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Da Investigação às Práticas

versão On-line ISSN 2182-1372

Invest. Práticas vol.7 no.3 Lisboa set. 2017

 

ARTIGOS

Sensibilidade precoce às combinações ortográficas entre crianças falantes do português europeu

 

Early sensitivity to spelling combinations among speaking children of European Portuguese

 

Sensibilité précoce aux combinaisons orthographiques chez les enfants parlant le portugais européen

 

Ana Sucena
Escola Superior de Saúde, Instituto Politécnico do Porto

 

Contacto

 

Resumo

O objetivo deste estudo é contribuir para o conhecimento do desenvolvimento da sensibilidade das crianças portuguesas para as sequências grafémicas na fase inicial de aprendizagem da leitura e da escrita. Trata-se de uma competência sublexical de particular importância na aprendizagem da leitura e da escrita (Apel, Thomas-Tate, Wilson-Fowler e Brimo, 2012), constituindo-se como um forte aliado na escrita, já que permite uma alternativa muito menos custosa para a memória do que a memorização da forma inteira da representação ortográfica da palavra (Deacon et al., 2012). A investigação sugere que esta sensibilidade surge tão precocemente quanto o 1º ano de escolaridade (Danjon e Pacton, 2009). Apresentamos os resultados de um estudo longitudinal com quatro momentos de avaliação ao longo do 1º ano de escolaridade, realizado com 23 crianças falantes nativas do português europeu.

Palabras clave: sequências grafémicas; aprendizagem da escrita e da leitura.

 

Abstract

The aim of this study is to contribute to the knowledge of the development of the Portuguese children's sensitivity to grammatical sequences in the initial stage of reading and writing acquisition. It is a sublexical competence of particular importance in the learning of reading and writing (Apel, Thomas-Tate, Wilson-Fowler and Brimo, 2012), representing a strong ally in writing, since it allows a far less costly alternative to memory than the memorization of the entire form of the word's orthographic representation (Deacon et al., 2012). Research suggests that this sensitivity emerges as early as the first grade (Danjon and Pacton, 2009). We present the results of a longitudinal study with four assessment moments during the first grade with 23 European Portuguese speaking children.

Keywords: graphemic sequences; spelling and reading acquisition; european Portuguese

 

Résumé

Le but de cette étude est de contribuer à la connaissance du développement de la sensibilité des enfants portugais aux séquences graphémiques, pendant la période initiale de l’apprentissage de la lecture et de l'écriture. Il s’agit d’une compétence sous-lexicale d'une importance particulière pour l'apprentissage de la lecture et de l’écriture (Apel, Thomas-Tate, Wilson-Fowler et Brimo, 2012), puisqu’il s’agit d’un allié pour l’écrit, car elle permet une alternative beaucoup moins coûteuse pour la mémoire que la mémorisation de la forme entière de la représentation orthographique du mot (Deacon et al., 2012). La recherche suggère que cette sensibilité survient dès la 1ère année de scolarité (Danjon et Nooteboom, 2009). Nous présentons les résultats d'une étude longitudinale avec quatre moments d’évaluation au cours de la 1ère année de scolarité, menée avec 23 natifs du portugais européen.

Mots-clés: séquences graphémiques; apprentissage de l’écriture et de la lecture; portugais européen.

 

INTRODUÇÃO

O objetivo deste estudo é contribuir para o conhecimento do desenvolvimento da sensibilidade das crianças portuguesas às sequências grafémicas na fase inicial de aprendizagem da leitura e da escrita. Esta sensibilidade traduz uma competência sublexical de importância capital na aprendizagem da leitura e da escrita (Apel, Thomas-Tate, Wilson-Fowler e Brimo, 2012; Deacon, Benere e Castles, 2012; Querido, 2015), constituindo-se como um forte aliado na escrita, já que permite uma alternativa muito menos custosa para a memória do que a memorização da forma inteira da representação ortográfica da palavra (Deacon et al., 2012). Esta sensibilidade surge tão precocemente quanto o 1º ano de escolaridade (Danjon e Pacton, 2009; Pacton, Perruchet, Fayol e Cleeremans, 2001). Muita da nossa aprendizagem da escrita ocorre através da leitura, através do mecanismo de auto-ensino (Burt e Furry, 2000; Share, 1995, 1999). Um fator que influencia o auto-ensino é a extensão da experiência do indivíduo com a versão escrita da palavra. De facto, a medida da frequência com que o indivíduo encontra a palavra em textos é um forte preditor da precisão que terá na sua representação escrita (Lété, Peereman e Fayol, 2008). Alguns estudos sugerem que a conformidade da palavra às correspondências fonema-grafema típicas do sistema ortográfico influencia a aprendizagem, mais até do que a frequência de exposição a uma palavra específica (Lété et al., 2008; Wang, Castles, Nickels e Nation, 2011). Nesse sentido, os resultados de Wright e Ehri (2007) revelaram sensibilidade às sequências grafémicas em crianças de 6 anos falantes do inglês. Os autores ensinaram as crianças a ler pseudopalavras, algumas das quais iniciadas por consoante dupla como <rrug> (ilegal em inglês) e outras terminando em consoante dupla (legal em inglês). Mais tarde, foi pedido às crianças que escrevessem as pseudopalavras, tendo-se verificado que as crianças mantinham mais frequentemente a dupla consoante legal (em posição final) do que a ilegal (em posição inicial). Os resultados revelaram ainda que muitas crianças “corrigiram” a escrita das pseudopalavras (i) suprimindo a dupla consoante em posição inicial (e.g., escrita de <rrug> como <rug>) ou (ii) dobrando a consoante final em vez da inicial (e.g., escrita de <rrug> como <rugg>). Pacton et al. (2001) avaliaram também o conhecimento implícito das sequências grafémicas de crianças no 1º ano, desta feita falantes do francês. Apresentaram às crianças dois tipos de pseudopalavras: sequências fonológica e ortograficamente legais e sequências fonologicamente legais mas ilegais do ponto de vista ortográfico. Entre as sequências ortograficamente ilegais, os autores manipularam quer sequências consonânticas, quer vocálicas (e.g., <bekkul> e <tiilos> são dígrafos ilegais em francês). As crianças francesas a frequentar o 1º ano distinguiram com ca. 80% de sucesso as pseudopalavras com sequências ortográficas legais por comparação àquelas com sequências consonânticas e vocálicas ilegais. O estudo de Pacton et al. (ibd.) tinha um desenho transversal, não sendo, assim, possível estabelecer a partir de que momento, no 1º ano, é que as crianças revelam sensibilidade às sequências grafémicas legais.

No nosso estudo construímos, à semelhança de Pacton et al. (ibd.), pseudopalavras com sequências fonológica e ortograficamente legais e pseudopalavras com sequências fonológicas legais mas ilegais ortograficamente, e administrámos tarefas de leitura e de escrita de um e de outro tipo de pseudopalavras em quatro momentos de avaliação ao longo do 1º ano. De modo a simplificar a descrição do estudo, optaremos por nos referir às primeiras como pseudopalavras, constituídas por sequências fonológicas e ortográficas legais para a ortografia, e às segundas como não-palavras, construídas no sentido de constituir sequências legais do ponto de vista fonológico mas ilegais para a ortografia. Conduzimos um estudo longitudinal com quatro momentos de avaliação ao longo do 1º ano de escolaridade. Avaliámos a leitura e a escrita de palavras, de pseudopalavras e de não-palavras. Cada participante foi avaliado quatro vezes ao longo do ano, em outubro, dezembro, março e junho, a que nos referiremos, a partir de agora, por (respetivamente) Tp (Tempo) 0, 1, 2 e 3.

A leitura das não-palavras constitui uma tarefa extrema para o processo fonológico: enquanto para a leitura de pseudopalavras a criança pode contar com o apoio do conhecimento que tem acerca das sequências grafémicas e fonológicas, as não-palavras constituem-se como sequências grafémicas desconhecidas e ilegais. Quando inicia a aprendizagem da leitura, a criança desconhece as regras que subjazem às sequências grafémicas, pelo que não é expectável que seja capaz de distinguir pseudopalavras de não-palavras. É nossa intenção avaliar a partir de que ponto é que a criança reconhece estar perante sequências grafémicas ilegais, o que deve ser indicado por resultados piores na leitura de não-palavras relativamente às pseudopalavras. Esperamos não encontrar diferenças ao nível da escrita dado que, fonologicamente, se trata de sequências plausíveis. Deter-nos-emos, ao nível da escrita, sobre a evolução do desempenho consoante a complexidade da estrutura silábica.

Finalmente, debruçar-nos-emos sobre o recurso preferencial, entre as crianças portuguesas, ao processo logográfico ou ao processo alfabético. De acordo com Seymour (1990, 1997, 1999, 2003), a fase alicerce pode basear-se em dois processos ou apenas num. Em ortografias opacas como o inglês os processos logográfico e alfabético coexistem, enquanto em ortografias transparentes, como o finlandês, o processo logográfico não chega a desenvolver-se, baseando-se a fase alicerce em exclusivo no processo alfabético (Seymour, 2003). Seymour (1999) propõe avaliar a bipartição (coexistência do processo alfabético e logográfico) ou mono-partição (desenvolvimento unicamente do processo alfabético) da fase alicerce a partir do padrão de resultados na leitura de palavras muito familiares e de pseudopalavras. Seymour (1989) sugere que as distinções qualitativas entre os processos de leitura se expressam em termos do contraste entre palavras e pseudopalavras. O recurso ao processo logográfico envolve a discriminação de alguns itens dentro de um conjunto restrito de palavras através da utilização de características que não estão sistematicamente correlacionadas com elementos de pronunciação. O recurso a este processo seria indicado pela capacidade para identificar palavras familiares mas não palavras desconhecidas ou pseudopalavras. O recurso ao processo alfabético envolve a tradução sequencial de letras em sons. O recurso a este processo seria indicado pela identificação de palavras e pseudopalavras de ortografia consistente contudo através de um processo sequencial lento, que acarretaria uma forte relação entre a extensão das palavras e o tempo de reação.

É consensual que apenas o processo alfabético (ou processo fonológico se quisermos adotar uma terminologia mais abrangente) intervém na aquisição da leitura entre as crianças que aprendem a ler em ortografias transparentes. Wimmer, Landerl, Linortner e Hummer (1990) relatam que as crianças que aprendem a ler em alemão utilizam estratégias de mediação fonológica desde muito cedo; Wimmer e Goswami (1994) compararam crianças que aprendiam a ler em alemão e crianças que aprendiam a ler em inglês na fase inicial de leitura e verificaram a existência de correlação entre a leitura de palavras e de pseudopalavras entre as falantes do alemão mas não entre as falantes do inglês. Finalmente Cuetos (1989) dá conta de uma percentagem média de 90% de respostas corretas na leitura de pseudopalavras no 1º ano de escolaridade entre crianças falantes do castelhano. Não é, contudo, consensual que exista um processo logográfico, mesmo em ortografias tão opacas como o inglês (Stuart e Coltheart, 1988; Share, 1995). Sprenger-Charolles (Sprenger-Charolles e Bonnet, 1996, Sprenger-Charolles, 1998; Sprenger-Charolles, 2003) realizou estudos com crianças francesas (que aprendem a ler numa ortografia intermédia) e sustenta a inexistência do processo logográfico; de acordo com esta autora as crianças francesas recorrem ao processo fonológico durante a fase inicial da aquisição da leitura.

Como já referido, enquanto as palavras podem ser lidas quer por recurso ao processo logográfico, quer ao alfabético, as pseudopalavras e não-palavras podem ser lidas apenas através do recurso ao processo alfabético. Se as crianças recorrerem sobretudo ao processo alfabético na tarefa de leitura, adotarão o mesmo tipo de processo para a leitura nas duas condições lexicais, sendo de esperar que surjam valores elevados de correlação. Se, pelo contrário, adotarem processos diferentes conforme a condição lexical, esperamos encontrar correlações baixas ou mesmo inexistentes.

 

MÉTODO

Participantes

Os participantes foram selecionados de acordo com os seguintes critérios: 1) serem falantes nativos do português europeu, 2) não apresentarem problemas de aprendizagem (de acordo com as indicações dos professores), 3) não terem problemas de linguagem (de acordo com as indicações dos professores), 4) terem um QI médio ou superior à média (conforme medido pelas Matrizes Progressivas Coloridas de Raven); 5) enquadrarem-se no NSE médio (de acordo com informação no processo individual de cada criança). Todas as crianças obtiveram autorização parental escrita para a participação no estudo.

No Quadro 1 caracterizam-se os participantes. Foram avaliadas 23 crianças (11 do sexo feminino e 12 do sexo masculino) que frequentavam o 1º ano de escolaridade numa escola pública no Porto. Na primeira avaliação (início do ano lectivo), as idades das crianças variavam entre 5;8 e 6;8 anos (idade média: 6;3, DP = 0.31). Embora conscientes da elevada probabilidade de efeitos de chão, optámos por avaliar as crianças imediatamente após o início do 1º ano. Esta opção teve por base dois motivos: dispormos de uma medida das competências pré-leitoras e certificarmo-nos que estávamos a avaliar crianças que iniciavam a aprendizagem da leitura e escrita no início do percurso escolar, e não crianças que já dispunham de conhecimentos adquiridos noutro contexto. Trata-se de uma opção em linha com a proposta metodológica de Castles e Coltheart (2004) para a realização de estudos longitudinais que pretendam avaliar a relação entre a consciência fonológica e a aquisição da leitura e escrita. Os autores defendem que a consciência fonológica deve ser medida antes de a criança ter adquirido quaisquer competências de leitura ou escrita, incluindo as relações letra-som, sendo indispensável o controlo das variáveis que intervêm em simultâneo nos processos de consciência fonológica e leitura como o QI e a idade.

Material

Leitura de pseudopalavras e de não-palavras

Foram criadas listas mistas de pseudopalavras e de não-palavras. Foram controladas a extensão e a estrutura silábicas, criando-se duas listas: uma constituída por monossílabos e outra por dissílabos; os itens foram criados com base em quatro estruturas silábicas – V; CV; VC; CVC. A lista de monossílabos era assim constituída pelas estruturas CV, VC e CVC e a lista de dissílabos pelas estruturas VCVC, CV.CV e CV.CVC.

As pseudopalavras foram construídas para as estruturas CV e CV.CV, tendo em atenção a manutenção de sequências grafémicas e fonémicas plausíveis no português (e.g., <ba>; <fepo>). As não-palavras foram construídas para as estruturas silábicas VC, V.CVC, CVC e CV.CVC (e.g., <ug>; <aluj>; <lib>; <radeq>) atentando à utilização de uma consoante ilegal na posição final de palavra; para tal selecionámos todas as consoantes com exceção das legais em português: <s>, <l>, <r>, <m>. Com exceção da última consoante, foi mantida a legalidade das restantes correspondências fonema-grafema.

Em suma, foi contemplada a avaliação de dois fatores na tarefa de leitura: 1) tipo de estímulo (pseudopalavra vs. não-palavra) e 2) extensão silábica (monossílabos; dissílabos).

Escrita de pseudopalavras e de não-palavras

As mesmas listas de pseudopalavras e de não-palavras administradas na avaliação da leitura foram ditadas às crianças nos Tp2 e Tp3. Foram avaliados os mesmos fatores para a leitura.

Procedimento

Todas as crianças foram testadas numa sala sossegada. Nas tarefas de leitura as crianças foram testadas individualmente, com recurso ao software Cognitive Workshop, que permite (i) a apresentação dos estímulos, (ii) a notação e gravação da exatidão das respostas e (iii) o cálculo dos tempos de reação; nas tarefas de escrita as crianças foram testadas em grupos de 4 a 5 crianças.

Leitura de pseudopalavras e não-palavras

Foi pedido à criança que lesse cada item em voz alta, o mais rápida e corretamente possível. As crianças foram alertadas, na sessão de treino, para o facto de irem ler “palavras inventadas”. As crianças foram avaliadas em quatro momentos: ao início do ano letivo e ao final dos 1.º, 2.º e 3.º trimestres.

Escrita de pseudo-palavras e não-palavras.

Cada item foi ditado em voz alta pelo avaliador, após o que era repetido pelas crianças, no sentido de nos assegurarmos que todas haviam ouvido corretamente. O mesmo item podia ser repetido pelo avaliador se alguma criança assim o requeria; não foi estabelecido limite de tempo. Não foi dada instrução relativa ao tipo de letra a utilizar – maiúscula ou minúscula; manuscrita ou impressa. As crianças foram avaliadas em dois momentos: ao final dos 2.º e 3.º trimestres.

 

RESULTADOS

Leitura de pseudopalavras e de não-palavras

O Quadro 2 e o Quadro 3 descrevem os resultados da leitura de pseudopalavras e de não-palavras. As análises dos resultados de pseudopalavras e não-palavras foram realizadas separadamente.

No Quadro 2, podemos observar a tendência de evolução na leitura de pseudopalavras: nos Tp0 e Tp1 os valores são muito baixos (não atingem os 10%) e o grande salto dá-se do Tp1 para o Tp2 (respetivamente, ca. 8% e 70% de respostas corretas); a progressão continua do Tp2 para o Tp3, atingindo os monossílabos resultados de teto. A extensão silábica exerce um efeito importante em todos os Tp, sendo os resultados dos monossílabos sistematicamente superiores aos dos dissílabos.

Uma Anova 2x2 para medidas repetidas com os fatores Tp e Extensão Silábica confirma a interpretação acima, revelando efeitos significativos para ambos os fatores (Tp: F (3,84) = 128.722, p < .0001; Extensão: F (1,84) = 15.049, p = .0002) e ausência de significância para a interação (F (3,84) = 1.894, ns).

Os resultados dos tempos de reação (Quadro 3) acompanham os resultados da exatidão: os tempos de reação decrescem do Tp2 para o Tp3, e são menores para os monossílabos do que para os dissílabos. Uma Anova 2x2 para medidas repetidas com os fatores Tp e Extensão Silábica revela uma tendência de efeito para o Tp, F (1,42) = 3.616, p = 0.0641, e um efeito significativo para a Extensão, F (142) = 22.856, p < .0001.

Sumário de resultados da exatidão e dos TR

A curva de aprendizagem é nula entre o Tp0 e Tp1, verificando-se progressos a partir do Tp1.
A extensão silábica atinge significância para os resultados da exatidão e tempos de reação, sendo os monossílabos lidos com maior sucesso e mais rapidamente do que os dissílabos.

Leitura de não-palavras

No Quadro 2, podemos observar que a percentagem de respostas corretas aumenta ao longo do ano para todas as condições. Nos Tp0 e Tp1 os resultados estão abaixo dos 10%, observando-se uma progressão acentuada nos Tp2 e Tp3. Os monossílabos são, em todos os momentos de avaliação, melhor lidos do que os dissílabos. Os resultados da leitura da estrutura VC (e VCVC) são superiores aos observados na estrutura CVC (e CVCVC).

Uma Anova 4x2x2 para medidas repetidas com os fatores Tp, Extensão e Estrutura Silábica revelou efeitos significativos para os fatores Aprendizagem e Extensão e um efeito marginal para o efeito Estrutura (Tp: F(3,84)=14.634, p<.0001; Extensão: F (1,84) = 5.580, p = .0205; Estrutura: F (1,84) = 15.980, p = .060); nenhuma das interacções atingiu significância.

Testes post hoc revelaram a inexistência de diferenças entre os Tp0 e o Tp1; o efeito de aprendizagem deve-se então à progressão entre o Tp0 e os Tp2 e Tp3, bem como à progressão entre o Tp1 e o Tp3. O efeito de extensão é o mesmo ao longo dos quatro momentos: os monossílabos são melhor lidos do que os dissílabos. Relativamente à estrutura, os resultados da estrutura VC (e VCVC) são superiores aos da estrutura CVC (e CVCVC).

Os tempos de reação (Quadro 3) sofrem muito pouca variação; de facto, trata-se de resultados pouco fiáveis na medida em que, à exceção dos itens monossilábicos, representam uma percentagem de respostas abaixo dos 50%. Por esse motivo, optámos por não realizar análises de variância.

Escrita de pseudopalavras e de não-palavras

O Quadro 4 apresenta os resultados relativos à escrita de pseudopalavras e de não-palavras, nos Tp2 e Tp3.

Escrita de pseudopalavras

Contrariamente ao que sucede na leitura, na tarefa de escrita parece não existir um efeito de aprendizagem: a percentagem de monossílabos e dissílabos escritos corretamente mantém-se relativamente inalterada do Tp2 para o Tp3. Já o efeito de extensão manifesta-se robusto: em ambos os Tps observamos uma percentagem superior de escrita correta para os monossílabos do que para os dissílabos.

Uma Anova 2x2 para medidas repetidas com os fatores Tp e Extensão confirma as observações acima, revelando que o único efeito significativo é o da extensão silábica, F (1,42) = 13.718, p = 0.001, não atingindo significância o Tp nem a interacção (Tp: F(1,42) <1; Interacção: F (1,42) < 1).

Sumário de resultados para a leitura e escrita de pseudopalavras

Em ambas as tarefas (leitura e escrita) o efeito de extensão é significativo (os resultados dos itens monossilábicas são melhores do que os dos itens bissilábicos), mas o efeito de aprendizagem é distinto conforme a tarefa: na leitura a curva de aprendizagem é nula entre o Tp0 e Tp1, verificando-se os progressos a partir do Tp1; na escrita não existem progressos significativos.

Escrita de não-palavras

Genericamente, observa-se um aumento da percentagem de respostas corretas do Tp2 para o Tp3, independentemente da extensão silábica. Não parece claro um qualquer efeito de extensão silábica, antes transparecendo uma interação entre a estrutura e a extensão silábicas.

Uma Anova 2x2x2 para medidas repetidas com os fatores Tp, Extensão (mono e dissílabos) e Estrutura (VC e CVC) revelou um efeito significativo para a interação Extensão x Estrutura, F (1,42) = 4.577, p = 0.0383, uma significância marginal para o Tp e Estrutura (Tp: F (1,42) = 3.562, p = 0.0660; F (1,42) = 3.605, p = 0.0645) e ausência de efeito significativo para a Extensão (F (1,42) < 1). Em face da interação realizámos uma Anova para medidas repetidas com o fator Estrutura para cada Extensão Silábica. A Anova relativa à escrita de monossílabos revelou um efeito significativo da Estrutura, F (1,42) = 10.279, p = 0.0026, em resultado da percentagem superior para CVC relativamente a VC, e ausência de efeito para o Tp, F (1,42) = 1.023, ns, e para a interação, F (1,42) < 1. A Anova relativa aos dissílabos revelou efeito significativo apenas para o Tp, F (1,42) = 5.845, p = 0.0200.

Em suma, os resultados da escrita de não palavras revelam que (i) entre os monossílabos a estrutura CVC apresenta vantagem sobre a VC, não havendo efeito de aprendizagem e (ii) entre os dissílabos existem progressos significativos entre o Tp2 e Tp3 e não existe efeito da estrutura.

Sumário de resultados para a leitura e escrita de não-palavras

Os progressos observados entre os vários Tp são significativos para a tarefa de leitura; na tarefa de escrita são significativos apenas entre os dissílabos.

Os monossílabos têm resultados superiores aos dissílabos na leitura; na escrita a variável extensão silábica interage com a variável estrutura silábica.

Palavras, pseudopalavras e não-palavras: recurso ao processo de descodificação alfabética

No sentido de nos assegurarmos de que se trata, efetivamente, de estímulos para a leitura para os quais as crianças recorrem ao mesmo tipo de processo, procedemos a análises de correlação, cujos resultados revelaram que a leitura de pseudopalavras e de não-palavras está correlacionada em todos os Tp, quer ao nível da exatidão (r = .69 no Tp0, r = .98 no Tp1, r = .72 no Tp2 e r = .54 no Tp3), quer ao nível dos tempos de reação (r = .75 no Tp2 e r = .79 no Tp3).

A elevada correlação entre a leitura dos dois tipos de estímulo, nos diferentes momentos de avaliação, constitui um argumento sólido em favor de se tratar de estímulos que são lidos através do recurso ao mesmo processo.

No sentido de avaliar se as crianças recorrem ao mesmo tipo de processo na leitura de (i) palavras e de (ii) pseudopalavras e não-palavras, procedemos a análises de correlação entre os resultados da leitura dos três tipos de estímulo com a mesma complexidade ortográfica – palavras, pseudopalavras e não-palavras com ortografia simples. Colocámos a hipótese que se as crianças recorressem sobretudo ao processo alfabético, adotariam o mesmo tipo de processo para a leitura nas duas condições lexicais, surgindo valores elevados de correlação. Se, pelo contrário, adotassem processos diferentes conforme a condição lexical, surgiriam correlações baixas ou inexistentes.

Ao nível da exatidão, no Tp0 existe uma correlação positiva entre a tarefa de leitura de palavras e de pseudopalavras (r = .69), enquanto a correlação entre as palavras e as não-palavras não é significativa (r = -.05). Nos Tp1 e Tp2 existem correlações (positivas e significativas) quer entre palavras e pseudo-palavras (respetivamente, r = .93 e r = .88), quer entre as palavras e as não-palavras (respetivamente, r = .99 e r = .76). Finalmente, no último momento de avaliação, há uma descida dos valores de correlação entre palavras e não-palavras (r = .51), não atingindo a correlação entre a leitura de palavras e pseudopalavras sequer um valor significativo (r = .32).

Ao nível dos tempos de reação, as correlações são significativas quer no Tp2, quer no Tp3, apesar de, como ocorre com os resultados da exatidão, os valores serem mais elevados no Tp2 do que no Tp3 – a correlação entre as pseudopalavras e as palavras é r = .79 no Tp2 e r = .61 no Tp3, e a correlação entre as não palavras e as palavras é r = .75 no Tp2 e r =.53 no Tp3.

Em suma, existe uma correlação positiva entre as tarefas de leitura de palavras e de pseudopalavras e não-palavras desde o início da aprendizagem da leitura, observando-se um aumento gradual do valor da correlação até ao Tp2, após o que a correlação entre as tarefas diminui.

 

DISCUSSÃO

Cada sistema alfabético tem uma estrutura ortográfica particular, por exemplo, a possibilidade de uma letra específica se seguir a outra letra específica numa sílaba não é sempre a mesma. Ainda, algumas combinações de letras não são possíveis, enquanto outras combinações ocorrem com elevada frequência. O leitor hábil tem um conhecimento implícito de quais as combinações de letras ortograficamente legais (Pacton et al., 2001, em Gombert, 2003; Gombert, 2003). E o leitor principiante?

Diversos estudos têm constatado que mesmo ao nível do 1º ano as crianças são sensíveis às sequências grafémicas legais (e.g., Danjon e Pacton, 2009; Wright e Ehri, 2007; Pacton et al. 2001). Numa tarefa em que era pedido que escolhessem, entre um par de pseudopalavras, qual a mais parecida com uma palavra real, as crianças escolheram, com ca. 80% de sucesso, pseudopalavras com sequências grafémicas legais em detrimento de pseudo-palavras com sequências ilegais (Pacton et al. 2001).

Com o objetivo de compreender o desenvolvimento das representações ortográficas na fase inicial da aprendizagem da leitura e da escrita, criámos um conjunto de não-palavras, caracterizadas por terem uma estrutura fonológica legal e, ao mesmo tempo, uma estrutura ortográfica ilegal. O pressuposto de que partimos foi que o processo alfabético (decodificação letra-som) possibilita quer a leitura de sequências ortográficas ilegais, quer a leitura de sequências ortográficas legais. De facto, os nossos resultados revelam uma elevada correlação entre a leitura de pseudopalavras e de não-palavras, tanto ao nível da exatidão como dos tempos de reação, em todos os momentos de avaliação. Ainda outro argumento do recurso ao processo alfabético na leitura de ambos os tipos de item é o facto de, tanto nas pseudopalavras como nas não-palavras, os monossílabos terem sido melhor lidos e melhor escritos do que os dissílabos. O efeito facilitador na leitura de itens com menos letras é chamado efeito de extensão, sendo um indicador do recurso à estratégia fonológica.

As crianças obtiveram melhores resultados na tarefa de escrita do que na tarefa de leitura, quer com pseudopalavras quer com não-palavras, sendo a diferença maior (entre leitura e escrita) no caso das não-palavras. Este resultado pode dever-se, em parte, à diferença no procedimento das tarefas de leitura e de escrita, já que existia limitação de tempo para a realização da tarefa de leitura de cada item (10’’) mas não para a tarefa de escrita. No entanto a magnitude da diferença e o facto de ser mais expressiva para as não-palavras do que para as pseudopalavras é indicadora de que o desenvolvimento dos processos de leitura e de escrita se processa em ritmos diferentes. Efetivamente, os resultados na tarefa de escrita ao nível das pseudopalavras são já resultados de teto no Tp2, enquanto os mesmos valores de teto são atingidos apenas no Tp3 na tarefa de leitura. Ao nível das não-palavras os resultados da escrita distinguem-se ainda mais dos resultados da leitura, com diferenças que chegam a ultrapassar os 50% em favor da escrita. Este resultado pode indiciar um recurso mais exclusivo ao processo alfabético na escrita do que na leitura, tendo por base que na tarefa de escrita a criança traduz fielmente os sons nas letras correspondentes enquanto na tarefa de leitura, paralelamente ao processo de descodificação, a criança procura igualmente o correspondente fonológico no léxico, resistindo a produzir uma leitura que não tem correspondência com qualquer palavra conhecida. Por outras palavras, os resultados superiores na tarefa de escrita podem, paradoxalmente, ser indicadores de que esta tarefa é mais exigente do que a tarefa de leitura, assim não chegando a criança à tentativa de encontrar um correspondente no léxico fonológico.

Ao nível da leitura, se no início do ano o desempenho com as não-palavras e pseudopalavras era equivalente, não sendo ultrapassado, nos dois primeiros momentos de avaliação, o limiar de 10% de leituras corretas para qualquer dos itens, a partir do terceiro momento de avaliação verifica-se uma clara diferença na leitura das pseudopalavras e das não-palavras. A meio do 1º ano (Tp2) as crianças leem as pseudopalavras com ca. 70% de sucesso, enquanto a leitura das não-palavras não ultrapassa os 30%, mantendo-se a diferença no último momento de avaliação, em que as pseudopalavras foram lidas com ca. 90% de sucesso enquanto a percentagem de sucessos das não-palavras ficou por ca. 50%.

Os nossos resultados apontam, assim, para duas etapas no processo alfabético: inicialmente, as competências de descodificação baseiam-se em correspondências um-para-um, relativamente insensíveis ao contexto ortográfico; numa fase posterior, o processo de descodificação engloba já regularidades estatísticas relativamente às sequências grafémicas. É interessante salientar que as crianças portuguesas revelam conhecimento implícito das sequências grafémicas numa fase em que não conhecem ainda a totalidade das relações entre letras e sons. Os nossos resultados revelaram que, logo no Tp2, a leitura e escrita de pseudopalavras é mais bem sucedida do que a de não-palavras; ora, no Tp2, o conhecimento das relações entre letras e sons é elevado mas incompleto (ca. 90%). Trata-se de um resultado em acordo com a perspetiva de Gombert (2003) e Share (1999, 1995), que sustentam que a criança começa a extrair conhecimento implícito das características estruturais do sistema escrito assim que este lhe é exposto. Por outras palavras, ainda antes de ter adquirido a mestria do processo alfabético, a criança começou já a adquirir conhecimento das regularidades grafémicas, assim revelando que o processador ortográfico interage desde uma fase muito precoce com o processador fonológico.

 

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Contacto: Ana Sucena, Escola Superior de Saúde, Instituro Politécnico do Porto, Rua Dr. António Bernardino de Almeida, 400 4200 - 072, Porto, Portugal / asucena@ess.ipp.pt

 

(Recebido em junho de 2017, aprovado em setembro de 2017)

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