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Da Investigação às Práticas

On-line version ISSN 2182-1372

Invest. Práticas vol.6 no.1 Lisboa Mar. 2016

 

ARTIGOS

“Professora, tu agora já sabes mais um bocado do que é ser filhos e essas coisas da família?”: Um trabalho de dupla reflexão e coprodução de dados com crianças em idade pré-escolar

 

Maria Teresa Martins Cortez Marques Graça

EB/JI Esporões – Agrupamento de Escolas Alberto Sampaio – Braga teresacmgraca@gmail.com  

Contacto

 


Resumo

O presente texto pretende mostrar quão necessário se torna estudar a experiência das crianças, as suas conceções e imagens, para podermos entender os diferentes fenómenos sociais que lhes dizem respeito. As grandes transformações sociais que têm vindo a suceder-se no interior da família, sobretudo nas últimas décadas, suscitaram, na autora, a necessidade de perceber a atual importância social atribuída à infância, no espaço doméstico, resgatada a partir das vozes das crianças. Subscrevendo os pressupostos da Sociologia da Infância, partiu-se da noção de que as crianças são atores sociais competentes e, como tal, devem ser consideradas no processo de produção de conhecimento sobre os seus mundos de vida. Este artigo visa expor as representações de um grupo de crianças, em contexto de jardim de infância, acerca do lugar que lhes é reservado, enquanto filhos(as) pequenos(as), no interior da família.

Palavras-Chave: Criança; família; representações; participação.

 

Abstract

The present text pretends to show how necessary it becomes to study the experience of children, their conceptions and their images, in order to understand the different social phenomena that affect them. The great social changes that have been happening again and again in the family, especially in the last decades, brought to the author the need to understand the social importance of childhood at home, analyzed from what children say. Starting from the childhood sociology assumptions, it was considered that children are competent social performers, and as such should be taken into account in the process of knowledge production of their world. This article aims to show the representations of a group of children in the kindergarten about the place they have as children, within their families.

Keywords: Child; family; representations; participation.

 

Résumé

Dans le texte qui suit, nous voulons montrer combien il est nécessaire d’approfondir la connaissance sur les expériences vécues par les enfants, leurs conceptions/représentations et leurs images, afin de mieux comprendre les phénomènes sociaux de différentes natures qui les impliquent. Les grandes transformations sociales qui se succèdent de plus en plus àl’intérieur des familles, surtout depuis les dernières décennies, ont créé chezl’auteur le besoin de comprendre la valeur actuellement attribuée à l’enfance, dans l’espace domestique, et cela à partir des voix des enfants eux-mêmes. Souscrivant les présupposés de la Sociologie de l’Enfance, nous sommes parties de la notion que les enfants sont, eux aussi, des acteurs sociaux compétents et, comme tels, doivent être aussi considérés dans le processus de production de connaissance sur leurs mondes de vie. Cet article a pour but de lever le voile sur les représentations d’un groupe d’enfants, en contexte de maternelle, plus particulièrement, sur la place qui leur est réservée, en tant que jeunes enfants, à l’intérieur de la famille.

Mots-clefs: Enfant; famille; représentations; participation.

 


O propósito de desvendar as conceções das crianças pequenas acerca do lugar da infância nos contextos familiares de hoje esteve na base da realização de uma pesquisa participativa [1] que pretendeu arrogar crianças de um jardim de infância da rede pública, de idades compreendidas entre os 4 e os 6 anos, como sujeitos a investigar, sob uma perspetiva epistemológica que atribui à infância uma identidade categorial distinta e que toma as crianças diretamente como o centro de interesse a partir de si próprias (Ferreira, 2004). Esta opção teórica quis tomar em consideração a condição social da infância enquanto expressão da realidade social.

Enveredar por um estudo com crianças em contexto de JI visou “pensar nas crianças como vivendo em contextos específicos, com experiências específicas e em situações de vida real” (Walsh & Graue, 2003, p.22), através das suas práticas quotidianas de interação com adultos e outras crianças da instituição, tendo também em conta o modo como elas entendem os seus próprios contextos familiares. Pretendeu-se desconstruir os tradicionais conceitos de família e (do lugar dos) filhos na família, vislumbrando a obtenção de uma imagem representativa daquilo que será o atual espaço social da criança/filho, intuída pelas crianças.

A pesquisa baseou-se no pressuposto epistemológico de que as crianças são sujeitos de conhecimento e produtoras de sentido. Como tal, foi com base nas suas representações e no reconhecimento da legitimidade das suas formas de comunicação e relação que se procedeu ao trabalho coletivo – entre educadora-investigadora e as crianças – “de construção e apreensão do mundo como realidade social intersignificante e, portanto, intersubjectiva, que faz existir os indivíduos uns para os outros” (Ferreira, 2004, p. 16).

 


A CONTROVÉRSIA DE UM LUGAR NA DINÂMICA FAMILIAR

Talvez nunca se tenha discutido e estudado tão intensamente a situação e os contornos que caracterizam a família como nos dias de hoje. Objeto de interesse dos estudos periciais, apropriada pelo senso comum, a família tem sido alvo de grande atenção um pouco por todo mundo. Poderíamos dizer que, analogamente ao que se tem verificado relativamente à questão da infância, a qual tem vindo a merecer maior atenção quanto mais abalados parecem estar os pilares estruturantes da sua condição, também a família, porque profundamente alterada na sua estrutura e multiplicidade de formas que assume, merece lugar de destaque na cena internacional.

A família, entendida enquanto instituição incrustada (Giddens, 2000) [2], é descaracterizada e esta tendência aumenta a par e passo com as transformações estruturais crescentes que ecoam, de forma mais ou menos acentuada, por todo o globo e que desenvolvem tensões reinstitucionalizadoras na família (Sarmento, 2004) e, consequentemente, na vida pessoal de cada um de nós.

O emaranhado de modificações que têm vindo a ocorrer no interior do espaço doméstico, arrastadas pela forte onda de mudança, são, de certa forma, as mais difíceis e perturbadoras de todas e “não conhecemos bem qual virá a ser o rácio final entre vantagens e inconvenientes” (Giddens, 2000, p. 57). A situação histórica em que vive a família parece apresentar-se, por isso, como um conjunto de luzes e sombras.

A liberdade é um direito de cada ser humano, de cada membro da família. Liberdade, essa, que fatalmente se interceta no mundo intrafamiliar. Não obstante, com frequência, esta se sobrepõe, pelo que aquilo a que atualmente assistimos parece enquadrar-se mais num combate de liberdades que se opõem entre si.

Dois grandes vetores estruturantes da sociedade na segunda modernidade, a globalização e a individualização, que atravessam os vários âmbitos, níveis e espaços estruturais (Sarmento, 2008), são sistematicamente referenciados por diversos autores como forma de fazer emergir o que, de facto, está por detrás de tão complexas e contraditórias mudanças que acompanham a sociedade contemporânea. O desejo de ter “vida própria” reivindicado pelas mulheres, sobretudo a partir da década de sessenta (Beck, 2003), resulta deste fenómeno global que, sendo estrutural, pois atua ao nível macrossocial, afeta similarmente a vida corrente quotidiana, também ela palco de grandes “tensões que afectam as maneiras de viver tradicionais e as culturas da maioria das regiões do mundo” (Giddens, 2000, p. 17). Os percursos de vida individuais que se intercetam no mundo intrafamiliar alteraram-se e as relações conjugais e geracionais no interior do espaço doméstico assumiram uma outra dimensão. Pais e filhos ocupam agora posições que ora reivindicam, ora se submetem, num jogo cujas regras parecem ser maioritariamente definidas segundo a lógica da hierarquia geracional.

Pese embora a importância desta temática, não se poderá, contudo, escamotear o facto de que ela tem vindo a ser analisada sempre num único sentido ou, dito de outra forma, é através da inferência adulta que, invariavelmente, vem sendo interpretada a questão geracional familiar.

O peso das simbolizações históricas da criança, vulgarizadas no quotidiano e apropriadas pelo senso-comum, estará também na origem da banalização ou naturalização com que, tendencialmente, resultam perante os efeitos e consequências sociais que advêm das condições de existência das crianças, nomeadamente, nos seus contextos de vida familiar. O que muitas vezes se verifica é que, paralelamente ao suposto consenso acerca da valorização dos afetos nas relações intrafamiliares, à exceção dos casos denunciados e/ou noticiados, a tendência é de naturalizar e de homogeneizar as condições de vida das crianças.

Em qualquer sociedade coexistem realidades antagónicas que se manifestam muitas vezes no interior da família e, como afirma Sacristán (2003), em cada um de nós em diferentes proporções. O lugar da criança na realidade familiar contemporânea encontra-se tão padronizado quanto as relações entre crianças e adultos. Desprendermo-nos de amarras históricas tão poderosas que levaram à fixação de imagens sociais das crianças constitui, continuamente, um desafio à ciência (Sarmento, 2006).

É no interior das famílias, escudadas por uma conveniente naturalidade, que se sujeitam muitas vezes crianças a um quotidiano violento, mal nutrido, pobre em estímulos, displicente. Na verdade, como refere Sacristán (2003), “o «jardim sagrado» da infância nunca o foi totalmente para ninguém, tal como hoje também não o é para todos” (p. 122). Apesar das conquistas alcançadas, a criança continua a ser objeto de tratamento desagradável e de inúmeras mostras de dureza. O ambiente familiar está ainda longe de ser tão acolhedor como, efetivamente, deveria ser para favorecer o seu pleno desenvolvimento. Somos levados a crer que a barreira da naturalização só é ultrapassada por muitos quando, no interior da família, as situações são levadas ao extremo, resultando em morte, violações ou outras formas brutais de violência. O amor pelos filhos não está predeterminado pela natureza. Ele exige condições adicionais, que ultrapassam o simples facto de os trazer ao mundo.

Mas a realidade parece ser, efetivamente, bem mais complicada. A relação estabelecida entre pais e filhos foi, como já o referimos, evoluindo a par e passo com a forma de encarar os papéis na família e o lugar que cada um dos seus membros ocupa nas relações que mantêm entre si.

Muito embora a instituição familiar tenha evoluído ao longo da história, ela foi e continua a ser influenciada por imensos fatores ligados às condições de vida e ao universo cultural das famílias. A criança é, por isso, destinatária involuntária de relações complexas e até contraditórias. Se, regra geral, nos setores sociais menos favorecidos o panorama dominante relativamente à descendência representa, como temos vindo a verificar, um castigo repercutido ainda em relações muito contraditórias que vão da mera hostilidade à rejeição (cf. Sacristán, 2003), nos setores sociais mais favorecidos, “a redoma ou ninho de algodão podem transformar-se numa jaula da qual será completamente impossível sair ou voar. A sobrecarga emocional das relações entre pais e filhos assume tantos inconvenientes como a sua carência” (p. 142). Daqui se depreende que o desrespeito da criança, enquanto ator social de direito próprio no interior da família, tanto pode ocorrer por defeito/privação desse mesmo direito, ou por excesso de investimento/zelo dos membros adultos que, vendo bem, acabam igualmente por privá-la da sua identidade própria, da sua independência. Ou, não estarão os adultos, em nome de um desinteresse material na criança, a exigir-lhe a dependência de, obrigatoriamente, corresponder às suas expectativas?

O investimento que hoje em dia a família faz na criança parece vir colmatar não só as necessidades afetivas em benefício dos pais, como simboliza também as esperanças que estes criam em torno dela. Este interesse, desinteressado, supostamente genuíno, não será, antes de mais, condição para a futura satisfação dos adultos? De facto, a criança começa a ser apreciada como sujeito/objeto desejado da felicidade dos pais, projeto do filho ideal. A veracidade deste facto é descrita pelo mesmo autor ao referir que:

Hoje, é a infância que educa os mais velhos, que leva os pais a reflectirem e a quererem formar-se para terem os «melhores filhos», desde o momento em que tomam essa decisão (…), durante a gravidez e na protecção que terão na infância; tudo porque assimilamos que, a partir do trato que dispensamos à prole, dependem as satisfações que proporcionarão aos adultos (Sacristán, 2003, p. 139).

No entanto, tudo corre bem, se o resultado de tão intenso investimento obtiver um retorno satisfatório. A dificuldade parece encontrar-se quando o fracasso da criança se torna evidente ante a persistente, mas não eterna, ilusão dos pais que, com ela identificados também afetivamente, acabam por sentir esse fracasso igualmente seu. Vê-se então transformada a (des)preocupação amorosa convertida em exigências sustentadas em relações de disciplina intercaladas algures com investidas ou abrandamentos dos amores adultos. Mas, que é feito dos valores da cultura moderna, aqueles em que a criança é apreciada como sujeito pelo valor que possui individualmente, a quem reconhecemos uma entidade própria? Não deveria ela ser amada como tal? O ávido desejo de continuidade dos adultos, que anseiam ver refletida nas crianças, a devolução de uma imagem aperfeiçoada daquilo que eles próprios foram e são, impele-os a forjar uma relação de estreitos laços de afetividade com os menores, porém, sempre acompanhada dos seus interesses. Com isto, consideram estar a preparar-lhes o futuro…

Não é pelo facto de nascer uma criança que o Mundo muda ou para para a acolher na sua singularidade. Aponta Marchi (2007) que hoje “a criança é como um investimento a ‘longo prazo’ num mundo em que o ‘curto prazo’ passou a ser o paradigma nas relações: Num mundo inseguro e imprevisível, o viajante ‘esperto’ fará o possível para ‘viajar leve’ e sem nada que atrapalhe os seus movimentos, incluídas aí as crianças” (p. 11).

Até as famílias que enveredam pela opção da descendência, ainda que de modo algo inconsciente, e porque moldadas pelas imagens sociais da infância dominantes, acabam por manter com a criança relações variadas e contraditórias que podem ser de vária ordem como já vimos. Impotente face ao contexto histórico-cultural, classe social, etnia ou género, a criança submete-se a estas condições e, a menos que lhe deem voz, nunca se chegará a saber o que pensa ela acerca do seu lugar no contexto familiar em que nasceu e o que representa para si a família ou a família em geral.

Se o lugar da criança na família não existe enquanto figura homogénea, uma vez que há múltiplas formas adultas de o encarar e sentir, de igual forma se verifica grande heterogeneidade na condição das crianças enquanto filhos e nas diferentes formas de experimentarem e sentirem os seus contextos específicos de vida familiar, uma vez que esta situação é vivida, flagrantemente, de formas bastantes desiguais. Se atendermos, por exemplo, às diferentes condições de classe social ou de género, iremos obter representações distintas acerca desta mesma questão. Torna-se, pois, imprescindível resgatar a voz das crianças como forma de desconstruir as imagens estabelecidas ao longo do tempo.

 

“… a mãe deitou-me mas não era hora, que eu bem sei. Ainda era cedo. Ela é que não queria barulho!”

[Cristina, 5 anos]

Este texto visa questionar a naturalização do papel passivo da criança e mostrar o quanto é importante estudar o conhecimento e a experiência das crianças para melhor podermos entender os fenómenos sociais que lhes dizem respeito. Ou seja, a necessidade imperativa que aqui surge é a desocultação do modo como as mudanças estruturais familiares que temos vindo a referir afetam as infâncias do presente (Corsaro, 1997) e de que modo as crianças as interpretam e reproduzem.

A presente reflexão atende, como já vimos, às representações das crianças e ao reconhecimento da legitimidade das suas formas de comunicação e relação para destacar um aspeto marcante emergido de um trabalho coletivo - entre educadora-investigadora e as crianças de um micro contexto familiar e institucional -, o qual visou obter, destas últimas, conceções e imagens acerca do seu lugar na família, da família em geral e da família dos outros. Este reposicionamento epistemológico e metodológico exigiu da investigadora maior flexibilidade, capacidade de articular as referências teóricas do seu campo de investigação bem como os métodos que se propôs utilizar. A investigação com crianças exige um esforço interligado entre teoria - que amplifica aquilo que se pretende estudar - e as observações, que impulsionam a busca de teorias que favoreçam a compreensão daquilo que se vai observando.

Não obstante, quando tentamos compreender crianças em contexto, devemos situar também a teoria histórica e culturalmente. Se o objetivo da investigação com crianças deve ser o de compreender o significado (Graue & Walsh, 2003) - neste caso, pretendeu-se indagar, diretamente com as crianças, qual o conhecimento que possuíam sobre a sua posição dentro da dinâmica familiar e ainda as representações que tinham acerca da família em geral - significado esse que deveria ser fruto de experiências sociais partilhadas, a partir das quais se poderia aferir qual o atual lugar da criança na família. A ênfase deste estudo assentou numa perspetiva holística da criança, a criança social situada histórica e culturalmente num JI singular, de uma freguesia específica. Interessava, por isso, analisar o que se passava entre essas crianças, através das relações e interações que estabeleciam, num local e num tempo real.

Uma observação coerente e rigorosa da infância dos nossos dias implica uma análise a partir de diversos ângulos. Esta condição incontornável, que atende ao contexto histórico-cultural, advém do facto de a infância ser uma construção contínua pelo que ser filho(a) é algo que deve ser entendido e enquadrado numa cultura com visões contraditórias e em competição umas com as outras (cf. Graue & Walsh, 2003) sobre o que devem ser os filhos.

No entanto, e porque estava implicitamente também em causa o crescimento reflexivo da investigadora enquanto profissional da educação e o desejo de redefinição da sua prática pedagógica, ir-se-á enfatizar neste texto, essencialmente, o aspeto atrás destacado: as crianças enquanto sujeitos competentes, dotadas de pensamento reflexivo e crítico e o processo de dupla reflexão (crianças e investigadora) na apreensão e construção da realidade social.

Num primeiro momento, este intento poderá conduzir a algumas interrogações: de que forma poderemos obter das crianças representações acerca da sua condição de filhos pequenos no grupo doméstico? Como fazer para considerarmos crianças, entre os 3 e os 6 anos, enquanto parceiras e sujeitos implicados na produção e interpretação do processo investigativo?

 


AS CRIANÇAS ENQUANTO SUJEITOS REFLEXIVOS

No estudo ao qual se reporta a presente reflexão, procurou-se atender a estas questões recorrendo à utilização de uma metodologia diferenciada – i.e., articulando, fundamentalmente, dois métodos: a observação etnográfica, que decorreu da necessidade de explicar os factos das vidas das crianças do nosso tempo, concretamente no que diz respeito ao conhecimento que possuem sobre a sua posição dentro da dinâmica familiar, no “aqui e agora” das suas ações quotidianas. Importava, por isso, compreender as crianças em contexto e, como tal, situarmo-nos histórica e culturalmente num JI singular, de uma freguesia específica. Similarmente, o recurso a metodologias de investigação participativa derivou do caráter indispensável da presença da voz e ação da criança no desenrolar do trabalho de investigação e da exigência de uma postura flexível e criativa do investigador que possibilitasse “a inserção das crianças nas diferentes etapas do processo de investigação” (Santana, 2007, p. 35). Isto levou a que se utilizassem formas criativas de redefinição de ferramentas metodológicas compatíveis com as competências das crianças.

Ora, esta opção metodológica implica uma mudança paradigmática relativamente aos tradicionais métodos de indagação de significado da ação humana mais rígidos nos quais o investigador se coloca no âmago de um estudo que é apenas feito sobre crianças e lhes nega a sua autonomia, a afirmação como sujeitos de conhecimento e produção de sentido, bem como o direito de participação e decisão partilhada nos seus mundos de vida (cf. Ferreira, 2004). Numa investigação com crianças, a inversão de papéis tradicionais do adulto-investigador com as crianças é condição indispensável na análise do que se passa entre as crianças nas “interações e relações que compõem as suas vidas” (Graue & Walsh, 2003, p. 53).

Não há dúvida de que temos de ser criativos na utilização de ferramentas metodológicas mas, se soubermos acolher o que as crianças têm para nos propor, a criatividade brota como uma nascente – as crianças – que, não tendo obstáculos ao que querem partilhar, transformam, como se de uma magia se tratasse, qualquer processo de recolha de dados num desafio criativo que o adulto pode ou não acompanhar.

Foram inúmeras as propostas. Umas mais exequíveis que outras. No entanto, a deliberação em grande grupo tratava de descortinar as apropriadas. Os símbolos «feliz» e «triste», por exemplo, foram adotados para identificar os locais em tiras de papel colorido, para o registo adequado de sentimentos espoletados em vivências familiares; os registos da interpretação que faziam de histórias, poemas ou novidades, elaboravam-se em suportes diversos, conforme lhes parecia mais elucidativo ou harmonioso; à aquisição de um gravador digital, para uso exclusivo do grupo, deu-se-lhe um primeiro destino: a realização de entrevistas aos pais, pelos próprios filhos. Até a maneira de expor todo este material foi negociada com as crianças. As paredes da sala pareciam «forradas» por estes registos – gráficos, fotográficos, escritos. Relativamente aos que eram registados em suporte áudio, as crianças sabiam que, posteriormente, eram transformados em texto para que a educadora-investigadora os pudesse utilizar no estudo que estava ser realizado. Tudo era pensado em conjunto.

 


EXPERIÊNCIAS DOTADAS DE SENTIDO E ESTRUTURADAS SOB LÓGICAS SINGULARES: A AÇÃO DO SUJEITO – CRIANÇA

Atualmente, verifica-se, não raro, que um dos contextos em que, tradicionalmente, são negados os direitos de participação das crianças enquanto atores sociais de pleno direito se encerra na esfera doméstica. Contudo, ainda que, em muitos casos, a família continue a ser um local onde as suas vozes são apagadas (Christensen & James, 2005), as crianças não deixam de refletir sobre as suas vivências e sobre as possibilidades e constrangimentos que afetam os seus mundos de vida, neste caso, o meio familiar de pertença.

O reconhecimento desta capacidade de atribuição de sentido às próprias experiências de vida e de as estruturar de acordo com as suas próprias lógicas, assumido neste estudo de pequena escala, leva a que se coloquem em equidade os mundos sociais infantis e adultos e se leve a sério o ator social que é a criança (Ferreira, 2004), considerada enquanto sujeito competente, dotado de pensamento reflexivo e crítico.

Procedendo desta forma, estar-se-á a valorizar a capacidade de produção simbólica da criança, a assumir a tomada do seu direito à palavra e a constituição das suas ações, crenças e valores em sistemas organizados de saberes, fazeres e sentires que, transformados em meios de interação social entre pares, ou seja, em culturas, geram modos de governo próprios das sociedades infantis (ibid. p. 21).

Esta proclamação das crianças como atores sociais competentes decorre da perspetiva da criança tribal que, segundo a mesma autora,

confere à sua agência humana um lugar central – a sua cognoscitividade, o seu papel activo no processo de formação estratégico, a sua criatividade – implica, desde logo, captar em primeira mão e compreender os procedimentos que habitualmente as mobilizam para significar, construir e reconhecer o seu mundo de vida quotidiana, a partir das suas próprias perspectivas (op. cit., pp. 24-25).

 

A interpretação ativa no processo de pesquisa

Assumindo como ponto de apoio da “alavanca” interpretativa as perspetivas das crianças, podemos apreender os modos como elas se apropriam criativamente da informação do mundo adulto para produzir as suas próprias culturas de pares (Corsaro, 1997), conforme nos sugere a interpretação feita pela Luísa, acerca do caso Madeleine McCann [3], durante o decurso de um diálogo em grande grupo.

Luísa – A “Média” foi a… a “Média” estava a dormir com os irmãos pequeninos… a “Média”, e o pai foi ao restaurante e a mãe. Como a “Média” tinha muito soninho, tinha que ir para a cama e o pai não fechou a porta muito bem nem as janelas e o ladrão entrou e roubou a “Média” e ela ainda não apareceu.

[Excerto de diálogo, 7 de maio de 2008]

Em poucas palavras, a Luísa explica a situação mediática mais comentada e explorada nessa altura pela comunicação social. Fazendo, certamente, a transposição da informação do mundo adulto – possivelmente, dos meios de comunicação social e adultos da família – apropria-se dela, interpreta-a e explica-a segundo a sua lógica, ao resto do grupo. Vejamos, por isso, como reagem as outras crianças e de que forma explicam um fenómeno em que, claramente, se reveem num contexto que as coloca à mercê do poder, aqui perverso, do adulto.

E – […] Afinal, ser filho da vossa idade pode ser mais complicado…

Luísa – Pode ser perigoso.

E – Quem quer explicar por que é que pode ser perigoso?

Joana – Porque podem vir algumas pessoas que podem roubar.

Celso> – Mas eu atiro os ladrões ao ar!

E – Achas mesmo que conseguias isso?

Celso – Ai não! Dava-lhes um punho que eles até iam ao céu!

E – Será que o Celso conseguia mesmo fazer isso?

Vários – [risos] Não.

Joana – É porque às vezes os filhos pensam que são grandes e não são.

[…]

Carlos – Se nós estivéssemos à beira de ladrões grandes, não tínhamos força para eles.

[Excerto de diálogo, 7 de maio de 2008]

Parece clara a consciência coletiva, expressa na voz de algumas crianças, acerca da condição desfavorável que detêm perante o perigo que alguns adultos – os ladrões - podem constituir e perante a ameaça que estes representam para as crianças, sobretudo se estiverem sem a proteção dos pais ou adultos mais chegados.

No entanto, as crianças dão sentido às suas experiências de vida e resolvem, num trabalho recíproco, os mal-estares e as pressões da sua experiência social (Ferreira, 2004). Elas encontram estratégias alternativas de resolução dos seus problemas muitas vezes viajando entre o real e o imaginário, conforme podemos ver refletido nas palavras do Celso: ”Mas eu atiro os ladrões ao ar!”; “Dava-lhes um punho que eles até iam ao céu!”. De acordo com Sarmento (2003), esta é uma característica comum não só ao imaginário infantil, como a todas as gerações. O princípio de transposição imaginária do real das crianças apenas difere da do adulto, na medida em que é por si radicalizado. É, por isso, uma questão de diferença e não de deficit que se trata. Segundo o mesmo autor, o “real” para as crianças é o efeito da segmentação, transposição e recriação feita no acto de interpretação de acontecimentos e situações. O que torna a vida uma aventura continuamente reinvestida de possibilidade (p. 13).

Isto não quer dizer que as crianças tenham um pensamento ilógico. Decerto, o Celso saberá que nunca poderia levar a cabo tal proeza. Possivelmente, o desejo de solucionar rapidamente o problema levou-o a encarnar o papel de um qualquer super-herói sem que, no entanto, tenha perdido a noção da identidade de origem. Para as crianças, no âmbito do jogo simbólico – o objecto referenciado não perde a sua identidade própria e é, ao mesmo tempo, transmutado pelo imaginário (ibid.).

Podemos comprová-lo se observarmos as frases seguintes, proferidas pela Joana e pelo Carlos. As crianças são, de facto, sujeitos dotados de significativa capacidade reflexiva e, se por um lado permitem, de forma admirável, que o imaginário matize de um colorido sem fim o mundo real, por outro, demonstram grande capacidade explicativa para as tensões da sua experiência social.

A este propósito, apresenta-se a explicação do Gonçalo acerca da inevitabilidade da dependência dos filhos pequenos em relação aos cuidados e proteção dos pais.

E – Pois é, as pessoas grandes ajudam. Mas também vocês já disseram que quando querem alguma coisa precisam que eles vos deixem. Têm de perguntar. É ou não é?

Miguel – A minha mãe deu-me dinheiro e pus numa carteira que eu tenho.

Gonçalo – É como os cães quando fogem das mães, das cadelas, dos pais, não têm comida.

[...]

E – Sim, claro… mas nós estávamos a falar dos filhos.

Gonçalo – E é como os filhos, nós… se fugimos aos pais ficamos à fome e morremos.

[Excerto de diálogo, 2 de abril de 2008]

Importa, no entanto, salvaguardar que a capacidade reflexiva das crianças parece não se confinar à explicação de fenómenos ou experiências. Para além de sujeitos dotados de pensamento reflexivo, as crianças detêm grande capacidade crítica e sabem manifestá-la.

Joana – Um dia fui à minha avó Tina para ver se estava boa para vir à minha casa. Mas ela só esteve um bocadinho na minha casa e quis ir logo para a casa dela. Sabes porquê? Para ir cortar erva! Mas eu também tenho erva na minha casa!

Depois a minha avó foi lá ver se o meu tio estava lá. O tio Berto andava a passear sozinho sem dizer nada a ninguém, que é para roubar tangerinas e fazer coisas sem ninguém saber!

[Partilha de novidades, 8 de janeiro de 2008]

As palavras da Joana são bastante elucidativas. Ela interpreta um cenário, provavelmente, apresentado pelos adultos da família, de forma impressionante. Apenas com 4 anos, a Joana desmontou e leu nas “entrelinhas” uma tentativa de justificação adulta. Estes talvez pretendessem elaborar uma forma de dissimular perante ela a suspeição da avó acerca do que andaria a fazer o tio Berto. Mas, em tom reprovador, a Joana relata ao grupo este episódio, utilizando um tom de voz elevado e “áspero”.

Poderíamos interrogar-nos se a Joana teria tido a oportunidade de manifestar em casa a sua indignação. Pelo menos, foi o que fez transparecer durante o seu discurso, levando a que esta perplexidade assomasse simultaneamente na educadora-investigadora. A Joana, muito provavelmente, percebeu que, se a avó disse que ia para casa, não era certamente para cortar erva pois ainda só tinha chegado há um “bocadinho”! Talvez a Joana até o tivesse dito à mãe, ou ao pai, ou até à avó, na tentativa de a demover dessa intenção. No entanto, a avó foi na mesma. Possivelmente, terá dito que só ia ver se o tio estava lá. Mas a Joana já tinha alcançado o verdadeiro motivo e isso, sim, ter-lhe-á provocado a perplexidade contida na maneira como desabafou o sucedido.

 


O PROCESSO DE DUPLA REFLEXÃO NA APREENSÃO E CONSTRUÇÃO DA REALIDADE SOCIAL

A condição de educadora-investigadora levou a que nos deparássemos com uma situação peculiar. As crianças conheciam a dupla função que detínhamos e que consistia simultaneamente em trabalhar e em aprender com elas. Desta feita, percebiam que tudo o que referissem acerca dos seus sentimentos enquanto filhos ou acerca da família era particularmente interessante. Amiúde se evocava esta particularidade e percebia-se que, inequivocamente, elas tinham presente o seu estatuto de parceiros implicados no estudo. Daí que o envolvimento da educadora-investigadora no quotidiano do jardim de infância a implicasse também no trabalho recíproco de dar um sentido à vida como bem o elucidam as palavras de Manuela Ferreira:

[É] necessário compreender como é que ambos [crianças e educadora-investigadora], no seu trabalho recíproco de dar um sentido à vida e resolver, através disso, os constrangimentos e as tensões da sua experiência social, são igualmente confrontados com perplexidades mútuas. Esta, encerrando em si os «estranhos sabores» das complementaridades contraditórias, permitem elucidar os processos de reflexividade inerentes que instituem um nexo entre o mundo adulto e o mundo infantil, entre os indivíduos e entre estes e as propriedades estruturais da estrutura social (2004, p. 41).

Nas conversas que foram ocorrendo durante o processo de pesquisa, algumas surgidas esporadicamente, fomo-nos recolocando, refletindo e sintonizando gradualmente na mesma frequência das crianças, tentando evitar os ruídos do nosso próprio adultocentrismo. Foi necessário reaprender a escutá-las, tentando abstrair-nos de tudo. Das ideias pré-concebidas, preocupações, estado de alma, enfim, fazer-lhes sentir que, de facto, não só queremos aprender com elas mas, porque em sintonia, sentimos e queremos contribuir para a mútua resolução dos problemas que as afetam.

Foi neste jogo de constante recomeçar um novo modo de escutar as práticas discursivas das crianças, intercalado com sucessivas quedas e recomeços, que nos fomos apercebendo de pequenos grandes dramas das crianças com quem trabalhávamos e aprendíamos. De entre as inúmeras descobertas que fomos fazendo e que auspiciamos ter vindo a conseguir traduzir, pelo menos parte delas, ao longo do estudo, percebemos que as crianças têm tesouros maravilhosos para nos revelar, desde que as queiramos e saibamos ouvir. Elas são reflexivas, manifestam a sua opinião acerca dos problemas que as afetam, explicam-nos, aprovam-nos ou desaprovam-nos, como já vimos. Mas, por vezes, algumas situações, provindas de grande assimetria de poder geracional, parecem fazê-las reconhecer de tal forma a sua impotência para alterar tais conjunturas coativas que, perante elas, apenas mostram resignação. Foi isto que sentimos durante a conversa com o Miguel.

Miguel – Eu para vir para a escola, tenho que dormir na casa do meu tio.

E – Mas porquê?

Miguel – Porque é perto.

E – Fica mais perto da escola, é isso?

Miguel – Sim.

E – E tu achas que é melhor assim?

Miguel – Hum… [encolheu os ombros]

E – Se te dissessem para seres tu a escolher, como é que tu resolvias este problema?

Miguel - Dormia na minha casa.

E – Porquê?

Miguel – Gosto de estar com os meus pais.

[Excerto de diálogo, 3 de abril de 2008]

Perante uma situação causadora de sofrimento não só para o filho como também para os pais e, aparentemente, impossível de alterar, o Miguel assume um sentimento de dor causado pela privação do convívio diário com os pais. No entanto, percebe que nem estes podem alterar a situação e que até fazem o que está ao seu alcance para minorar o sofrimento do filho, conforme pudemos comprovar ao longo do estudo.

Perante tais circunstâncias, o Miguel não demonstra qualquer atitude de reprovação da conduta adulta, nem recorre a estratégias de resolução do problema. Ele não esconde o desagrado ou a dor que a situação lhe causa, porém, porque intérprete competente e reflexivo da sua própria experiência de vida (Ferreira, 2004) apercebe-se da sua inevitabilidade e assume uma atitude de resignação.

Esta conjuntura acabou por resultar gratificante na medida em que desencadeou, da parte da educadora-investigadora, a colaboração que tinha prometido às crianças. Após algumas conversas a três – o Miguel, a mãe e a educadora – conseguiram-se encontrar estratégias que ele sozinho não tinha condições de alcançar. Começaram então a surgir as visitas da mãe ao JI, nos dias da sua folga, seguidas de passeios a dois [4]; a elaboração de recados e troca recíproca destes com os pais; até à feliz notícia da gravidez da mãe e previsível período de tempo passado em casa [5].

Com efeito, esta nova arte de ouvir, de facto, as vozes das crianças possibilitou a resolução, pelo menos parcial, do pequeno grande drama do Miguel. Mesmo que não seja uma solução definitiva, pensamos que o mais importante foi conseguido. O Miguel percebeu que houve quem o escutasse e nós percebemos que, se não estivéssemos na disposição de reaprender a escutar, provavelmente, esta situação teria passado despercebida – para os adultos, claro. Já para o Miguel, o drama iria provavelmente continuar e a assimetria de poder entre gerações acentuaria nele a desistência de lutar e de se fazer ouvir por aqueles que estão no topo da hierarquia do poder geracional.

A assunção do estatuto de atores e parceiros, implicados no processo de investigação que aqui se atribui às crianças, pretende contribuir para ultrapassar a conceção tradicional acerca dos que contam, ou não, como seres sociais, sobretudo quando se considera o lugar marginal e o desinteresse a que têm sido remetidas as crianças, tanto mais acentuados quanto menores são as suas idades (Ferreira, 2004, p. 13). As competências das crianças em idade pré-escolar apenas diferem das competências das crianças em idade escolar ou dos outros grupos geracionais, porém, tal não significa que sejam inferiores. Sendo socialmente competentes, as crianças entre os 3 e os 6 anos de idade estabelecem relações de intersubjetividade com o adulto, apenas atravessadas por racionalidades diferentes (ibid.).

Neste sentido, pretende-se reafirmar a importância da implicação das crianças pequenas no processo de pesquisa e no espoletar da dupla reflexão ocorrida entre o discurso e a prática dos investigadores e a adotada pelas crianças que nela participam. Este processo surge como fulcral num estudo levado a efeito por Corsaro e Molinari (2005) num JI italiano. O reconhecimento das crianças deste grupo geracional, enquanto sujeitos reflexivos, surge sobremaneira evidenciado. Elas aparecem não somente como respondentes mas, também, interpretando ativamente e dando forma ao processo de pesquisa (Christensen & James, 2005).

Pudemos, também nós, experimentá-lo com as crianças envolvidas no decurso desta investigação, conforme se poderá observar no excerto selecionado:

Nessa mesma manhã, enquanto as crianças se dirigiam para o refeitório, senti que alguém me puxava a manga da bata. Olhei e deparei-me com o Carlos que, de olhos fitados em mim, tentava perguntar-me qualquer coisa. Havia alguma algazarra como é habitual nos momentos da rotina diária em que as crianças se deslocam da sala para o refeitório, passando necessariamente pela casa de banho. Baixei-me para que ele, olhando-me ao mesmo nível, pudesse fazer-se ouvir:

Carlos – Professora, tu agora já sabes mais um bocado do que é ser filhos e essas coisas da família?

E – Claro que sim, Carlos. Vocês têm-me ajudado muito a perceber o que sentem os filhos acerca da família e do que é a família…

Carlos – E o que põe os meninos tristes ou contentes…

E – Acho que sou uma professora cheia de sorte. Tenho alunos muito amigos que gostam tanto de me ajudar! Eu até acho que ainda vou aprender mais. Vocês fazem-me descobrir muitas coisas!

Carlos – Pois.

Já no refeitório, aproveitei para contar a pequena conversa que tive com o Carlos instantes atrás. Expressei a todas as crianças a minha gratidão e disse-lhes o quanto elas eram importantes. Ensinavam-me coisas que eu precisava de descobrir e compreender e isso fazia-me feliz. Disse-lhes ainda que sentia que elas eram muito minhas amigas ao que, prontamente, responderam: - Tu também és.

[Dia 2 de abril de 2008]

Foram momentos como este que nos impulsionaram a prosseguir com o estudo. Tudo era comprovado na prática. O envolvimento com as crianças era real, acontecia! Descobrir… foi sempre o que desejamos desde o momento em que nos propusemos a este desafio académico. Nunca se obterão certezas de nada e ainda bem. No entanto, as descobertas que efetuamos juntamente com as crianças, a cumplicidade construída entre todos nós, as perplexidades mútuas, o compromisso de ajuda recíproca… permanecerão para lá do término da investigação.

Qualquer profissional de educação de infância, ao longo da sua carreira, tem a oportunidade de trabalhar com variados grupos de crianças. Grupos esses sempre caracterizados pela sua heterogeneidade de classe social, género, etnia. Muitas delas deixaram de ser crianças. Tornaram-se adultas. No entanto, o profissional continua a trabalhar com crianças entre os 3 e os 6 anos de idade. É que, enquanto a criança desaparece, a infância em si mesma não desaparece, mas permanece como forma social (Qvortrup, 1999). Pode dizer-se que as crianças constituem uma área conceptual, um segmento deste stock [de crenças, valores, interacção social]. As crianças movimentar-se-ão deste segmento para outro, mas outras tomarão o seu lugar. O segmento permanece. (ibid. p. 8). E é com este segmento que diariamente lidamos, aprendemos e reaprendemos a adotar o seu ponto de vista, polvilhado de crenças, valores e ideias tão suas, tão próprias mas também tão suscetíveis de serem excluídas da ordem dominante dos outros segmentos ou grupos geracionais.

Poderiam ter sido selecionados outros episódios reveladores do quão implicados e parceiros na investigação os alunos do JI se sentiram, pois foram inúmeros. E, se o referiram, maior certeza não poderemos obter. Além disso, se a palavra descobrir significa desvendar novos significados, implica, também, reconhecimento dos limites. O conhecimento poderá aumentar, fruto dessas descobertas. No entanto, será sempre imperfeito e quantas vezes se terá repetido essa imperfeição ao longo deste estudo.

Parece-nos, então, que o melhor que um investigador principiante terá a fazer é guardar bem todas essas pequenas ou grandes descobertas que for realizando, aprender com os limites e as imperfeições e servir-se deles, como se de um trampolim se tratasse, para prosseguir… descobrindo.

Todo o processo de investigação resultou para nós como uma escola de descobertas. A este respeito, diz Walsh (2003),

Descobrir desafia o investigador na sua análise, que visa explorar criticamente não só aquela parte do mundo que está a ser estudada, mas o próprio processo de investigação em si mesmo. Em última análise, todo esse trabalho gera um conhecimento que é incerto e mutável, mas gera algum conhecimento. A «coisa» descoberta nunca auferirá da certeza ou da universalidade da «coisa» inventada. É assim que deve ser. A construção do conhecimento é fruto do esforço humano. Nunca será uma certeza (p. 10).

Quando a investigação é feita com crianças, o ato de descobrir pode tornar-se difícil, advindo da distância física, cognitiva e política existente entre adultos e crianças (ibid.), porém, acreditamos que este poderá ser atenuado quando se reconhecem e identificam mutuamente estas mesmas barreiras e, partindo desta inegável diferença, se admita, ainda assim, a dependência adulta do conhecimento, colaboração e parceria das crianças para a obtenção da informação necessária à interpretação dos seus pontos de vista. A mútua implicação e comprometimento de ajuda recíproca desencadearam neste estudo um incontestável compromisso de participação e parceria entre a investigadora e as crianças, passível de ser identificado ao longo das notas de campo.

A ação das crianças, enquanto sujeitos estudados por mérito próprio, surge aqui de formas diversas, ora explicando os fenómenos que afetam as suas vidas, ora aceitando-os ou reprovando-os. Também vimos que a resignação pode ser uma atitude adotada em alguns casos e as estratégias de resolução dos problemas são-nos apresentadas pelas crianças como forma de, por exemplo, obterem algum controlo sobre as decisões parentais (cf. Corsaro, 1997) que os afetam. Ou seja, as crianças assumiram de forma consciente a implicação que tiveram neste estudo e como o conhecimento que detêm das suas vidas constitui um bem precioso para a nossa aprendizagem acerca do lugar que ocupam na vida familiar. Com a investigadora, elas partilharam o controlo da pesquisa e participaram nos seus próprios termos, isto é, com capacidades criativas de comunicação sobre as suas experiências de processos e acontecimentos de tomada de decisão (O’Kane, 2005, p. 146).

A opção metodológica por procedimentos que consideram as crianças como participantes ativos, em vez de objetos de estudo, acarreta sérios compromissos. Conduzir investigações com crianças, afirma O’Kane, em vez de sobre elas, necessita de uma consideração maior dos muitos problemas teóricos, metodológicos e éticos que surgem (2005, p. 143). A disparidade de poder e estatuto entre adultos e crianças constitui um verdadeiro desafio para encontrar formas de quebrar o poder desigual. Como já vimos, o poder adulto da educadora-investigadora nunca poderia ser dissimulado sob pena de estar a desrespeitar a competência e conhecimento que as crianças em idade pré-escolar já possuem acerca do seu papel na instituição. A franqueza e o reconhecimento dos limites pessoais, aliados à valorização da competência inegável das crianças, pareceram ser o melhor modo de ultrapassar tal desafio.

Consideramos que o verdadeiro desafio, ainda assim, residia na interpretação das práticas discursivas das crianças, perante as quais, receávamos estar aquém da competência para traduzir dignamente as suas vozes. Corroboramos essa apreensão com as palavras de Qvortrup:

As verdadeiras dificuldades começam com a interpretação dos dados recolhidos. A questão da objectividade e da validade é, no que diz respeito à pesquisa sobre a infância, mais pertinente do que em qualquer outro campo da Sociologia, já que as crianças pertencem ao único grupo etário que não realiza pesquisas. Têm, pois, que deixar a interpretação das suas vidas para outro grupo etário cujos interesses não estão, potencialmente, em consonância com os seus próprios interesses(1999, p.5).

A ação do sujeito-criança, analisada neste texto, augura conferir a máxima objetividade na interpretação dos dados recolhidos a esse respeito.

Atrás, falava-se da questão da descoberta que, paulatinamente, se foi fazendo ao longo do processo de investigação. Se, por vezes, alguma inquietação nos invadiu, não foi certamente pelo receio de desvelar as imperfeições que inevitavelmente ela conterá. Apenas procuramos certificar-nos de que o conhecimento que fomos construindo fosse, efetivamente, «coisa» descoberta e não «coisa» inventada (Walsh, 2003) e que os nossos interesses se sintonizassem, como já o referimos, no mesmo “comprimento de onda” do das crianças de tal modo que impedissem a intromissão de ruídos provindos das tradicionais “frequências” adultas.

O estudo a que se reporta este texto norteou todo o seu percurso por um objetivo principal resultante do pressuposto epistemológico de que as crianças são atores sociais competentes, sujeitos de conhecimento e produtoras de sentido.

Partindo deste alicerce, deu-se início a um desafio cuja pedra de toque residia na auscultação das vozes das crianças pequenas acerca do lugar que sentiam ser-lhes reservado na dinâmica intrafamiliar, quais os seus pontos de vista acerca da sua família ou da família em geral.

Nesta conformidade, o processo investigativo pautou-se pelo reconhecimento da legitimidade das formas de comunicação e relação das crianças envolvidas que, enquanto sujeitos participantes, trilharam com a educadora-investigadora um caminho que, paulatinamente, se foi tornando menos ofuscante à medida que se procurava descobrir o que só elas conheciam.

 


BREVE REFLEXÃO FINAL

Parece ser difícil, ainda hoje, vislumbrar qualquer certeza que nos leve a romper com as diversas situações paradoxais que caraterizam a condição da infância e o lugar banalizado e contraditório reservado aos filhos no mundo intrafamiliar. De facto, ao longo da história, ou mais concretamente, a partir do século XVIII, sucederam-se várias construções sociais da infância resultantes dos diversos paradigmas que as iluminaram, até agora quase sempre em oposição entre eles. Porém, existe consenso relativo ao facto de esses paradigmas terem sido influenciados pelo contexto sociocultural do qual nasceram, em que se desenvolveram e realizaram.

Atualmente, atravessamos mudanças estruturais de grande porte que afetam também de um modo muito particular as famílias. Neste momento, as consequências da rapidez das mutações em curso e a sua influência na dinâmica interna da família contemporânea e, naturalmente, nas crianças/filhos, são tantas, que se pode prever um novo tipo de sociedade, também ela palco de novas imagens sociais de criança, família e do lugar que esta deverá reservar aos seus filhos.

Então, poderemos pensar que esta situação, em pleno movimento, pode gerar, exigir ou aguardar novos paradigmas capazes de suscitar ou produzir orientações societais novas, promotoras da edificação de uma nova conceção de criança/filho e família? Será que o nascimento de um novo paradigma indica que a sociedade, que se está a formar, precisa de um novo ponto de referência, de uma nova perspetiva para iluminar, esclarecer as próprias aspirações e impelir para novas metas? Deixará a sociedade, algum dia, de ter representações tão contraditórias acerca da família, do lugar da criança na família e da infância?

 


REFERÊNCIAS

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Ferreira, M. (2006). “Tá na hora d’ir p’rà escola!”; “Eu não sei fazer esta, senhor professor!” ou… brincar às escolas na escola (JI) como um modo das crianças darem sentido e negociarem as relações entre a família e a escola. Interacções, 2, 27-58.         [ Links ]

Giddens, Anthony (2001). Sociologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.         [ Links ]

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O’Kane, C. (2005). O Desenvolvimento de Técnicas Participativas: Facilitando os Pontos de Vista das Crianças acerca de Decisões que as Afectam. In P. Christensen & A. James (Orgs.), Investigação com Crianças. Perspectivas e Práticas (pp. 123-148). Porto. Escola Superior de Paula Frassinetti.         [ Links ]

Qvortrup, J. (1999). Crescer na Europa – Horizontes actuais dos Estudos sobre a Infância e a Juventude. A Infância na Europa: novo campo de Pesquisa Social”.         [ Links ] Dinamarca: Universidade de Throndhein.

Sarmento, M. J. (2008). Os Olhares da Sociedade Portuguesa sobre a Criança. Braga: Universidade do Minho. (policopiado).         [ Links ]

 

Contacto:

Maria Teresa Martins Cortez Marques Graça, EB/JI Esporões – Agrupamento de Escolas Alberto Sampaio, Rua Álvaro Carneiro, 4715-086, Braga, Portugal teresacmgraca@gmail.com

 

(recebido em setembro de 2015, aceite para publicação em outubro 2016)

 


NOTAS

 


[1] Este texto contém uma versão ligeiramente reformulada de um dos capítulos empíricos da tese de mestrado em Sociologia da Infância, do Instituto da Educação da Universidade do Minho, com o título Contextos Familiares e o Lugar da Infância: Conceções e Imagens.


[2] A expressão incrustada é utilizada por Giddens quando se refere ao tipo de transformação sofrida pelas instituições casamento e família no sentido em que permanecem até hoje com o mesmo nome mas, por dentro, os seus fundamentos alteraram-se.


[3] Este episódio reporta-se ao caso do desaparecimento de Madeleine McCann ou “Maddie”, como lhe chamavam, de 3 anos, do aldeamento turístico “Ocean Club”, da Paria da Luz, em Lagos. Este caso mediático, ocorrido em 3 de maio de 2007, abalou o país e o mundo. Maddie, a mais velha de 3 irmãos, dormia num apartamento com os irmãos gémeos, enquanto os pais jantavam com um grupo de amigos, num restaurante, a 50 metros de distância.


[4] Nesses dias, o Miguel costumava sair mais cedo, com a “autorização” conivente da educadora.


[5] Presentemente, o bebé já nasceu e o Miguel dorme todos os dias na casa dos pais. A mãe pediu transferência para mais perto de casa. Não lhe deram garantias, mas nota-se um grande esforço na resolução do problema.

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