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Da Investigação às Práticas

versão On-line ISSN 2182-1372

Invest. Práticas vol.6 no.2 Lisboa set. 2016

 

RECENÇÃO

Pires, Carlos (2014). Escola a Tempo Inteiro – Contributos para a análise de uma política pública de educação.

Santo Tirso: De Facto Editores,

ISBN 978-989-8557-47-6, pp. 109
[Prémio SPCE 2013]


 

José Matias Alves

Universidade Católica Portuguesa jalves@porto.ucp.pt  

Contacto

 

Organizado em sete capítulos, este livro de Carlos Pires é, de facto, como assinala João Barroso no final do prefácio, uma “referência incontornável para o conhecimento das políticas [públicas] recentes” no que ao ensino básico diz respeito. A leitura do índice sinaliza esta importância: 1. Um itinerário para a análise da política de “escola a tempo inteiro”, 2. Enquadramento teórico e interpretativo – uma abordagem pela “análise das políticas públicas”, 3. Enquadramento da política de “Escola a Tempo Inteiro”, 4. Dimensão educativa da política de “Escola a Tempo Inteiro”, 5. “Dimensão política” da política de “Escola a Tempo Inteiro”: um “novo paradigma de escola pública”, 6. “Dimensão administrativa” da política de “Escola a Tempo Inteiro”: uma “nova forma de administração”, 7. O ponto de chegada da análise da política de “Escola a Tempo Inteiro” – As “ideias” construídas e o papel do Estado.

A partir de um corpus extenso produzido por diferentes atores em diferentes lugares e instâncias, o autor elege um objeto preciso: análise da ação do Governo [leia-se do Estado] na formulação e execução da política de Escola a Tempo Inteiro (p. 20); enuncia a relevância da dimensão simbólica das políticas públicas; explicita o Itinerário metodológico construído a partir da observação indireta de “lugares” de ação, através da análise de 618 documentos de diferente proveniência e autoria; clarifica o campo de estudo das políticas educativas [que] devem ser entendidas “como espaços comunicacionais e sociais nos quais se exprimem e interagem diferentes conceções e modos de relação com o mundo educacional” (Barroso, Carvalho, Foutoura e Afonso, 2007) (p.22) e organiza a sua análise a partir das teorias da regulação e da ação pública, considerando três dimensões analíticas - a educativa, a política e a administrativa.

 

Nesta recensão breve, seja-nos permitido destacar algumas ideias nucleares, quase todas já relevadas no prefácio de João Barroso:

i) As políticas educativas devem ser entendidas “como espaços comunicacionais e sociais nos quais se exprimem e interagem diferentes conceções e modos de relação com o mundo educacional” (Barroso, Carvalho, Foutoura e Afonso, 2007), como refere o autor na p. 22.

ii) Uma política pública é construída pela análise que dela é feita (Mény & Thoenig, 1992; Hassenteufel, 2008) e pelo conjunto dos discursos que a acompanham emitidos tanto pelos atores dessas políticas, quanto pelos observadores: jornalistas, investigadores…. (p. 31).

iii) A Escola a Tempo Inteiro (ETI) é um dispositivo ambíguo e diverso [é um bom slogan, como diria António Nóvoa], feito de múltiplas vozes que emergem de diferentes lugares (políticos, administrativos, centrais, periféricos).

iv) A concretização desta política pôs em confronto visões dicotómicas da educação escolar: “do trabalho e dos tempos livres”, “formal e informal”, curricular e extracurricular”, “fechada e aberta”, “escola antes e depois das 15h 30 m”, “a escola do Ministério e a escola da Câmara”, etc., como assinala João Barroso no prefácio (p.9).

v) A ETI acaba por ser corporizada, sobretudo através das “Atividades de Enriquecimento Curricular” (AEC), que se foram assumindo como uma “tirania da oferta” (Meny & Thoenig) [em que] são as autoridades públicas que modelam as necessidades acabando o ‘ público’ por aceitar como aspirações próprias os bens e serviços que as autoridades lhe oferecem (p. 35).

vi) Esta tirania impôs a forma escolar, reforçou o escolocentrismo [já denunciado por Correia e Matos], consagrou o transbordamento escolar, analisado por António Nóvoa, que teve como efeito perverso o empobrecimento cultural das crianças e das comunidades e dispensou outros atores institucionais e sociais de assumirem a responsabilidade coeducativa.

vii) O modelo dominante da ETI traduziu-se num dispositivo seletivo [porque privilegia atividades e atores], uniforme e coercivo [porque se impôs a projetos locais e a outros modelos de ocupação do tempo das crianças].

viii) A política da ETI é reveladora de uma administração (da educação) que assume um compromisso alargado e negociado com outras agências públicas e privadas, aceitando fazer inflexões face a processos de descentralização. No entanto, como nota o autor, o Estado [sobretudo através da ação do Governo] está sempre presente (p.92) e, em última instância, acaba por impor a sua leitura de interesse público e de escola pública.


Subjacente à ETI está o princípio de ocupação integral do tempo escolar (Pires, 2007). Mas este tempo tende a alargar-se e o tempo escolar tende a ser o tempo da vida diurna, a escola um lugar totalitário.

Progressivamente, os alunos passaram a ser obrigados a estar mais tempo na escola. A ideologia da ETI foi-se disseminando e naturalizando sob a pressão da desregulação e da escassez do tempo familiar. Paulatinamente, a escola foi sendo obrigada a ser tudo: lugar de instrução, de socialização, de estimulação; lugar de salvação para a progressiva desresponsabilização da sociedade, das famílias, das instituições sociais que operam no território; e também lugar de custódia, de guarda, de parque, de exílio.

Ora, este cenário é impossível de manter. A exploração do trabalho não pode minar toda a vida familiar e sobredeterminar a vida social. A Escola tem de recusar ser tudo. Os educadores e os professores não podem ser pau para toda a colher. Porque isto os desprofissionaliza e desautoriza. E porque pode destruir a missão central da escola, que não pode deixar de ser a promoção do conhecimento que emancipa, inclui e liberta.

Há, claramente, um excesso de escola que é preciso denunciar. Um excesso que transforma as crianças e os adolescentes em reféns de uma escolaridade obrigatória de natureza totalitária. E os professores em guardas quase prisionais.

Precisamos da coragem de ver e praticar saídas para este labirinto. Agindo numa regulação do trabalho que seja amiga das famílias. Criando respostas no território educativo que podem incluir os espaços escolares, mas também todos os espaços com potencial educativo. Dinamizando a ideia de uma polis educativa onde todos possam aprender mais. Criando equipas multidisciplinares que apoiem e cuidem do florescimento da vida.

É grande a tentação de transformar a escola numa estação de serviço idealmente aberta 24 horas por dia. Mas isto já não seria uma escola. E seria muito mau para a instituição educativa, para os alunos, educadores e famílias.

A investigação de Carlos Pires ajuda-nos a compreender os enredos de uma política, a multiplicidade de interesses que se jogam quase sempre em nome dos superiores interesses das crianças. Mas não é líquido que assim seja. Também por isso vale a pena ler este livro.

 

Contacto:

José Matias Alves, Faculdade de Educação e Psicologia, Universidade Católica Portuguesa, Rua Diogo Botelho 1327, 4169-005 Porto, Portugal / alves@porto.ucp.pt

 

(recebido em março de 2016, aceite para publicação em março 2016)

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