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Da Investigação às Práticas

On-line version ISSN 2182-1372

Invest. Práticas vol.6 no.1 Lisboa Mar. 2016

 

ARTIGOS

“Os crescidos vão para o colo dos crescidos …é só os crescidos!” Direitos de Participação das Crianças em Centros de Acolhimento Temporário

 

Eunice Paula

Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Lisboa eunicepaula@hotmail.com  

Contacto

 

Resumo

O presente artigo parte da questão “quais as vivências e a participação das crianças pequenas e quais as representações sociais dos adultos e crianças relativamente às crianças pequenas?”, em contexto de Centro de Acolhimento Temporário (CAT). Trata-se de uma investigação de natureza qualitativa, nomeadamente com uma natureza etnográfica, em que se procurou colocar em diálogo duas áreas de conhecimento: a educação de infância e a sociologia da infância. As técnicas de investigação utilizadas foram as entrevistas-conversa, com as crianças mais crescidas; o questionário e o focus group, com os adultos; e a observação, com os bebés.

Conclui-se que os bebés (0 aos 2 anos) que se encontram em dois CAT parecem permanecer realmente numa invisibilidade social, não lhes sendo totalmente garantido o direito à participação. Isto deve-se ao facto de não existir um modelo pedagógico (participativo) praticado neste contexto com estas crianças e permanecerem representações e imagens sobre as crianças assentes numa perspetiva de passividade, incompetência e incapacidade.

Palavras-chave: Participação dos bebés; Acolhimento Institucional; Direitos da Criança

 

Abstract

This article started from the question «What are the little children’s experiences and participation and what are the social representations of adults and children regarding little children? », in Temporary Foster Homes (TFH). This research is of a qualitative nature and, in fact, adopts an ethnographic nature. It tries to create a dialogue between two fields of knowledge: childcare and sociology of childhood. The research methodologies used were interviews for the oldest children; quizzes and focus groups for the adults; and, mainly, observation for the babies.

With this research we can conclude that babies (from 0 to 2 years old) that live in two TFH located in the district of Lisbon seem to remain in their social invisibility, without being granted any right to participation. This is due to the fact that there isn’t a pedagogic (participatory) model in practice in this context with these children and that the representations and children’s image is still based on perspective declaring it as a passive, incompetent and unable being.

Keywords: Babies’ participation, Institutional Fostering, Children’s Rights

 

Résumé

Cet article part de la question «Quelles sont les expériences et la participation des jeunes enfants et quelles sont les représentations sociales des jeunes enfants chez les adultes et les enfants?» dans le contexte d'établissements d’accueil temporaire. Il s’agit d’une recherche qualitative, plus précisément de nature ethnographique, où nous avons essayé de faire dialoguer deux domaines de connaissance: l'éducation de l'enfance et la sociologie de l'enfance. Nous avons utilisé les techniques de recherche suivantes : des interviews, des entretiens avec les enfants plus âgés; un questionnaire et des groupes de discussion avec les adultes et l'observation avec les bébés.

Nous concluons que les nourrissons (0 à 2 ans) rencontrés dans deux établissements d’accueil semblent véritablement demeurer une invisibilité sociale et leurs droits de participation ne sont pas pleinement garantis. Ceci du fait qu'il n’existe pas de modèle pédagogique (participatif) pratiqué dans ce contexte avec ces enfants et que les représentations et les images d'enfants restent basées sur une perspective de passivité, incompétence et incapacité.

Mots-clés: participation des bébés; Accueil institutionnel; Droits de l'enfant

 


INTRODUÇÃO

A investigação a que se refere este artigo é um estudo qualitativo que assume uma natureza etnográfica, de âmbito interdisciplinar, uma vez que procura colocar em diálogo duas áreas de conhecimento: a educação de infância e a sociologia da infância. Teve como principais objetivos: (i) mapear as vivências das crianças em Centro de Acolhimento Temporário (CAT) a partir da lente dos Direitos das Crianças, com centralidade na desocultação das “vozes” e ação das crianças muito pequenas; (ii) caracterizar as representações dos indivíduos – equipa técnica, voluntários e crianças – que estão próximos dos bebés acolhidos, sobre a participação dos bebés nestes espaços; (iii) escutar a voz dos bebés relativamente à sua participação no contexto de CAT.

Devido à diminuta investigação realizada no âmbito da sociologia da infância com bebés, este estudo parece apresentar-se enquanto estudo inovador, revestido, contudo, de muitos constrangimentos originados sobretudo por questões éticas, metodológicas e temporais.

Neste estudo, as crianças são consideradas enquanto atores sociais competentes e sujeitos de direitos pertencentes à categoria social de tipo geracional (Sarmento, 2004) da infância.  Na sociedade, apesar de se assistir a uma crescente mudança na forma como as crianças são consideradas, parece ainda que as crianças pequenas são pouco consideradas enquanto atores sociais e sujeitos de direitos (Sarmento, 2000; Coelho, 2004; Sarmento & Marques, 2006; Fernandes, 2009; Coutinho, 2010; Tomás, 2011; Vasconcelos, 2011). Em contexto de acolhimento institucional, em que as crianças se encontram sob responsabilidade de vários adultos, existe a necessidade de envolver um maior esforço para garantir a promoção dos direitos das mesmas, mais ainda quando nem sempre se constituíram como espaços de garantia desses direitos. E, para que os direitos destas crianças pequenas possam ser considerados com maior atenção pelas autoridades estatais e institucionais, há a necessidade de realizar estudos no sentido de as conhecer, e à sua ação social e competência de participação ativa nesses mesmos contextos.

Após a definição da questão de partida – quais as vivências e a participação das crianças pequenas e quais as representações sociais dos adultos e crianças relativamente às crianças pequenas? –, foram definidos dois eixos de investigação:

A) Quais as representações sociais dos indivíduos próximos às crianças pequenas em CAT acerca da infância, da criança e dos direitos das crianças?

B) Como é promovida a participação das crianças no quotidiano dos CAT? 

 

A partir destas questões, foram definidas três dimensões de análise:

- Dimensão macro, no plano das políticas de infância

- Dimensão meso, no plano da organização documental da instituição

- Dimensão micro, no plano da prática pedagógica

 

É de realçar que estes estudos são, por agora, escassos no nosso país, sendo, contudo, fundamentais para contribuir para a promoção e garantia dos direitos das crianças e, de alguma forma, para o conhecimento do acolhimento de crianças pequenas.

 


ROTEIRO METODOLÓGICO

Natureza do estudo


É um estudo que assume uma natureza etnográfica com base numa análise interpretativa e compreensiva do fenómeno em análise. A estrutura da investigação implicou que, metodologicamente, se centre numa abordagem de natureza qualitativa, e que a estratégia definida se tenha centrado num ecletismo relativamente às técnicas de investigação utilizadas: entrevistas, questionários, focus group e observação. No final, foi realizado o cruzamento das duas dimensões no sentido de procurar resposta a outras questões.

A pesquisa com os bebés decorreu em contexto de CAT, por procurar conhecer este grupo tendo como enfoque a intenção de ouvir estas crianças – os bebés – relativamente à sua ação social neste contexto. Isto porque se considerou que o bebé é um ator social competente para a interpretação da realidade social em que se insere (Fernandes, 2006; Coutinho, 2010; Vasconcelos, 2011).

Pretendendo-se uma inspiração participativa, a investigadora procurou adequar a sua atitude às exigências do meio e à natureza do estudo – realizando uma participação consentida gradualmente por parte das crianças e dos adultos da forma mais sensível possível.

Do ponto de vista metodológico, para o tratamento das informações recolhidas, optou-se por fazer aproximações interpretativas (Lopes, 1998) dos dados.

 


O campo e a amostra

Foram selecionados dois CAT, denominados no estudo de CAT1 e CAT2, tendo em conta o novo paradigma de acolhimento institucional, que apresentam um ambiente acolhedor e familiar, acolhendo respetivamente 12 e 14 crianças com idades compreendidas entre os 0 e os 12 anos. Os CAT possuem equipa técnica e educativa.

O grupo de seis bebés surge enquanto amostra de oportunidade (Woods, 1999 citado em Tomás, 2011a), denominada de universos de análise qualitativa em métodos indutivos, que pretende constituir uma representatividade social dos bebés em contexto de CAT (Guerra, 2006).

 


Roteiro ético

No presente estudo, teve-se em consideração, no que respeita à ética e deontologia, o direito à confidencialidade dos dados e o anonimato de todos os sujeitos e instituições. Recolheu-se o consentimento informado de adultos e crianças mais crescidas e, ao longo do tempo de observação, as crianças mais pequenas foram dando o seu assentimento (cf. Ferreira, 2010) de diferentes formas.

 


A escolha dos nomes: reflexo de conceções

Solicitou-se a participação das crianças mais crescidas – em reunião geral – na atribuição de um nome fictício para si próprias. A maioria escolheu nomes de personagens de desenhos animados de acordo com as suas preferências.

Relativamente aos nomes das crianças mais novas, sujeitos de observação, a equipa técnica optou por escolher os nomes de acordo com características físicas e/ou de personalidade.

 


Análise e discussão de dados

A análise de conteúdo foi realizada recorrendo à construção de uma breve narrativa biográfica (utilizada na caracterização das crianças e suas histórias de vida) e posterior análise interpretativa dos dados recolhidos de acordo com uma categorização elaborada.

 


APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE RESULTADOS

1. Conceções (contra) hegemónicas sobre os bebés


1.1 A voz dos bebés

“A sociologia da infância tem contribuído para pensarmos as crianças como atores com potência de ação” (Delgado e Nörnberg, 2013, p. 151)

Partindo da voz dos bebés, procurou-se compreender o que estes nos dizem acerca de si próprios, isto é, qual a sua conceção de bebé ou, por outras palavras, como respondem à questão: “quem sou eu?”.

Em toda a sua ação, ao contrário do que alguns adultos defendem dizendo que estes são “o futuro”, considera-se neste estudo que os bebés parecem querer dizer “ei, nós estamos aqui, somos atores sociais e, como tal, estamos ativos e tomamos decisões no tempo a que os adultos chamam de agora/presente”.

Os bebés foram observados na sua rotina diária, durante a qual desenvolveram as suas competências de exploração, descoberta, comunicação, criação, construção de significado, interações e comportamentos divergentes, entre outros (Ferreira, 2004; Coutinho, 2010; Tomás, 2011). Procurou-se conhecer, assim, as oportunidades de participação dos bebés e a relação da sua participação, no exercício das suas competências, com a organização do espaço e do tempo em CAT – de que forma inibia ou promovia a participação dos bebés.

Os bebés foram observados a realizar escolhas (mostrando as suas preferências e interesses), a tomar decisões, a observar (a rotina diária típica de uma casa de família: a limpeza do espaço pela assistente de serviços gerais, a confeção das refeições pela cozinheira e pelos voluntários, as crianças mais crescidas a brincarem e a estudarem, e também as interações entre adultos e entre adultos e crianças, incluindo também, entre mães/pais e os respetivos filhos), a explorar (brinquedos, mobiliário, espaço exterior, os quartos), a descobrir, a desenvolver comunicações (verbal e corporal; de necessidades, preferências, desejos, conquistas, vitórias, desacordos, desagrado) com os pares e adultos, além da conhecida reprodução de comportamentos dos adultos. Esta participação dos bebés em CAT é a ação mais predominante, sendo realizada em momentos de privacidade ou em interação com os pares e/ou adultos.

Os bebés apresentam-se enquanto autênticos exploradores de todo o espaço que lhes está acessível e, por vezes, enquanto conquistadores de espaços que se encontram mais reservados (por exemplo, os gabinetes dos técnicos, a despensa, a cozinha, a casa de banho das crianças mais crescidas, a sala de estudo).

Neste estudo, ficou a compreender-se também que o combinar do sentido de pertença – ao espaço e ao grupo – que envolve os bebés em CAT e a necessidade de estabelecer relações seguras com pares e adultos são os propulsores do desenvolvimento da sua ação e participação neste contexto. Isto é visível nas chamadas de atenção do Bomboca, no comportamento agressivo do Thor e na atitude dependente da Moranguinho.

Percebe-se, também, que o significado de participar, para estes bebés, possa ser traduzido em toda a sua ação social no espaço social em CAT que funciona simultaneamente enquanto voz dos bebés. Esta voz, por não ser audível, exige alguma sensibilidade e metodologia de escuta (com uso de instrumentos) por parte de quem realiza a respetiva escuta.

Partindo ainda do pressuposto de que um ator social ocupa determinado lugar no grupo social em que se encontra inserido e considerando que este estudo, no âmbito da sociologia da infância, procura conhecer o grupo de bebés em CAT e a sua participação no seu contexto de vivência, parecia fazer sentido considerar e descobrir as culturas infantis (Sarmento, 2004) produzidas pelas crianças, com e sem a influência do mundo dos adultos. Assim, procurando orientação para o estudo, no sentido de conhecer o grupo dos bebés em CAT e a estruturação das relações sociais destas crianças, e considerando o que diz Fernandes (citado em Coutinho, 2010, p.136), questionou-se se faria sentido considerar as relações de género, a classe social destes bebés, a raça, a nacionalidade e a idade.

Neste sentido, relativamente à ação social das crianças, e numa perspetiva sociológica, surge a questão: que fatores influenciam a diferenciação das crianças no respetivo grupo? Será que a classe social da criança tem influência na posição que ocupam no grupo e nas relações entre pares? Mas afinal a que classe social pertencem estes bebés?

Parecem existir fatores que proporcionam uma diferenciação na posição que cada criança ocupa no grupo e que influenciam as interações dessa mesma criança com os seus pares e adultos, e a sua ação no espaço do CAT. Esses fatores passam pelas caraterísticas intrínsecas de cada criança – físicas e psicológicas: facilidade na sociabilização, poder de empatia com adultos e crianças, temperamento, cor de pele e outras. Os adultos parecem relacionar-se com as crianças, sofrendo grande influência das suas preferências, e mais especificamente com as crianças com as quais mais se identificam.

Os fatores extrínsecos às crianças que influenciam o lugar por elas ocupado no grupo – status (Ferreira, 2004) – podem ter influência de fatores intrínsecos às crianças ou serem fatores ambientais, organizacionais ou de outra natureza. Exemplos de fatores que parecem elevar o status da criança no grupo são:

- Ter o privilégio de sair do CAT – ir de fim de semana a casa da família biológica, de um funcionário ou de um voluntário do CAT;

- Ter uma mãe que frequenta o CAT – por se encontrar em avaliação das competências parentais;

- Ter um irmão mais velho acolhido no mesmo CAT – que o protege em situações de conflito com outras crianças, promovendo um sentimento de segurança e fomentando assim a sua autoconfiança e determinação.

 


1.2 Conceções das crianças mais crescidas

O discurso das crianças mais velhas reflete algumas perspetivas encontradas também no discurso dos adultos, mas principalmente na sua ação.

Relativamente à conceção de criança, algumas crianças identificaram-se enquanto tal e apresentaram inclusive um discurso que aparentava alguma intenção no âmbito da defesa dos seus direitos e de imposição da sua existência e das suas capacidades.

Outras crianças excluíram-se do grupo crianças, reduzindo o conceito de criança ao grupo dos bebés. Estas crianças referem-se aos bebés usando entoação pejorativa e diminuída.

Várias crianças fizeram uma abordagem emocional ao conceito de criança, fazendo referência ao choro enquanto característica exclusiva dos bebés e de fraqueza. Veem a felicidade enquanto direito a ser garantido aos bebés, mas como algo que pode já ter sido perdido para algumas crianças. Outras abordaram a questão de uma forma mais filosófica, definindo os bebés como um recomeço, uma vida nova.

A criança mais nova, o Ruca, de 3 anos de idade, tinha em mente a conquista da investigadora para que esta lhe desse colo. Como tal, as suas respostas focaram-se na sua necessidade de colo, ainda que pudesse garantir a sua identificação com os crescidos. Uma dualidade: querer ser crescido, mas ter necessidades de ser bebé.

“Os crescidos vão para o colo dos crescidos … é só os crescidos! … os bebés sentam-se nas cadeiras dos bebés. Os crescidos não choram … e vão para a rua (brincar).

Os bebés fazem uáuá (choram) … (risos) … e brincam com os crescidos … sim … eu sou crescido. Os bebés e os crescidos vão para casa dos pais e das mães … e os cães também … vão pó colo. Onde está o meu cão? (procura o cão) … é este! (agarra o peluche e mostra-o)” (Ruca, 3 anos)

 


1.3 Conceções dos adultos

Relativamente ao conceito de infância, os profissionais da ação social, psicologia e educação delimitam a infância desde o nascimento até à pré-adolescência ou adolescência, alguns indicam mesmo os 12 anos como limite máximo de idade. O pessoal auxiliar e voluntários definem infância de forma subjetiva, recorrendo a experiências pessoais e emocionais, e delimitam a infância entre os bebés e os adolescentes. Apenas a Assistente Social do CAT2 recorreu à definição de criança usada na legislação.

Na maioria, a definição de criança aparece enquanto ser em crescimento e em desenvolvimento, e totalmente dependente dos adultos, sendo evidenciada a permanência de representações e imagens sobre as crianças assentes numa perspetiva de negatividade constituinte (Sarmento, 2004).

Os participantes do focus group referem repetidamente a fragilidade e a total dependência enquanto característica definidora dos bebés, relacionando-a, ainda, com a necessidade de proteção e cuidados. Delimitam a idade dos bebés entre os 0 e os 3 anos.

Ainda assim, alguns adultos reconhecem que os bebés podem surpreender no que respeita às suas competências e capacidades, que surgem aqui como algo que transcende as expetativas globais dos adultos e crianças crescidas. Não obstante, é referida reiteradamente a necessidade de estimulação dos bebés e a responsabilidade dos adultos, enquanto figuras de referência e modelos, nessa estimulação.

Os técnicos participantes do focus group consideraram que criança, bebé e infância eram conceitos muito semelhantes, quase equivalentes. Durante o focus group, surgiu frequentemente uma visão no âmbito das pedagogias da transmissão, que, centradas na passagem de conhecimento às crianças, consideram o papel do adulto decisivo no seu desenvolvimento. As crianças parecem ser vistas essencialmente enquanto seres passivos e recetores de conhecimento passado pelos adultos.

 


2 Direitos dos bebés em CAT

2.1 Direitos … pela voz dos bebés

 

- Sou um sujeito de direitos … e tenho voz ativa -

Os bebés, quando em interação com os adultos e outras crianças mais crescidas, esforçam-se por fazer valer os seus direitos. Assim, observou-se os bebés a comunicarem as suas opiniões relativamente às atividades e tarefas diárias – comunicações claras de aprovação (colaboração e celebração com palmas e risos no caso de completo consentimento em relação a algo) ou reprovação (evitamento da atividade ou tarefa e protestos diversos que demonstravam claramente o seu descontentamento).

- Tenho direito à privacidade -

O direito dos bebés à privacidade no CAT é exercido aquando da organização de espaços que promovam momentos a sós ou com um par, conferindo-lhes momentos de extremo bem-estar. Nestes CAT, existem recantos e espaços de tamanho reduzido e confortáveis que promovem estes encontros consigo próprios ou com outros em privacidade, nomeadamente: o quarto dos bebés, que é maioritariamente frequentado e dedicado a estes; o berço dos bebés, que possibilita momentos de descanso em privacidade por existir a possibilidade (usando as mantas e almofadas) de representarem uma espécie de toca ou casulo; armários que possuem a primeira prateleira vazia, criando-se assim um nicho convidativo e aconchegante; espaços entre os sofás, criando um canto confortável para um momento de descanso e ainda os espaços por baixo da cama e atrás da porta, que promovem breves momentos de ausência destas crianças.

Já no que respeita aos contactos pessoais com a família, parece não existir a garantia da privacidade suficiente aos bebés, por existir constrangimentos no âmbito da sua proteção, nomeadamente, o cumprir do acordo de promoção e proteção assinado com a CPCJ e com o próprio CAT, no sentido de garantir o superior interesse da criança. Assim, os bebés (por exemplo, o Playmobil) recebem a visita da sua família, regra geral, na sala de estar, onde se encontram outras crianças e adultos (funcionários e voluntários).

Relativamente ao direito ao grau de autonomia na condução da sua vida pessoal, adequado à sua idade e situação, no caso dos bebés, e tendo em conta o delinear do seu projeto de vida, parece que, devido às conceções existentes acerca dos bebés e à elevada complexidade na sua audição, estes não exercem grande influência nesta área, ainda que, por vezes, surjam no discurso adulto algumas referências às reações dos bebés às visitas dos pais, o que demonstra, ainda assim, preocupação com o consentimento dos bebés relativamente à intervenção das técnicas neste âmbito.

- Tenho direito à educação, à saúde, à cultura e ao lazer -

Deu-se conta de que os bebés, ao permanecerem em CAT e não tendo acesso à creche ou a outros contextos educativos, têm este direito condicionado exclusivamente pelo que o CAT lhes possa oferecer.

As atividades culturais, desportivas e recreativas surgem essencialmente enquanto presente de empresas amigas. Com uma maior frequência, os bebés têm acesso a momentos de brincadeira no parque infantil do CAT e também no da comunidade envolvente. No que se refere a desporto, os bebés não têm previstas atividades, exceto os passeios de triciclo e a atividade motora realizada durante os momentos de brincadeira livre. 

Os cuidados de saúde são assegurados pelos técnicos do CAT sob orientação médica obtida em Centros de Saúde e também através da colaboração de voluntários no âmbito da fisioterapia (no CAT1).

A garantia de uma educação que garanta o desenvolvimento integral da sua personalidade e das potencialidades é desenvolvida pelos técnicos e voluntários, sendo estes últimos os principais intervenientes no que respeita aos bebés.

- Outros direitos -

Os bebés veem garantido também o direito a não serem transferidos da instituição, salvo quando essa decisão corresponda ao seu interesse, como o caso de Thor e de Playmobil, que estiveram, respetivamente, em acolhimento com a mãe e em centro de acolhimento de emergência.

O direito a uma família, apesar de não estar expresso na listagem dos direitos das crianças acolhidas, é o mais referido pelos adultos, por considerarem tratar-se do objetivo a alcançar através da intervenção da equipa do CAT.

Alguns dos direitos enunciados na legislação e no regulamento interno – receber dinheiro de bolso; ter garantida a inviolabilidade da correspondência; e contactar, com garantia de confidencialidade, a comissão de proteção, o Ministério Público, o juiz e o seu advogado – são indicados enquanto direitos exclusivos das crianças mais crescidas, ainda que não haja referência a uma idade concreta para o início do gozo destes.

 


2.2 Direitos … pela voz das crianças mais crescidas

As crianças mais crescidas apresentam sobretudo um discurso voltado para as necessidades físicas dos bebés. Este converge quase sempre para as chamadas de primeira necessidade – alimentação, sono – e também para o brincar. Por vezes, algumas regras – “não portar mal”, “estar em silêncio” – aparecem também enquanto necessidades dos bebés.

Numa perspetiva aparentemente ‘adultocêntrica’, algumas crianças referem a necessidade de ajuda sem especificarem a que se referem. Estas crianças também recorrem à roupa e aos alimentos enquanto necessidades que vêm ser supridas no CAT, sendo apoiadas por elementos exteriores (por exemplo, angariações, doações etc.). Referem, ainda, que os bebés em CAT têm maior necessidade, fazendo uma menção quantitativa com a utilização da palavra “muito” para evidenciar essa necessidade.

O Ruca, a criança mais nova do grupo das crianças mais crescidas, aproveitou este tema para apresentar parte de recordações que guarda da sua família biológica e evidenciar, de certa forma, a necessidade, e o direito, de os bebés e crescidos terem uma família e uma casa. Tal necessidade não foi referida pelas outras crianças de forma tão direta. Esta criança atribuiu tanta importância à necessidade/direito à família e a uma casa que solicitou à investigadora que realizasse o registo escrito.

 


2.3 Direitos … pela voz dos adultos

No focus group, os adultos apontaram, enquanto principais necessidades dos bebés acolhidos, o estabelecimento de relações afetivas estáveis, a prestação dos cuidados e a proteção dos bebés relativamente ao perigo que motivou o acolhimento e também o perigo da exposição e do convívio com as crianças mais crescidas.

Quando se fala em direitos das crianças, os adultos referem-se principalmente ao direito à família. A intervenção dos CAT é apresentada sempre com o intuito de garantir o direito a uma família, estando os restantes direitos também contemplados.

 Em contexto de CAT, e ainda no âmbito do direito à família, os técnicos referem a necessidade de assemelhar o quanto possível este contexto a uma família. Comparam o grupo das crianças e dos adultos a uma família e dizem esforçar-se para que estas crianças tomem um lugar semelhante ao de filhos e, consequentemente, serem irmãos uns dos outros.

Nas entrevistas, os adultos mantêm o discurso referente ao direito a uma família (cf. Cunha 2007; Fernandes, 2009; Tomás, 2011), referindo-se pontualmente a outros direitos, nomeadamente, direitos de provisão e proteção.

O direito à participação não foi referido diretamente por nenhum dos adultos, com exceção de uma auxiliar que toca no direito à liberdade de expressão e outra voluntária internacional que se refere ao direito à intimidade.

 


3. A participação dos bebés em CAT

3.1 A participação dos bebés na investigação: entre desafios e constrangimentos

A investigadora surge no quotidiano das crianças enquanto um elemento com pouca interação (a pedido dos CAT), isenta de funções de cuidados ou de supervisão, e munida de escasso material – apenas um caderno e uma esferográfica. Ao longo do tempo, as crianças foram convidando a investigadora a participar nas suas brincadeiras, pedindo apoio para ultrapassarem dificuldades, solicitando alguma mediação ou proteção nos conflitos com os seus pares, solicitando afeto, e desafiando-a para brincar e participar de tal forma que não era possível continuar numa perspetiva de observação não participativa.

Devido à necessidade de gerir a participação e a presença da investigadora, por solicitação dos CAT, esta manteve o seu anonimato durante grande parte do tempo.

O caderno e a esferográfica foram alvo de muita curiosidade, visto serem materiais que não eram muito utilizados pelos bebés no contexto de CAT. Para algumas crianças, pareciam ser materiais que outrora foram proibidos e que, portanto, eram alvo de um enorme desejo de posse, tal como se fosse um tesouro.

As crianças mais crescidas mostravam curiosidade pelo que era escrito, chegando mesmo a solicitar a leitura de pequenos excertos, a escrita e a realização de desenhos no caderno da investigadora, o que foi permitido, incentivado e negociado de forma a garantir oportunidades de participação destas e de tempos de observação dos bebés (cf. Fernandes, 2009; Coutinho, 2010; Tomás, 2011).

 


3.2 Bebés, participação e espaço: o CAT

Os bebés deram a conhecer o seu espaço nos CAT e revelaram o vasto leque de locais que sofrem a sua influência e que os influenciam, uns mais conhecidos e outros mais secretos.

O espaço está organizado em áreas distintas para cuidados (berçário) e para o jogo (sala de lazer e sala psicopedagógica – no CAT1). Este último, no entanto, é reduzido (no CAT2) e tem pouca identidade própria (Oliveira-Formosinho & Araújo, 2013). Prece criar, assim, poucas oportunidades e pouca diversidade de aprendizagem devido ao reduzido número de brinquedos e materiais disponibilizados às crianças.

O CAT1 apresenta um grande potencial, devido à grande dimensão da sala de lazer e ainda à existência de uma sala psicopedagógica (dedicada a momentos de brincadeira com os bebés), para a criação de áreas que contenham diferentes materiais.

Os bebés não parecem ver os espaços da mesma forma que os adultos. Participam, mostrando a sua vontade de conquistar espaços proibidos (gabinetes dos técnicos, despensa, cozinha e lavandaria), ainda que, à medida que ocorrem novas experiências de interação com os adultos, os bebés começam a perceber os obstáculos e, por um lado, percebem que não lhes é permitido, mas por outro, tentam escapar-se e alcançar este espaço desejado. Tal como refere Sarmento (2011), falando e valorizando a rutura da criança com o adulto enquanto forma de participação, a participação divergente não é menos participação por ser divergente, consistindo a participação no mobilizar do esforço, na ação, e na vontade dos indivíduos e dos grupos sociais para construírem um espaço comum.

As crianças do CAT1 frequentemente deambulavam pela casa, parecendo mostrar, através da sua atitude de confiança, que consideravam todo o espaço como sendo seu, ainda que, na maioria das vezes, algum adulto as fazia regressar à sala de estar/lazer. As crianças do CAT2 permaneciam preferencialmente na sala de estar, sob vigilância permanente de pelo menos um adulto e, muito pontualmente, deslocavam-se a outros espaços do interior da casa (o quarto dos bebés e a sala de estudo).

Assim, no CAT1 era desenvolvida uma exploração ativa por parte dos bebés de quase todo o espaço do CAT e dos objetos que constituem os mesmos. Sendo consequência da supervisão algo deficitária praticada, elevando-se a autonomia dos bebés, o grau de autonomia e o poder de decisão, aumentava também o risco de acidentes domésticos em que os bebés se podem envolver. No CAT2, era desenvolvida uma exploração livre mais restrita (centrada em brinquedos), com supervisão garantida, apostando-se numa maior permanência na sala de estar, não sendo a pedagogia praticada sempre consistente e participativa. Este espaço é mais reduzido comparativamente com o CAT1.

Os adultos referem que o espaço interior do CAT é de livre utilização por todas as crianças, indicando que não existe nenhum espaço exclusivamente dedicado aos bebés. O quarto dos bebés, no entanto, é apontado enquanto espaço próprio dos bebés, mas não é um espaço para as atividades deles, ainda que seja o local em que são realizadas as rotinas de cuidados de higiene e de descanso.

O berçário apresentou-se enquanto espaço exclusivo à utilização dos bebés, sendo decorado e equipado e tendo em conta as atividades de cuidados aos mesmos. No berçário do CAT1, existe ainda uma cama com gavetão para acolher crianças em situações especiais, de acordo com as caraterísticas e perfil das crianças. O sentimento de pertença dos bebés relativamente ao espaço do berçário fazia-se evidenciar nos comportamentos que demonstravam a sua participação na afirmação da sua vontade no que diz respeito à permissão, ou não, da entrada e da permanência de outras crianças neste espaço dedicado aos bebés.

Em ambos os CAT, nota-se – e é mesmo confessado pelos técnicos – o predomínio das crianças mais crescidas na gestão e utilização do espaço da sala de estar/lazer e também no maior poder de influência na organização de todo o espaço do CAT. Os bebés são vistos como “a exceção” ou o grupo minoritário, influenciando a organização do espaço no que respeita àquilo a que não podem ter acesso por motivos de segurança, quase numa perspetiva da negatividade constituinte que definia a criança pelo que não é (Sarmento, 2004).

No CAT1, a sala de lazer é um lugar imenso e, como tal, possui vários espaços de estar e de brincar. Vocacionado para crianças pequenas, tem um “cantinho da casinha” e um “cantinho de brinquedos”. No entanto, existem poucos brinquedos e alguns apresentam-se incompletos ou em mau estado de conservação. Outros materiais – livros e jogos – encontram-se fora do acesso das crianças. No CAT2, existe um “cantinho dos brinquedos”, onde as crianças têm livre acesso a um conjunto de brinquedos – cozinha, bebés, jogos musicais – e podem obter acesso a livros com o apoio de um adulto (visto estarem arrumados em prateleiras elevadas).

As atividades privilegiadas dos bebés em CAT podem ser resumidas a: cuidados de higiene/alimentação, descanso e brincadeira.

Os adultos consideram que as crianças utilizam livremente todo o espaço do CAT. No entanto, entendem que existem espaços mais frequentados pelos bebés: a sala de lazer e de refeições, a sala psicopedagógica (no CAT1) e o espaço exterior (no CAT1).

A sala de refeições era utilizada por todas as crianças e as refeições eram fornecidas neste espaço ou na cozinha (no CAT1) – primeiro aos bebés e mais tarde aos crescidos.

Enquanto espaços perdidos, surgem, no CAT1, a sala psicopedagógica (que passou de espaço maioritariamente dedicado aos bebés a espaço de informática e de atendimento no âmbito da psicologia às crianças mais crescidas), e no CAT2, o espaço exterior (por constrangimentos no âmbito da segurança e das condições meteorológicas). Consequentemente, alguns bebés não sabem utilizar o espaço exterior e sentem-se inseguros em explorá-lo.

ainda outros espaços utilizados pelas crianças, considerados espaços conquistados – casa de funcionários/voluntários – por algumas crianças que, pelas suas características específicas, cativam mais alguns dos adultos, criando assim uma empatia especial e um desejo de levá-las a casa e presenteá-las com novas vivências e experiências a que não têm acesso em contexto de CAT.

O espaço da casa da família de origem pode tornar-se numa conquista – no caso de Thor e da Sininho – ou pode originar um drama na vida da criança – no caso da Conguita.

Os adultos referiram-se ainda à casa de banho enquanto espaço de utilização exclusiva das crianças mais crescidas, e à sala de estudo enquanto espaço adequado para crianças crescidas, mas que se encontra aberto à circulação dos bebés. Ainda no âmbito dos espaços que os bebés não frequentam, apenas a Diretora Adjunta do CAT1 referiu os gabinetes de trabalho dos adultos, mencionando que estes são espaços que as crianças não utilizam e que, inclusive, tal faz parte das regras da casa.

 


3.3 Bebés, participação e tempo

 

- Tempo educativo: tempo de cuidados e tempo pedagógico -

Apesar de não estar definida rotina das crianças com idades inferiores a 3 anos em Regulamento Interno, a rotina que se desenvolve nos CAT contempla tempos de atividades diversificadas. Esta indefinição é justificada por se considerar a especificidade e individualidade dos ritmos e necessidades destas crianças. A ocorrência dos diversos tipos de atividades – individuais, pequeno grupo ou grande grupo –, que implica diferentes oportunidades de participação dos bebés, surge de forma espontânea, em ambiente familiar, sem que sejam planificadas pelos adultos, ocorrendo de acordo com o que vai acontecendo em interação com as crianças e adultos.

O tempo da manhã é o momento privilegiado para as atividades dos bebés, à semelhança do que se passa em creche. Maioritariamente, as atividades dos bebés podem ser consideradas tempos de escolha livre (em ambos os CAT), tempo de exterior (no CAT1) e/ou momentos de recreio. Neste período de tempo, as crianças têm oportunidade de escolher as atividades que desejam realizar. Esta escolha vai sendo condicionada pelo espaço que ocupam, pelos materiais disponíveis e acessíveis às crianças e pelos interesses pessoais de cada criança. As crianças vão escolhendo e realizando as suas explorações de forma natural e espontânea, à medida que deambulam pelo espaço, não existindo um tempo e acompanhamento destinado ao planear de atividades com as crianças. Estas crianças não são incentivadas a iniciar-se no processo de planear-fazer-rever (Oliveira-Formosinho, 2013).

As crianças mais crescidas indicam o espaço interior como o principal espaço de ação dos bebés e reduzem a atividade dos bebés ao dormir, à alimentação e ao brincar. São referidas, por estas crianças, atividades exclusivas dos bebés e das crianças mais crescidas, indicando, inclusive, que as atividades dos bebés são menos importantes ou simplistas. Já os crescidos são privilegiados com atividades realmente importantes e complexas. São também privilegiados com espaços próprios para este grupo – sala de estudo, exterior e espaços públicos para atividades lúdicas.

É referido também por várias crianças que os bebés veem televisão ao longo do dia e ainda no final do dia com as restantes crianças que chegam da escola. Esta representação advém de desejos próprios destas crianças, pois a televisão é uma atividade prazerosa, e também das suas experiências quando permanecem doentes em casa e passam parte do tempo assistindo a filmes animados.

Em momentos de arrumação de brinquedos, observou-se o emergir de várias funções do adulto enquanto mediador, facilitador e coparticipante ativo no processo de decisão com as crianças (Sarmento, 2011), ainda que, na maioria das vezes, ocorria simplesmente um processo do tipo transmissivo em que o educador dava instruções à criança para que esta realizasse, sem que houvesse espaço para a realização de escolha e tomadas de decisões pelas crianças.

De acordo com o observado, e referido pelos adultos, de tarde, cabia aos voluntários garantir a proteção dos bebés em interação com as crianças mais crescidas que chegavam da escola.

Os tempos de cuidados ocorrem durante todo o dia: o banho, o pequeno-almoço, a muda de fraldas, a higiene antes e após as refeições, o almoço, a sesta, o lanche, o jantar, o vestir o pijama e o deitar. Estes são momentos privilegiados para aprendizagem ativa com o apoio do adulto. No entanto, apresentam alguns constrangimentos para a participação das crianças: a escassez de pessoal auxiliar durante o tempo em que as crianças mais crescidas estão na escola (no CAT1), a não existência de uma área dedicada à higiene dos bebés na sala de estar (no CAT1) e/ou sala psicopedagógica, a diversidade de tarefas que cada adulto tem de desempenhar (não existindo, por isso, um adulto exclusivamente para se dedicar ao trabalho com os bebés), entre outros. No CAT2, foi observado o momento de muda de fralda após a sesta, tendo sido um momento com a participação da educadora social, em que foi visível a capacidade de ação e interpretação da sua ação por parte dos bebés (Coutinho, 2010; Sarmento, 2011) e o elevado envolvimento destas crianças nas coisas que lhes dizem respeito, neste caso, a sua higiene corporal. Como exemplo, fica a observação do Thor, que, considerado pela maioria como sendo uma criança muito difícil, revela neste episódio a sua competência e a sua necessidade de ver considerada a especificidade da sua participação (Fernandes, 2009; Tomás, 2011; Sarmento, 2011).

 


- Tempos de afetos -

Foram observados diversos tempos de afeto, nos quais as crianças envolvidas em interações com os adultos e outras crianças desenvolvem as relações afetivas, demonstrando e recebendo carinho. Desta forma, e através de um convívio com os diversos adultos e crianças, cada criança parece formar o seu sistema de referência – que pode incluir a família ou não – que é revelado quando demonstram preferências por uns em detrimento de outros.

Sendo que a interação das crianças com as suas famílias ocorre no espaço da sala de estar, onde se encontram as restantes crianças, acontecem várias situações de conflito originadas pelo desejo incessante pela figura materna por parte da maioria das crianças.

 


- O momento de partilha -

Um dos momentos indicados pelos adultos e pelas crianças mais crescidas enquanto tempo em que é privilegiada a participação das crianças é o Momento de Partilha. Este momento apresenta uma grande incidência nas questões relacionadas com a resolução de conflitos entre as crianças do CAT, com a partilha de sentimentos gerados pela condição de acolhimento ou ocorridas em contexto escolar, entre outros. Relativamente aos bebés, aparentemente é um momento para rever as ocorrências, rotinas e atividades das crianças realizadas no próprio dia – uma espécie de momento de Revisão (da Pedagogia-em-participação).

Este momento é dinamizado por uma voluntária, de 28 anos de idade, com o 12.º ano, que, após um dia de trabalho, concretiza este momento da rotina destas crianças e apoia-as também ao deitar. Assim, além desta condição, são muitos os constrangimentos à participação dos bebés neste momento da rotina diária, entre os quais constam ainda: as condições em que se encontram os bebés (alguns já com fome, por estar próxima a hora do jantar); a agitação provocada pela presença de todas as crianças na sala (que aproveitam este momento para rever situações ocorridas durante o dia, realizar algumas solicitações, requerer a atenção da voluntária para elas etc.); o desconhecimento por parte da voluntária das atividades em que as crianças se envolveram, dos acidentes que ocorreram, das visitas que receberam, entre outros.

O grupo é organizado numa configuração de duas filas: a primeira, no sofá, as crianças mais crescidas; e a segunda, os bebés, que se encontram nas cadeiras de refeição. Esta organização faz lembrar um pequeno anfiteatro. A configuração dos momentos em grande grupo, nas pedagogias participativas, costuma ser em roda, colocando-se todas as crianças e todos os adultos em posição semelhante, sem que haja alguém em destaque. Assim, nesta reunião, existe um adulto com o qual cada criança comunica o que deseja, sendo casualmente interrompida por outras crianças. As crianças evidenciam duas posições distintas: os bebés e as crianças mais crescidas. Estas posições definem ainda participações diferentes: os bebés, com uma participação simples, rápida e orientada pelos adultos; e as crianças mais crescidas, uma participação variada, mais extensa no tempo ainda que igualmente orientada pelo adulto.

Simultaneamente ao momento de partilha, as crianças mais novas são preparadas para o jantar. Depois, à medida que vão terminando a sua participação no momento de partilha, a funcionária vai levando as crianças para a sala de refeições, para iniciarem o jantar. As crianças mais crescidas permanecem na sala de estar, onde continua a decorrer o momento de partilha, sem a presença dos bebés, de algumas crianças mais novas e de outras crianças que ficam de castigo na sala de refeições por estarem a perturbar do diálogo dos seus pares.

No momento de partilha, os bebés acabam por repetir o mesmo discurso, dia após dia. Por vezes, os bebés utilizavam a comunicação verbal, outras vezes, os gestos, o apontar para objetos etc. Algo que os bebés repetem sempre no seu momento de partilha é o facto de terem ouvido música do Batatoon. Os bebés permanecem em observação e escutam o diálogo estabelecido entre a voluntária e a criança participante.

Aparentemente, não é valorizada nem incentivada a participação dos bebés, parecendo não existir respeito pelo ritmo da criança nem o entendimento de que as formas de participação das crianças, e especificamente dos bebés, não são idênticas às formas de participação dos adultos (Coutinho, 2010; Tomás, 2011; Sarmento, 2011; Delgado & Nörnberg, 2013).

Algumas crianças aproveitam o momento de partilha para explorar e apresentar bens pessoais (desde botões a sapatos). Por vezes, acabam por se proporcionar momentos de interação entre os bebés e, por vezes, com crianças mais crescidas que não estão interessadas no momento de partilha, evidenciando-se que a participação desta criança tem impacto no coletivo (Sarmento, 2011).

No CAT1, é feita reunião com as crianças, uma vez por semana ou quando se mostra necessário. Podem participar a Diretora Técnica, a Psicóloga, a Assistente Social, a Educadora, a Auxiliar e os voluntários. São abordados assuntos relativos à vida privada das crianças, como o seu projeto de vida, e relativos à dinâmica e regras do CAT. As crianças são incentivadas a dar a sua opinião e a falar sobre os seus sentimentos, anseios e dúvidas, no sentido de a equipa técnica poder, posteriormente na reunião e também individualmente, intervir para esclarecer e tranquilizar a criança. Por vezes, surgem também assuntos no âmbito da resolução de conflitos entre crianças e sentimentos de injustiça. Esta reunião realiza-se ao final do dia, após o jantar, e, como tal, os bebés não costumam participar neste momento. Quando os bebés estão presentes nesta reunião, geralmente encontram-se ao colo de algum adulto ou de alguma criança mais crescida, ou brincam junto ao grupo de crianças. A presença dos bebés na reunião, por vezes, parece tornar-se num recurso para quebrar momentos de tristeza ou ambientes pesados, pois acabam sempre por fazer alguma gracinha ou pedir mimos às crianças mais crescidas.

 


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo sugere que estes bebés permanecem numa luta constante pela conquista de espaço para a sua participação, no sentido de a tornar visível aos adultos e às crianças mais crescidas, enfrentando obstáculos e constrangimentos à sua participação. Estes constrangimentos apresentam-se em três dimensões:

 

a) Biológica e/ou psicológica: os estados de espírito dos bebés, o temperamento, o ritmo individual, o desenvolvimento e a sua maturidade

b) Ambientais: o tempo – a diversidade do tipo de atividades (individuais, pequeno grupo ou grande grupo), atividades livres ou orientadas pelos adultos, a flexibilidade e responsividade das rotinas; o espaço – a diversidade de espaços, dimensão e organização do espaço e materiais (acessibilidade, visibilidade); os adultos – a adequabilidade das práticas ao estado de desenvolvimento das crianças; a formação dos adultos, a quantidade de adultos, do grupo de crianças – a heterogeneidade de idades, o ratio adulto/crianças.

c) Organizacionais: existência, ou não, de projeto pedagógico e de este ter em conta os bebés, e construção de planificações (plano anual de atividades, planificação semanal, entre outras) que contemplem a participação dos bebés.

A primeira dimensão de análise, a dimensão macro, revela que existe conhecimento dos técnicos no âmbito da Lei de Promoção e Proteção das Crianças e Jovens em Perigo (LPPCJP), sendo este o principal instrumento do trabalho das equipas do CAT. Constatou-se que, devido à natureza dos CAT e à sua função de garantir os cuidados adequados às necessidades das crianças acolhidas e de lhes proporcionar condições que permitam a sua educação, bem-estar e desenvolvimento integral, os técnicos se preocupam essencialmente com a necessidade de fazer garantir o direito a uma família às crianças acolhidas, considerando ainda os direitos de provisão e proteção.

Na dimensão meso, foi possível concluir que não existem projetos educativos nestes dois CAT, existindo apenas um instrumento de orientação no que respeita aos objetivos individuais do desenvolvimento dos bebés (no CAT2), que é organizado pela educadora social e usado para a orientação da prática dos adultos que interagem com os bebés, e que é realizado sem que haja uma planificação mensal, semanal ou diária. O plano anual de atividades apresenta-se vocacionado para as atividades das crianças mais crescidas, devido ao facto de estas constituírem a maioria do grupo. Não se observou a planificação de atividades, tendo por base a escuta da criança de modo formal. No entanto, muitas vezes, de modo espontâneo e informal, decidia-se pela realização de determinada atividade por se reconhecer a necessidade dos bebés nesse âmbito.

No que respeita à dimensão micro, a análise das informações indica a presença de uma visão de criança, aluna, contextualizada nas pedagogias de transmissão, em que a criança é vista como “tábua rasa, cera a fundir, barro a modelar, folha branca para ser escrita, copo a encher (Oliveira-Formosinho, 2007, citado em Oliveira-Formosinho, 2013) e como ser social, dependente, frágil e em desenvolvimento.

No âmbito da participação das crianças pequenas na organização do espaço, a análise dos dados sugere que a ação destas influencia a disposição dos materiais, levando os adultos a limitarem o acesso a determinados materiais, para que estes não sejam deteriorados ou porque podem ser perigosos durante a livre utilização pelas crianças. Esta limitação no acesso e visibilidade dos materiais parece limitar a diversidade de participação dos bebés.

A análise da participação dos bebés, no que respeita à utilização do espaço, levou também à identificação de espaços de utilização exclusiva dos bebés, de espaços partilhados com o restante grupo de crianças, de espaços perdidos para as crianças mais crescidas e de espaços conquistados pelos bebés.

Relativamente à participação nas rotinas do CAT, os bebés participam em diferentes tipos de atividades – individuais, pequeno grupo e grande grupo – sendo, no entanto, privilegiadas as atividades de acordo com o número de crianças destas idades. Nenhum dos CAT tem a sua rotina definida formalmente. No entanto, a rotina do CAT2 apresenta-se mais estruturante, devido à estabilidade dada pela presença constante dos mesmos voluntários em horários definidos, de segunda a sexta-feira. Neste âmbito, importa mencionar também que nenhum dos CAT refere ter adotado qualquer modelo educativo, estando as práticas condicionadas à formação e experiências pessoais dos adultos.

às oportunidades de participação, é reconhecido neste estudo que existem várias formas de participação uma vez que “não há crianças iguais, é possível que diferentes crianças, em diferentes momentos e em diferentes contextos, prefiram desempenhar graus variados de participação ou envolvimento. O importante será que em qualquer momento, ou em qualquer contexto, as crianças tenham a oportunidade de participar à medida da sua vontade, das suas necessidades e dos seus tempos” (Tomás, 2007). Os bebés dão a conhecer as suas formas de participação na tomada de decisões, realização de escolhas, entre outras, que são apresentadas ao longo da análise dos dados.

Conclui-se que os bebés (0 aos 2 anos) que se encontram em dois CAT parecem permanecer realmente na sua invisibilidade social, não lhes sendo totalmente garantido o direito à participação. Tal advém do facto de não existir um modelo pedagógico (participativo) praticado neste contexto com estas crianças e de permanecerem representações e imagens sobre as crianças assentes numa perspetiva de negatividade constituinte (Sarmento, 2004).

Esta investigação, recusando-se a apontar o dedo, e tendo como princípio a edificação, pretende servir como base para a construção de melhores práticas por parte dos CAT e apresentar algumas propostas que possibilitem atenuar os constrangimentos encontrados durante a investigação no âmbito da promoção e garantia do direito à participação dos bebés em CAT:

• Nomear um educador enquanto responsável pelas crianças dos 0 aos 3 anos.

• Adotar pedagogias participativas em contexto de CAT.

• Desenvolver um processo formal de seleção e formação dos voluntários.

 

Concluindo, esta investigação deu conta de que estes CAT, que possuem tendencialmente, talvez pela natureza da sua intervenção, uma perspetiva protetora que parece considerar as crianças enquanto dependentes e sem voz, tendo as suas conceções baseadas em modelos piagetianos que tratam o desenvolvimento da criança evidenciando as incompetências destas, precisam de considerar a diversidade que define a infância, enquanto grupo social, e de continuar, de forma mais acentuada, a garantir a promoção dos direitos das crianças – nomeadamente o direito à participação.

A necessidade de aprofundar as questões relacionadas com o direito à participação das crianças, no sentido de ir contra as conceções presentes no discurso do adulto protetor do bem-estar e do desenvolvimento das crianças, que apontam para a incompetência e incapacidade das crianças, parece ser mais acentuada quando se trata de crianças muito pequenas. Persiste, assim, a urgência na procura de uma mudança para o “discurso da criança-parceira”, que interpreta e participa na realidade social do contexto de CAT (Soares, 2006), “em vez de continuarem centrados na discussão sobre a situação de dependência e tutela em que vivem as crianças” (Tomás, 2007, p.65).

 


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Contacto:

Eunice Paula, Escola Superior de Educação de Lisboa, Instituto Politécnico de Lisboa, Campus do IPL, Rua Carolina Michaelis de Vasconcelos, 1549-003 Lisboa, Portugal/ eunicepaula@hotmail.com

 

(recebido em setembro de 2015, aceite para publicação em dezembro de 2015)

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