de-ferro. A nascente, um logradouro separa o imóvel do muro de suporte de terras do lote adjacente e a poente confina com um arruamento com o qual faz gaveto. Situa-se a nove metros de altitude e a cerca de 100 metros da praia do Tamariz.

Em 1896, o proprietário agrícola António dos Santos Jorge (1866-1923) mandou construir a sua casa do Estoril, "um edifício híbrido, de volumetria tradicional, vãos em arco e decoração muito sóbria, mas contaminada por citações típicas de casa de veraneio" (Pereira, 2008). A ampliação do edifício de habitação foi iniciada em 1907 (Pereira, 2008). No dealbar da década de 1990, depois de diversas transformações, a antiga casa de veraneio foi demolida. A herança deixada por seu tio José Maria dos Santos, falecido em Abril de 1913, transformou António dos Santos Jorge em um dos proprietários da Herdade de Rio Frio, em Pinhal Novo, Palmela. A 24 de Março do ano seguinte, António dos Santos Jorge comprou, a Ernesto Driesel Schroeter e sua mulher, uma parcela de terreno entre a sua casa e a passagem de nível do Estoril onde mandou erigir umas novas cocheiras da autoria de Manuel Joaquim Norte Júnior (1878-1962) (Pereira, 2008), conforme visível nas Figuras 3 e 4.

 

 

 

As Cocheiras Santos Jorge são um dos edifícios mais emblemáticos tanto do concelho de Cascais como do seu autor. O edifício é característico da corrente eclética do início do século XX em Portugal. Distingue-se pelo forro de cantaria trabalhada das suas fachadas e pelo monumental conjunto formado pelo arco, estátua da águia e colunas que encimam a sua cobertura. A casa contava com uma estufa que ainda lá se encontra (Figura 5).

 

 

O presente artigo visa a descrição do projecto inicial de construção, gizado por Norte Júnior nos primeiros anos do seu reconhecimento público, a caracterização arquitectónica e construtiva da edificação e a análise das intervenções propostas e/ou realizadas, desde a década de 1960.

 

2. O Projecto de Construção e Norte Júnior

O projecto submetido aos serviços do município cascalense, a 3 de Setembro de 1914, inclui: requerimento redigido pelo punho de António dos Santos Jorge, em que atribui a responsabilidade da obra ao "constructor civil n.º 170 Joaquim dos Santos" (Figura 6); "memória descriptiva da construção da garage e cocheira" (Figura 7); planta de localização, os quatro alçados, as plantas dos três pisos e um corte completo (Júnior, 1914).

 

 

 

O "projecto de garage e cocheira que o Ex.mo Snr Antonio dos Santos Jorge deseja edificar no seu terreno junto à passagem de nível do Estoril" (Figuras 8 a 11) é aqui publicado, sendo a sua análise reservada ao ponto 3 deste artigo.

 

 

 

 

 

Norte Júnior cursou na Escola de Belas Artes de Lisboa, onde ingressou no ano de 1891 (Paixão, 1989). Após quatro anos de curso com notas medianas, acabou o último ano com boas classificações. Obteve dezoito valores na classificação da cadeira de Projecto e quinze valores na de Composição de Ornato. Aquando do seu terceiro ano de curso, candidatou-se "para um lugar de pensionista do Estado em países estrangeiros" (Paixão, 1989). Três anos após concluir o curso foi estudar para a École des Beaux Arts, em Paris. Dos dois anos a que tinha direito, apenas lá permaneceu seis meses. Naquela época, o ensino da arquitectura ministrado pela Escola de Belas-Artes era insuficiente. Muitos estudantes pretendiam completar os seus estudos em Paris, para onde acorriam às suas custas ou subsidiados pelo Estado (Paixão, 1989).

Norte Júnior colheu influências Beaux-Arts não só pelo contacto directo com a arquitectura francesa mas também por dois dos seus mestres na Escola de Belas Artes de Lisboa: José Luís Monteiro e José António Gaspar, arquitectos de formação francesa (Paixão, 1989). A encomenda de Santos Jorge surgiu na fase ascendente inicial da carreira de Norte Júnior. Havia já decorrido uma década após a atribuição do prémio Valmor à Casa-Atelier José Malhoa, o primeiro da carreira do arquitecto. A obra das Cocheiras Santos Jorge é por nós considerada um dos melhores exemplos da agilidade do autor em desenvolver o luxo - "ao ainda jovem Norte Júnior coube responder às expectativas de uma clientela burguesa mais interessada na ostentação da fachada, de preferência com recurso a inegáveis referências parisienses" (Nunes, 2000). Para além do alardeamento das suas fachadas, o elemento mais marcante do edifício é o conjunto formado pelo arco e a estátua de águia que o encima (Figuras 12 e 13). A estátua foi modelada em barro pelo escultor Júlio Alves de Sousa Vaz Júnior (Teixeira, 1986): “no alto, como escudo senhorial, uma águia enorme, em pedra branca - uma águia de asas abertas para um voo impossível … fica-se a pensar se será um símbolo, essa águia de asas abertas, um símbolo da velocidade dos cavalos, nobres amigos do homem que dantes levavam seus donos, em voo de águia, de Lisboa ao Estoril" (Briz, 1989). Esta construção é considerada “um arco de triunfo à glória do capitalista” (Carvalho, 1993).

 

 

 

 

3. Contributo para a Caracterização Arquitectónica e Construtiva

Conforme a memória descritiva do projecto de construção, o edifício é uma cocheira e uma garagem destinado às viaturas do proprietário. No primeiro piso encontravam-se a garagem, a oficina de reparações, a cocheira e a cavalariça. O segundo piso destinava-se aos aposentos dos empregados, contando com divisões para chauffeur, cocheiro e moços (Júnior, 1914).

Desenvolve-se em três pisos, sendo o último um terraço que se prolonga, sobressaindo em balcão sobre a entrada poente. Sobre a cobertura desenvolve-se um arco encimado por um frontão interrompido com estátua de águia. Este é ladeado por duas colunas de cada lado. Do seu lado nascente, o terraço liga ao lote vizinho através de uma ponte que atravessa o logradouro.

O terraço e a ponte são pavimentados por lajetas quadrangulares de lioz e são contornados por balaustrada da mesma rocha. Esta balaustrada é formada por balaústres de secção quadrada, corrimão e pilaretes executados em lioz com acabamento amaciado. Em consonância com Miyashiro, o ponto de contato entre as pessoas engloba os envolvidos nos projetos de extensão e os moradores, enquanto o conteúdo escrito da publicação agrega o pensamento dos mesmos autores utilizados na fundamentação teórica do projeto “Se essa rua fosse nossa” com o acréscimo das ideias de Ferrara (2001: 120), quando apresenta uma diferenciação entre visualidade e visibilidade. Na visualidade, a imagem aparece aos sentidos como uma manifestação que permite identificar o lugar, como “constatação receptiva do visual físico e concreto das marcas fixas que referenciam a cidade e a identificam entre as cidades”. Na visibilidade a imagem é uma mediação que pode produzir um conhecimento do espaço.

 

3.1. Descrição das fachadas

As suas três fachadas são revestidas a cantaria em blocos, em geral com acabamento bujardado (Figura 14). Este revestimento é sobrepujado por um friso de rocha de acabamento amaciado que se desenvolve ao longo dos alçados norte, poente e sul do edifício. Este friso contorna o topo, em arco, do portão de entrada e é interrompido apenas pelos vãos.

 

 

A entrada é a poente, fazendo-se através de porta em ferro forjado em estilo Arte Nova, com o topo em arco de volta perfeita e encimado por um óculo (Figura 15). A porta e o óculo são divididos pelo friso que contorna o edifício. O óculo é ladeado por duas mísulas e duas espirais decoradas com motivos vegetalistas. Entre o óculo e o balcão encontra-se, esculpido em gesso, o monograma Santos Jorge envolto em motivos vegetalistas (Figura 16). O tecto do balcão foi decorado com pinturas em três caixotões separados pelas mísulas (Figura 16).

 

 

 

Os alçados laterais são assimétricos. O norte exibe três grandes vãos de porta que iluminam os dois pisos (Figura 17). Os vãos laterais são de largura menor e com topo em arco de volta perfeita, enquanto o vão central é de maior largura, com o topo em arco em asa de cesto. Esta ainda é interrompida por duas colunas com capitel decorado com folhas de acanto. Estas folhas têm uma estilização diferente das folhas de acanto que decoram as pequenas mísulas dos motivos decorativos que se encontram nas fachadas (Figura 18).

 

 

 

Os três grandes vãos de porta são encimados por três pedras que se prolongam até à cornija, sendo decoradas com motivos vegetalistas. As pedras que coroam o topo do vão, em arco de volta perfeita, lembram as pedras de fecho (Figura 19). O grifo central é mais alto, com topo triangular e executado em rocha com acabamento bujardado. Os grifos laterais são executados em rocha amaciada.

 

 

O alçado sul é composto por um grande vão do mesmo tipo que os laterais do alçado norte, complementado com dois conjuntos, de três janelas cada, que abrem para o piso superior (Figura 20). Estas janelas são de topo em arco de volta perfeita, abertas num recuamento da parede com topo em arco.

 

 

O alçado nascente é a única parte do envelope do edifício que não é revestida a cantaria. A parede deste alçado foi destruída na sua quase totalidade deixando à vista o que se crê possa ser a estrutura original (Figura 21).

 

 

3.2 Descrição Construtiva de Fundações e Paredes Exteriores

Na impossibilidade de visitar o interior do edifício, são a memória descritiva do projecto e a observação através de trechos de vãos desguarnecidos que nos fornecem informações sobre o sistema construtivo. A descrição do processo construtivo é baseada na observação directa realizada e em literatura de referência sobre as técnicas construtivas do passado (Mateus, 2002; Pinho, 2000; Segurado, 1947).

As fundações são em sapata de alvenaria. Este tipo de fundação corria ao longo das paredes e de qualquer elemento de suporte isolado. Para a sua execução eram abertos caboucos que se preenchiam com alvenaria de pedra de maiores dimensões. A escolha de pedras de maiores dimensões relativamente às usadas nas paredes devia-se ao seu melhor suporte de cargas sem sofrer esmagamento (Pinho, 2000).

Como toda a pedra de alvenaria, esta devia ser colocada segundo o leito de pedreira, de modo a melhor resistir às cargas suportadas. Terminado o enchimento, nivelavam-se os alicerces. Este ensoleiramento consistia no “assentamento de pequenas lages de cantaria espaçadas e de largura inferior à grossura da parede, dispostas por forma a sobre elas se marcar o alinhamento das fachadas” (Pinho, 2000). De acordo com a memória descritiva, a estrutura é em "cimento armado" assim como as paredes interiores (Júnior, 1914) - sendo estas inicialmente revestidas a estuque. O mesmo documento indica especificações sobre as lages de pavimento do piso superior e da cobertura: a primeira foi executada em várias placas e a última numa só peça (idem).

As paredes exteriores são do tipo misto, de alvenaria ordinária argamassada a cal e areia “ao traço de 1 de cal a matto para 2 de areia” (Júnior, 1914), com uso de tijolos nos enxalços dos vãos e revestidas exteriormente por um forro de cantaria em lioz.

A alvenaria ordinária era constituída por pedra irregular assente em argamassa. Começava-se por escolher as pedras cujas formas melhor se ajustam umas às outras. As pedras eram limpas, desbastadas na estância, lavadas, colocadas sobre esta e batidas para que a argamassa refluisse; deviam ficar equilibradas naturalmente. Os blocos pétreos eram colocados com a cauda ao longo da parede e com o maior leito para baixo, de modo a aumentar a superfície de apoio. Nunca deveriam ser calçadas por pedra miúda, pois esta apenas servia para preencher os espaços vazios deixados pelas pedras de maiores dimensões. A esta acção dava-se o nome de maciçar a parede. De tanto em quanto colocavam-se pedras de maior cauda, dispostas no sentido perpendicular à parede de modo a funcionarem como travadouros.

Era desaconselhado deixar os paramentos da parede muito regulares, o que dificultaria a presa das argamassas de reboco e de colocação do forro de cantaria. Deduz-se que os paramentos interiores eram acabados a estuque tal como as divisões interiores, atendendo ao referido na memória descritiva: “As divisões interiores serão de cimento armado revestidas por estuque” (Júnior, 1914).

À semelhança do que em geral, mesmo na actualidade, se aplica nas comuns construções de betão armado, a regularização do paramento de alvenaria era efectuada por três camadas de argamassa antes de ser acabado a estuque.

A primeira camada, o emboço, tinha a finalidade de alisar as grandes irregularidades da alvenaria ordinária, ficando praticamente plana mas nunca demasiado lisa para permitir uma boa aderência da camada seguinte. A parede era previamente molhada para limpar as partículas soltas que dificultariam a aderência da argamassa e para evitar a rápida absorção da água do ligante. A segunda camada era designada por crespido e consistia em "chapar" o emboço com uma vassoura embebida na argamassa. A terceira camada designava-se reboco. Esta camada executava-se com argamassa de maior teor de cal que as anteriores e era iniciada pela parte superior da parede com a ajuda de mestras e réguas para ficar desempenada. O seu acabamento não era alisado para, assim, facilitar a aderência do guarnecimento de estuque.

Os estuques eram realizados em duas camadas, a primeira com sete a dez milímetros e a segunda com um a dois milímetros (Mateus, 2002). As camadas eram aplicadas com talocha; antes de ser aplicada a segunda camada, a primeira era molhada e regularizada com a desempenadeira.

O aparelho dos paramentos é Opus Isodomum (Segurado, 1947); nenhuma junta vertical se encontra a menos de 25 centímetros de um ângulo reentrante ou saliente. As placas têm 20 centímetros de espessura. Nos paramentos, as cantarias têm acabamento bujardado e foram contornadas a cinzel - golpe de aresta (Costa, 1955), e nos embasamentos em escassilhado e sem contorno a cinzel.

Existem cuidados a ter com a pedra a ser colocada em obra. Primeiramente, era analisado o leito da bancada. As bancadas superiores (a segunda, pois para os maciços de lioz, a bancada superior era de vidraço), desde que intactas, eram consideradas mais resistentes à acção da água, o que levava à classificação das pedras extraídas das várias bancadas em duras e macias. Estas diferentes classificações levavam a que as pedras fossem colocadas em locais/aplicações diferentes consoante a sua resistência. As pedras mais duras eram utilizadas em locais de maior agressividade e as mais macias eram reservadas aos elementos trabalhados (Mateus, 2002). De seguida os blocos eram desgastados das partes meteorizadas - o designado descasque.

Os processos de talhe variavam consoante o local e ao uso a que as pedras se destinavam. A primeira operação era o desbaste e regularização da superfície, que consistia na redução do bloco de grandes dimensões em blocos mais pequenos, geralmente paralelipipédicos. Nesta fase também se assegurava o acabamento das juntas verticais e dos leitos. Este desbaste era sempre efectuado com a pedra orientada pelo seu leito natural e segundo a orientação desejada pela estereotomia. Assim o refere Mascarenhas Mateus: “Sempre que se quisessem obter lages para pavimentos ou placas para revestimento de paramentos verticais, os blocos eram cortados em placas com a espessura desejada, por meio de serras (…) as principais regras da estereotomia a observar referiam-se a: à obtenção de juntas a 45 graus nas zonas dos cunhais e nas arestas de duas placas contíguas; ao respeito pelas manchas e veios naturais das diversas pedras” (Mateus, 2002).

De seguida, transferiam-se para as pedras os moldes desenhados com consideração da espessura da junta; primeiro a lápis, carvão ou giz e, de seguida, com um estilete de aço. Seguidamente, a partir do molde de um dos lados da pedra, executava-se o desbaste dos lados perpendiculares àquele, utilizando instrumentos que permitissem precisão cada vez maior.

A superfície de assentamento era preparada antes da colocação da pedra. Esta era “convenientemente limpa, regularizada e humedecida … [sendo sobre esta] aplicada uma camada de argamassa com a espessura conveniente" (Costa, 1955). A pedra era então colocada de nível e batida com um maço de madeira até a argamassa refluir na junta. Nesta fase de colocação, também se corrigiam os acabamentos dos sobre-leitos e se abriam as cavidades para a introdução de grampos e gatos metálicos.

Sobre o uso de cavilhas e gatos para fixação entre si das placas justapostas, ou das placas à alvenaria, pouco se conseguiu concluir. É visível um gato ou cavilha oxidado na fachada Sul, pelo que se pode deduzir que seja de ferro e não de cobre, pois a oxidação é de cor avermelhada e não esverdeada. Estes serviam para assegurar a ligação entre pedras justapostas e entre estas e o núcleo de alvenaria. Segundo Mascarenhas Mateus: “As cavilhas eram usadas sobretudo para as ligações de topo. Para ligações laterais entre blocos de cantaria, eram usados os gatos (…) ou os gatos de malhete (…). Os gatos eram também fundamentais na ligação das pedras de cantaria, das ombreiras e vergas, às alvenarias portantes ordinárias de tijolo ou de pedra irregular” (Mateus, 2002).

As ligações entre blocos poderiam ter sido executadas com chumbo em calda, calda de cimento, enxofre em fusão ou gesso amassado com água (Pinho, 2000). Outro autor afirma que “na sua maioria, estes elementos metálicos não eram argamassados mas chumbados às alvenarias. O chumbo permitia uma ligação resistente às alvenarias, evitava a oxidação do ferro e era capaz de obsorver por deformação, qualquer dilatação que pudesse provocar a ruptura localizada da pedra” (Mateus, 2002). Após a colocação das pedras, corrigiam-se os planos dos paramentos, onde todas as pedras já se encontravam justapostas e refechavam-se as juntas. As juntas têm como objectivo proteger contra infiltrações e conservar as arestas dos blocos (13, 17). Não se encontrou registo do tipo de argamassa utilizada nas juntas. Crê-se que terão sido refechadas com argamassa idêntica à de assentamento.

 

3.3 Divergências com o projecto de construção

O projecto submetido à Câmara Municipal incluía, no terraço, três pérgolas sobre a balaustrada; tanto do lado norte como sul. São pérgolas de quatro águas, provavelmente no mesmo tipo que a cobertura do arco, suportadas por colunas em cada extremidade. A sua passada existência é confirmada por fotografias antigas (Figura 22).

 

 

A terceira pérgola, mais pequena que as restantes duas, era da largura do motivo decorativo de frontão triangular (Figura 23) - este abrigaria uma estátua. As duas pérgolas maiores seriam iluminadas por um candeeiro que sobrepujaria o pilarete intermédio do primeiro tramo de balaustrada. Todas estas pérgolas seriam encimadas por antenas metálicas, tal como se pode observar na cobertura do arco (Figura 24).

 

 

 

Outro elemento discordante em relação ao projecto inicial é uma das pontes que ligaria a cobertura ao terreno da casa de veraneio. Enquanto a peça desenhada mostra duas pontes, actualmente apenas se encontra uma - centrada com a fachada - fazendo a ligação ao lote contíguo. Cremos tratar-se de uma alteração ocorrida durante a construção.

 

4. As Intervenções dos Anos de 1965 a 2005

As consultas aos arquivos da CMC e da DGC-LVT permitiram traçar uma evolução do edifício. Esta, contempla intenções de projectos de alteração, mudanças de proprietário e trabalhos de conservação. Posteriormente à entrada, na CMC, do projecto de construção das cocheiras, ocorrida em 1914, existe um interregno nos registos documentais em posse da edilidade cascalense - retomados somente no ano de 1965.

Três décadas antes da sua classificação como imóvel de interesse público, ocorrida em 1996, era reconhecido o potencial valor do edifício e do trabalho de cantaria das suas fachadas. A 20 de Janeiro de 1965, foi levado à apreciação da CMC um projecto de reabilitação das cocheiras e sua conversão em habitação colectiva. Na pretensão formulada, o construtor civil afirmava que “no estudo dos referidos apartamentos houve a preocupação dominante de não interferir com as fachadas totalmente em cantaria muito trabalhada” (Madragoa, 1965). A análise da posposta em face do estabelecido pelo artigo 5.º da Carta de Veneza (UNESCO, 1964) evidencia o desrespeito, desta adaptação, pela "disposição e decoração do edifício", dado que somente as fachadas seriam de salvaguardar. O projecto acabou por ser indeferido pela Comissão do Plano Director da Região de Lisboa por não aproveitar o edifício para fins de maior interesse turístico, como previsto nos estudos para a elaboração do "Plano da Zona Marginal do Estoril".

A 15 de Maio de 1986, o jornal Costa do Sol noticiava o boato sobre um projecto de ampliação de três pisos ao edifício das Cocheiras Santos Jorge. Esta notícia causou indignação: “mas isso não lhes dá o direito de, para além do seu gosto pessoal e dos possíveis interesses materiais, destruírem uma obra que marca uma época no início da aplicação do betão armado” (Teixeira, 1986).

Consta do arquivo da Direcção Regional de Cultura, com data de Outubro de 2002, a apresentação do estudo preliminar de uma proposta de projecto de edificação. Este documento contemplava a criação de um novo volume sobre a cobertura das cocheiras, integrando-se o conjunto escultórico do arco numa fachada-cortina.

Em Fevereiro de 1987 surgiu o primeiro documento sobre o processo de classificação patrimonial do edifício das cocheiras: “tratando-se de uma edificação com uma linguagem muito característica de uma visão romântica e eclética da arquitectura, característica dos fins do século XIX e princípio do século XX e que, por todo o país e, nomeadamente, na região de Lisboa tem sofrido forte degradação, urge proteger este elemento muito característico da referida atitude arquitectónica, e que para além do seu interesse intrínseco apresenta ainda uma grande qualidade de inserção urbana” (Infante, 1987).

Em memorando de reunião, ocorrida em 2003, o então proprietário informava que o edifício havia sido destituído, pelos seus anteriores proprietários, de todos os elementos decorativos. Estes contemplavam estuques, madeiramentos e azulejos.

O primeiro registo documental que confirma os sinais de deterioração do edifício data de 26 de Setembro de 2005. Neste documento, é dirigido à CMC um pedido de isenção de licença para obras de reparação já em curso. A “estrutura de betão armado apresentava armaduras aparentes em evidente estado de corrosão”, a balaustrada do terraço já apresentava balaústres desagregados e partidos, era necessário impermeabilizar o terraço, os “elementos decorativos em ferro” necessitavam de restauro e tratamento, as cantarias precisavam de ser limpas, e os estuques decorativos dos tectos necessitavam de restauro (CMC, 2005).

Era intenção do proprietário estas obras antecederem outras, referindo-se “marcações de paredes com alvenaria correspondentes ao futuro projecto em preparação para a utilização do edifício para um restaurante/cervejaria (tipo alemã), a apresentar em breve” (CMC, 2005). O novo uso proposto para o edifício foi do agrado da autarquia. Para além dos trabalhos de reparação foram iniciados trabalhos de reconstrução sobre os quais não foram encontrados registos da submissão do projecto de reabilitação à CMC. O interior do edifício teria já sido muito alterado. As obras foram detectadas pela CMC em Setembro de 2005, tendo sido emitido no dia 23 do mesmo mês o auto de embargo. Esta sanção não foi suficiente para fazer parar os trabalhos, tendo sido novamente observados em Outubro do mesmo ano. Crê-se que foi a partir de então que as obras pararam e que o decaimento do edifício se intensificou, até apresentar o devoluto aspecto pelo qual é conhecido.

 

5. Notas Sobre o Estado de Conservação das Cocheiras Santos Jorge

As principais causas de degradação observadas podem ser agrupadas, segundo as suas causas em: (a) anomalias causadas pela água; (b) anomalias causadas pela poluição atmosférica; (c) e anomalias causadas por acções mecânicas.

As anomalias que apresentam maior extensão na superfície das fachadas são as que provocam o enegrecimento dos blocos: os depósitos superficiais, as incrustações e as crostas. Estas são as de maior impacto visual, até por serem mais evidentes nos blocos lavrados - os de maior interesse artístico e qualidade estética.

O abandono a que o edifício está sujeito será a principal causa da sua degradação. Com excepção da erosão diferencial, pela presença de estilólitos; de algumas lacunas; das fracturas e das fissuras; as restantes anomalias identificadas poderiam ter sido evitadas através de manutenção periódica do edifício. É inevitável a sua evolução ao longo do tempo. As fissuras, fracturas e a erosão diferencial enfraquecerão os blocos, deixando-os mais vulneráveis à sua degradação física. Deste grupo de anomalias salientam-se as fracturas dos blocos que compõem o nicho da estátua, que necessitam de reparação urgente.

 

6. Conclusão

O conjunto centenário constituído por antiga garagem, cocheira e cavalariça da casa de António Santos Jorge, foi edificado segundo processos construtivos tradicionais, muito embora tenha recorrido, em alguns elementos, como a sacada da fachada principal, à tecnologia do betão armado. O revestimento e os motivos decorativos pétreos reforçam o carácter ostentatório, assim pretendido por Santos Jorge e Norte Júnior, de um edifício que tradicionalmente seria puramente funcional.

O estado actual do edifício denota o total desrespeito, ao longo de décadas, pelas recomendações e cartas patrimoniais. Da original edificação restam as paredes exteriores e seus revestimentos exteriores, revelando, estes últimos, relevantes deposições superficiais de origem diversa, fracturas e fissuras.

A localização do edifício das antigas cocheiras, no coração da faixa beira-mar do Estoril e a escassos metros da linha férrea, impõe-lhe que se integre no actual desenvolvimento urbano do local, determina a alteração de materiais e estrutura (mercê de vibrações e aerossol marinho) e destaca-o enquanto marco de outros tempos.

A intervenção de que venha a ser alvo deverá devolver-lhe a identidade e a autenticidade desaparecidas, primando-se pelo respeito pela ancestral estrutura, e permitindo o usufruto - privilegiadamente público - do conjunto. Só assim se poderá assegurar a salvaguarda das centenárias cocheiras de Santos Jorge.

 

SIGLAS E ABREVIATURAS

AHCMC - Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Cascais

CMC - Câmara Municipal de Cascais

DRC-LVT - Direcção Regional de Cultura de Lisboa e Vale do Tejo

IGEO - Instituto Geográfico Português

 

REFERÊNCIAS

Aires-Barros, L. (2001), As Rochas dos Monumentos Portugueses: tipologias e patologias, Lisboa: IGESPAR, vol. 1.         [ Links ]

Araújo, A. (2011), Cocheiras Santos Jorge: um contributo para o estudo do estado de conservação das suas cantarias, dissertação de mestrado em Arquitectura, Universidade Lusíada de Lisboa, Portugal.         [ Links ]

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