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GOT, Revista de Geografia e Ordenamento do Território

versão On-line ISSN 2182-1267

GOT  no.6 Porto dez. 2014

https://doi.org/10.17127/got/2014.6.007 

ARTIGO ORIGINAL

 

O território brasileiro e a formação nacional: algumas aproximações a partir da produção intelectual no Brasil

 

 

Esteves, Cleydia1

1Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ; clesteves@yahoo.com.br  

 

 

RESUMO

Este artigo faz um resgate histórico - através da dinâmica de constituição, organização e simbolização do território brasileiro no tempo longo - da importância que o espaço teve para a construção do “sentido de formação” do Brasil, evocado desde as primeiras fabulações sobre ele até a atualidade, tanto do ponto de vista físico, da concretude da materialidade espacial, como da simbolização como processo de representação da identidade coletiva da nação brasileira. Para tanto se utiliza da relação entre a Geografia Histórica e o Pensamento Social Brasileiro para tratar do processo de formação nacional.

Palavras-chave: território, natureza, identidade nacional, representação, nação.

 

ABSTRACT

This article is a historical analysis - through dynamic formation, organization and symbolization of Brazilian territory - the importance that space had to build the "sense formation" of Brazil, evoked from the earliest fables about it until today, both the physical point of view, the concreteness of spatial materiality as symbolization as a process of representation of the collective identity of the Brazilian nation. For that utilizes the relationship between historical geography and the Brazilian Social Thought to treat the national training process.

Keywords: territory, nature, national identity, representation, nation.

 

 

1. O território no pensamento social brasileiro

 

 

“Vivemos na presença difusa de uma narrativa da origem. Essa narrativa, embora elaborada no período da conquista, não cessa de se repetir porque opera como nosso mito fundador. Mito no sentido antropológico: solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos na realidade. Mito na acepção psicanalítica: impulso à repetição por impossibilidade de simbolização e, sobretudo, como bloqueio à passagem à realidade. Mito fundador porque, à maneira de toda fundatio, impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto é, com um passado que não cessa, que não permite o trabalho da diferença temporal e que se conserva como perenemente presente. Um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para se exprimir, novas linguagens, novos valores e ideais, de tal modo que quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.” (CHAUÍ, 2000)

 

1.1. O território como desiderato nacional

O território do Brasil, desde sua origem, esteve ligado à fabulação sobre nossa identidade nacional. Para muitos ele é a própria significação do ser brasileiro (Carvalho, 1998; Chauí, 2000; Oliveira, 1998, 2000, 2007, 2008, 2010). Para analisar esta questão de fundo, vamos nos basear, sobretudo nos trabalhos da professora Lucia Lippi Oliveira (CPDOC-FGV), que desde sua tese de doutorado (Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, Brasil: um Estudo sobre o Nacionalismo, USP, 1986) vem desenvolvendo estudos sobre a identidade nacional brasileira. Para esta socióloga, o pensamento geográfico opera como uma constante na história brasileira. Por outro lado, o campo da história do pensamento geográfico vem crescendo e ganhando novos aportes e novas abordagens, como relata Moraes (1991). Mesmo este professor vem desenvolvendo ao longo de sua trajetória acadêmica e intelectual, importantes recuperações na área e ampliando a discussão e o aprofundamento da geografia no campo do pensamento social brasileiro, ao lado, é claro, do professor Milton Santos. Contudo para o primeiro, ainda há um grande espaço a ser ocupado pela produção científica geográfica, sobretudo no período colonial e imperial da história brasileira, onde a geografia como ciência e disciplinar escolar ainda não haviam sido institucionalizadas, entretanto foi produzida, utilizada e instrumentalizada para dar suporte à uma ideia de nação e de país. Deste modo a produção de estudos geográficos, será realizada por letrados, escritores, intelectuais de outras formações, ligados sobretudo à elite intelectual e política brasileira, de maneira geral, muito próximos do Estado no país.

Há que se ressaltar que escolhemos trabalhar com o conceito de território e não de natureza, meio ambiente ou espaço para abordar esta questão. A escolha é intencional: território é apropriação de uma porção do espaço, é uma construção social derivada da ação humana e envolve a disputa de poder, a diferenciação e delimitação de um nós e eles, o que vai implicar um processo de identificação entre “iguais”.

O que se pretende analisar aqui é como este processo se caracterizou na história brasileira, de modo que verificar a ocupação e utilização materiais do território brasileiro, bem como sua construção simbólica, nos revelará muito de como se encaminhou o desenvolvimento do país, isto é, de como as disputas pela apropriação do espaço situam os agentes (sociedade e o Estado) e suas ações.

Este trabalho é fruto de dissertação defendida no IPPUR/UFRJ (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro), na qual estudamos o pensamento do economista Celso Furtado, reconhecido internacionalmente por seu trabalho nas áreas do planejamento estatal e do desenvolvimento. Na dissertação procuramos realizar uma análise comparativa entre algumas obras que publicou sobre desenvolvimento e sua relação com a cultura brasileira. Nela reconhecemos um intelectual para além de um economista, com interpretações que o aproximam da Teoria Social e, portanto, das ciências humanas.

 Neste artigo, oriundo do primeiro capítulo da dissertação, pretendemos demonstrar como a construção do território brasileiro foi incorporada à cultura brasileira, numa transversalidade que vai, desde o senso comum até sua interpretação por intelectuais brasileiros, passando pelo Estado e suas elites. Para tanto fizemos uso de uma metodologia interdisciplinar entre a História das Ideias e a análise do discurso através do aporte da geografia histórica. Nossas fontes foram, sobretudo, bibliografia secundária que tratou do tema em questão. Por meio do exame dessas obras, foi-nos possível verificar como, à construção física do território brasileiro, correspondeu uma construção ideológica de longo curso, que se faz presente até hoje como suporte de uma ideia de nacionalidade e identidade cultural.

 

 

2. Semântica ambiental: natureza, território e representação

“O motivo edênico habita a imaginação nacional desde os primórdios da presença europeia. (...).” (Carvalho, 1998, p.1). Narrativas dos primeiros colonizadores (Carta de Caminha), cronistas do período colonial (Gandavo, Rocha Pita, entre outros), religiosos, viajantes, escritores (romantismo: Gonçalves Dias –Canção do Exílio, José de Alencar) até Afonso Celso com “Porque me Ufano do meu país” fizeram loas ao “paraíso terrestre” que era o Brasil. Sergio Buarque de Holanda em seu “Visão do Paraíso” procura dar conta deste processo. Uma literatura mais recente contudo, decorrente de novos olhares e com novos aportes teóricos, questiona e relativiza algumas dessas argumentações (Magnoli, 1997).

As qualidades intrínsecas do território foram escrutinadas (expedições de reconhecimento e científicas- dos bandeirantes à Rondon, defendidas (celeumas entre brasileiros e reinóis) e relatadas (documentos, livros, narrativas de viagens, pinturas) de modo a fazer parte do imaginário coletivo brasileiro como uma constante. Solos, florestas, rios, clima, sol, estações, as cores, a diversidade da flora e da fauna, os autóctones, em sua ingenuidade e pureza, eram a confirmação dos desígnios divinos e da profetização presente no livro sagrado, a bíblia.

Numa abordagem psicanalítica, o Brasil foi nomeado antes de ter nascido (descoberto, achado), este topos já existia na narrativa temporal dos europeus, faltava encontrá-lo.

Menos um conceito geográfico, ainda que para os conquistadores fosse um conceito geopolítico, militar e econômico, a América foi, para viajantes, evangelizadores e filósofos, uma construção imaginária e simbólica. Diante de sua absoluta novidade, como explicá-la? Como compreendê-la? Como ter acesso ao seu sentido? Colombo, Vespúcio, Pero Vaz de Caminha, Las Casas dispunham de um único instrumento para se aproximarem do Mundo Novo: livros. Quando lemos cartas, diários de viagem, relatos da vida americana, perspectivas filosóficas e políticas dedicadas ao Novo Mundo, podemos notar que os textos são muito menos descrições e interpretações de experiências novas diante do novo e muito mais comentários, exegeses de outros livros, antigos, que teriam descrito e interpretado as terras e gentes novas. O Novo Mundo já existia, não como realidade geográfica e cultural, mas como texto e os que para aqui vieram ou os que sobre aqui escreveram não cessam de conferir a exatidão dos antigos textos e o que aqui se encontra. Antes de ser designado como América ou como Brasil, o aqui se chamava Oriente, um símbolo bifronte: sede econômica e política dos grandes impérios da Índia e da China (descritas nas viagens maravilhosas de Marco Polo e Mandeville), mas também sede imaginária do Paraíso Terrestre, preservado das águas do dilúvio e descrito no Livro da Gênese como terra austral e oriental, cortada por quatro rios imensuráveis, rica em ouro e pedras preciosas, de temperatura sempre amena, numa primavera eterna. Terra profetizada pelo profeta Isaías, quando escreveu: Assim, tu chamarás por uma nação que não conheces, sim uma nação que não te conhece acorrerá a ti. (Is. 55, 6). Sim, da mesma maneira que os novos céus e a nova terra que estou para criar subsistirão na presença, assim subsistirá a vossa descendência e o vosso nome. (Is. 66, 20). (CHAUÍ, 2000, p.30)

 

O território como natureza, a natureza como revelação divina, a revelação divina como confirmação da eleição profética; esta a tessitura que fará do meio ambiente, do meio físico uma ressignificação simbólica da sociedade que aqui se plasmará: passiva, não violenta, harmoniosa, orgânica, enfim filha da Fortuna e não da necessidade. Os homens que aqui vivem, vivem no tempo da natureza, tempo cíclico.

Esta produção mítica do país-paraíso nos persuade de que nossa identidade e grandeza se encontram predeterminadas no plano natural: somos sensíveis e sensuais, carinhosos e acolhedores, alegres e, sobretudo, somos essencialmente não-violentos. O primeiro elemento da construção mítica nos lança e nos conserva no reino da Natureza, deixando-nos fora do mundo da História. (CHAUÍ, 2000, p.34)

 

Assim sendo, símbolos e signos que representam a pátria, na jovem República, darão contornos cívicos a estas representações da nação. A bandeira, com suas cores, pinta e o hino, com sua letra, canta, as riquezas nacionais, todas elas ligadas aos elementos naturais que abundam em nosso país. Mesmo antes, a cartografia colonial e a que dela se reproduziu na Europa, demonstra a persuasão da cartografia imaginada sobre a representação abstrata, do que à época se denominava “Ilha-Brasil. O Brasil nascido sob o símbolo do jardim do éden, paraíso na terra, exalta, proclama e reifica sua imagem natural

Reafirma-se, assim, aquilo que Freud enuncia em sua obra: a articulação entre o discurso social e o sujeito psíquico, o engendramento do Eu a partir de sua relação ao Outro, sustentada no campo cultural. Campo cujos contornos transcendem as fronteiras geopolíticas, mas que, sob o tecido de uma experiência espaço-temporal, coloca-se em questão a inevitável condição de exílio a que o humano, na relação à linguagem, encontra-se lançado. (POOA, editorial, 2000, p. 07)

 

Com a eleição da natureza como protagonista maior da nossa missão na terra, o lugar que será reservado ao povo, à sociedade será de mero espectador deste espetáculo natural. Até porque, se fomos abençoados por Deus pelo país que herdamos, já não fomos tão aquinhoados quando o assunto é os próprios brasileiros. Questão posta no século XIX, com a independência e a escravidão, a diversidade étnica (as três “raças”: índios, brancos e negros) e cultural, a manutenção da unidade do território, a conjugação dos interesses regionais e a supremacia do governo do Império e da figura do Imperador, foram problemas de difícil resolução para as elites que sonhavam com um país moderno, civilizado e que projetava seu futuro sob o lema da ordem e progresso. Como lidar com a miscigenação sob a influência das teorias eugênicas, tributárias do darwinismo social, então em voga? Quais os lugares de negros e índios no processo social então em curso? Como conciliar desejos autonomistas e centralização governamental, interesses nativistas e portugueses? É o que tentamos responder a seguir.

O período imperial da história do Brasil será de fundamental importância para o que aqui estamos tratando. Com a renovação das pesquisas sobre a monarquia imperial, sobretudo os estudos relacionados aos aspectos político-sociais e a armação institucional do Estado, via governo e as elites políticas (os trabalhos de José Murilo de Carvalho, de Lilia Schwarcz, entre outros). Neste sentido a independência será um processo duplamente codificado: ruptura (política) e continuidade (elites hegemônicas luso-brasileiras) darão o tom de rearranjo das forças em disputa pelo poder.

Assim a construção de uma nação civilizada nos trópicos, tinha como projeto hegemônico, uma invenção do Brasil baseada numa metanarrativa geográfica, onde o território seria um todo coerente e estruturado pela própria natureza. Para tanto é preciso reconstituir o período colonial através da Ilha-Brasil e a doutrina das fronteiras naturais. Esta reinterpretação orientou um programa claro de políticas de fronteira (marcação e delimitação com outros países latino-americanos), bem como a visão geopolítica do Estado imperial, vis-à-vis as recentes repúblicas oriundas do processo de fragmentação do império espanhol. Presença incômoda e que pressionará, tanto a política interna, quanto a política externa da monarquia, na manutenção da unidade territorial brasileira.

 

2.1. Narrativas Discursivas de Formação – Institucionalização: IHGB

O Brasil é o que é mais a interpretação produzida sobre ele desde que aqui se criou vida reflexiva. E isso porque interpretar o Brasil tem sido, antes como agora, menos avaliar e sopesar um conhecimento haurido dos fatos do que a projeção do que deveríamos nos tornar. Ato que, com frequência, mobiliza meios cognitivos, embora consista sobretudo em um exercício normativo em que o recurso ao método científico visa mais obter força retórica para o que se argui do que propriamente fundar uma explicação sobre a sua realidade.(...). (WERNECK VIANNA in BARBOZA FILHO, 2000, p.07)

 

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro é fundado no Rio de Janeiro em 1838, com o objetivo de dar corpo a um projeto de formalização (sistematização de informações, através da coleta, tratamento e divulgação de documentos, testemunhos, textos, livros) da história brasileira, segundo uma tradição iluminista e elitista. História e Geografia são assim conhecimentos que serão utilizados para legitimar uma certa visão do país, que ao mesmo tempo que preconizava a afirmação da nacionalidade, erigia seu Outro, aquele ou aqueles que não faziam parte daquela identidade e no extremo, eram-lhe o oposto, caso das repúblicas vizinhas recém independentes, Salgado (1988).

No início próximo, posteriormente patrocinado pessoalmente pelo Imperador, ele se colocará a serviço da monarquia com o intuito de participar ativamente do projeto político desta última, claramente identificado com suas elites, aliás fortemente representadas em seus membros, entre os quais contavam muitos funcionários do governo e autoridades do Estado.

O conhecimento geográfico do país constituía um dos suportes dessa história nacional, dando mostras do valor simbólico conferido ao território e à natureza nas representações sobre a nação. Na perspectiva do Instituto – e em conformidade com um modelo estabelecido em fins do século XVIII –, a geografia era necessária sobretudo para o entendimento da história, subordinando-se a esta como disciplina auxiliar. Quando não orientados para cartografia e questões de limites, os trabalhos de cunho geográfico convergiam quase sempre para duas direções: as corografias ou notícias de províncias/capitanias e os roteiros de viagens e explorações. Convém observar que esses temas inscreviam-se também no domínio dos estudos históricos, o que torna relativamente inócua a preocupação de certos estudos em distinguir, na produção do Instituto, conteúdos correspondentes à história e à geografia. Tal distinção não parecia fazer muito sentido no projeto acalentado no âmbito do IHGB, que entrelaçava de fato a problemática de constituição da nação com a definição de sua identidade físico-geográfica. História e geografia eram, portanto, interdependentes e complementares, constituindo “dois momentos de um mesmo processo, ao final do qual o quadro da Nação, na sua integralidade, em seus aspectos físicos e sociais, estaria delineado. (PEREIRA, 2005, p.114)

 

Entretanto este projeto terá que lidar com questões ligadas às próprias contradições relacionadas ao país que se forjou no processo de independência. Estamos nos referindo aqui ao papel de negros e índios, que não eram reconhecidos como portadores da ideia de civilização. Portanto incapazes de integrar o ideal de população como um grupo social homogêneo e que partilhasse características comuns, como “raça”, língua e cultura, sem falar numa história comum. Como fundar então um princípio de identidade social que desse substrato a ideia de soberania nacional e legitimasse a ação do Estado como representante daquela individualidade existencial?

Foi a partir destas questões que foram incorporados estudos etnográficos, linguísticos e arqueológicos, para que a antropologia, esta mediadora e portadora da relação com o Outro, retirasse o índio de sua barbárie e o colocasse, preservando-lhe as boas características, sob a proteção do homem branco, superior e capaz de conduzi-lo rumo ao esclarecimento e à civilização.

Quanto ao elemento negro, por suas “características intrinsecamente negativas” e por se tratar da base de sustentação da produção agrícola, do trabalho e do rico mercado da escravidão, continuará fora da sociedade e a margem do sistema, só entrando nos interstícios da legalidade e da aceitação social.

Fundada numa sociedade fortemente hierarquizada, escravagista, com controle político sustentado na violência; excluída a maioria da participação cívica, esta construção simbólica vai subtrair o fator humano como princípio de coesão social e vai buscar na natureza, os valores que poderão amalgamar a ideia de nação e de identidade nacional.

 

2.2. Terra, escravidão e estado

Não se pode entender a concentração da terra no Brasil sem se reportar à estreita ligação entre escravidão, lei de terras de 1850 e a expansão da atividade agrícola em moldes capitalistas no país. A conjuntura posterior a independência, o cerco cada vez maior dos ingleses ao tráfico de escravos, a expansão da fronteira de ocupação do território irão tensionar cada vez mais, a base de sustentação do complexo de produção que tem seus pilares fundamentais no latifúndio, na escravatura e na monocultura.

A lenta liberação da escravidão que se alongou pelo século XIX, através da Lei do Ventre Livre, da lei Euzébio de Queiroz e por fim a Lei Áurea, só tem sentido se for vista em relação à Lei de Terras de 1850, que fecha para os libertos e os homens livres pobres o acesso a propriedade privada, porque a partir daí só através da compra, o acesso à terra e portanto a possibilidade de autonomia frente à coalização de poder que se coloca entre os latifundiários e o Estado monárquico.

A constituição e o fechamento do mercado de terras às camadas mais pobres da população e sua concentração nas mãos dos que antes a receberam por doação real e agora privilegiados pela posse do dinheiro e proximidade com o poder, vai condenar grande parte da população ao jugo das oligarquias regionais, aos interesses dos proprietários e à sua manutenção como mão de obra barata e farta, o que pelo alto e por baixo consolida a extrema desigualdade social e econômica que será uma tônica na história brasileira.

Mesmo assim o estoque de terras era enorme, era preciso estabilizar o espaço ocupado e abrir novas frentes de colonização, para que a expansão continuasse se dando a baixos custos e integrando novas formas de exploração. Era preciso igualmente debelar novos focos de tensão e contestação que ao longo do século XIX, colocaram o poder monárquico em questão e abriram espaço para o separatismo e a confrontação ao centralismo do governo imperial. Conciliar todos esses interesses, reiterar a unidade territorial, referendar o poder monárquico na pessoa do Rei, foram os desafios que o governo imperial enfrentou ao longo do período e que condicionou a formação dos gabinetes ministeriais e as políticas públicas até a proclamação da República.

 

2.3. Estados Unidos como espelho - fronteira, pioneiros, bandeirantes: os “vazios” e o Oeste-Sertão.

Se a instalação do regime republicano no país não significou rupturas profundas na formação social brasileira, em relação ao seu passado imediato, isto é, à monarquia (Carvalho, 1987), em função da permanência no poder, dos grupos que sustentavam o regime anterior e portanto, dos privilégios e a divisão de poder que antes vigorava, a conjuntura histórica da primeira república terá que lidar com novos questionamentos a esta coalização de classe e à manutenção das profundas desigualdades sociais daí decorrentes. O Brasil que desponta no início do século XX vai paulatinamente mostrando outra face, o que contribuirá significativamente para as contestações sociais verificadas ao longo das três décadas que antecedem a revolução de 1930.

Um exemplo para o que aqui nos interessa, dessa tensão, diz respeito a Constituição de 1891, a qual passa para os estados, a função de legislar sobre as terras devolutas, o que deixará a quem delas depende, à mercê das oligarquias rurais/regionais, que assim darão continuidade ao regime de mandonismo local, classicamente analisado em Coronelismo, Enxada e Voto, (Leal, 1948), (Santos, 2010).

Se é fato que do ponto de vista político, a hegemonia da classe continuou, por outro lado, a abolição da escravatura, a intensidade do processo da imigração (inclusive como política pública do Estado, que tinha entre seus objetivos, o “branqueamento” da população e a substituição da mão de obra escrava pela do imigrante europeu), o surto de industrialização verificado na cidade do Rio de Janeiro, desde a década de 1870 e depois em São Paulo, neste mais relacionado à transformação dos produtos agrícolas e mais espraiado pelo interior do estado (seguindo a dinâmica da atividade agrícola), a crescente urbanização das capitais, evidenciado o aprofundamento do fenômeno urbano no país, do qual a capital do país é seu exemplo mais cabal e o aparecimento de uma classe média, relacionada à expansão do aparato administrativo do Estado (os casos dos funcionários públicos e militares, por exemplo), do comércio e das atividades tipicamente urbanas, vão consubstanciar a transformação da sociedade, tornando-a mais complexa, quer do ponto de vista econômico, quer do ponto de vista social.

Em relação às atividades produtivas, o país se concentrava em manter condições favoráveis ao cultivo e a exportação do café, principal atividade da nossa economia e em redor da qual, girava todo o processo econômico do país. Assim sendo toda política de câmbio, financeira e de mercado era para sustentar esta atividade em bases propícias aos grandes lucros de seus controladores, que não por acaso, também controlavam o Estado, na já famosa e denominada política do “café com leite”. Devido a esta predominância dos interesses ligados ao café, muitas iniciativas dos governos foram contestadas pelos grupos que não se sentiam representadas por elas, como é o caso do setor industrial, que começa a se ressentir das prerrogativas agrícolas na condução da política de Estado para o setor econômico. Problemas como a “questão do encilhamento, na década de 90 e outros que virão, relacionados à sustentação dos preços do café no mercado mundial, levarão a uma insatisfação cada vez maior, de outros setores que começam a crescer no país.

Estas mudanças nas formas de vida vão se relacionar também com as transformações nas maneiras de ver o mundo, de significá-lo e representá-lo. As novas ideias circulam, as mudanças técnicas propiciam maior rapidez e agilidade da informação, entre o Brasil e o mundo e também internamente. Os meios de comunicação se multiplicam e se ampliam, mesmo que lentamente a educação formal alcança um público maior, as faculdades de Direito, de Medicina, de Engenharia (Politécnicas) formam nossos bacharéis, ávidos em participar dos novos destinos do país. Jornais, revistas, livros, panfletos atingem mais pessoas, em mais lugares. As fontes se diversificam, bem como suas origens. A vida urbana se enriquece, atrai para seus cafés, confeitarias, ruas, encontros, teatros, reuniões. As discussões políticas, partidárias, literárias, filosóficas crescem e agremiam, juntam, polemizam, enfim o espaço público se amplia e requer atenção, resposta e oferece alternativas.

É neste ambiente de maior abertura ao debate e opiniões que desponta uma questão que nos interessa especialmente. Entre as décadas de 1890/1920, isto é, após a abolição da escravatura e proclamação da República tivemos a emergência do que poderíamos designar como pensamento conversador autoritário, com Oliveira Vianna, Alberto Torres, Azevedo Amaral, Nina Rodrigues, entre outros, os quais buscavam referendar o tipo de sociedade que viam como solução para o Brasil, na continuidade do debate que perdurou no último quartel do século anterior (geração de 70), acerca dos destinos do país (nação, povo, economia): agrário, europeu, elitista, burocrático-centralizador.

Houve mesmo um intenso debate entre os que defendiam uma postura mais conservacionista e outros que defendiam mudanças mais profundas, a começar pela industrialização. O sentido continua a ser dar uma face (branca) ao povo, um corpo (nação) social a um Estado (cabeça) que comandava todo o processo de formação nacional.

Não é simples o panorama intelectual da Primeira República, em especial no que se refere à distinção entre os diversos projetos nacionalistas que então germinavam no cenário político-intelectual. Em tese sobre o assunto, Lúcia L. Oliveira mostra como o próprio sentido de tradição – elemento tão central para qualquer nacionalismo – era ponto de discórdia. (MAIA, 2008, p.57)

 

Entretanto podemos situar este debate no caldo de uma série de influências, oriundas sobretudo, da Europa e nela especialmente a França e dos EUA, que desde o último quartel do século XIX povoa o imaginário dos nossos liberais mais abertos às transformações que naquela sociedade se verificavam. Teremos aqui uma espécie de embate de duas “tradições de pensamento” acerca das ideias de liberdade, igualdade, estado, sociedade, economia, enfim daquilo que se designava como moderno e que por sua vez, estava em estreita relação com o cientificismo (positivismo sobretudo), darwinismo social, liberalismo e a ideia de progresso, entre outros.

À tradição de pensamento europeia devemos a formação das elites letradas, dos homens públicos e políticos, dos escritores e de intelectuais que buscavam em Coimbra, Lisboa, Paris e Londres o conhecimento e a titulação que aqui ou não eram oferecidos, ou eram de má qualidade, quando não queriam fugir da visão mais doutrinária religiosa e buscavam estudos mais laicos e especulativos, onde o método científico ganhava mais adeptos.

Por outro lado, a nação que se desenvolvia de forma surpreendente ao norte do continente americano, seduzia os mais jovens, aqueles que buscavam outros modelos para o país. Os EUA foram os primeiros a se tornarem independentes, a primeira República, assemelhavam-se ao Brasil na grandeza do território, na importância da escravidão e da imigração para a composição de suas populações, na presença de elementos indígenas como obstáculo à ocupação e colonização das terras. Experimentavam um crescimento econômico vigoroso e contínuo, onde os setores econômicos colaboravam de forma dinâmica para o desenvolvimento industrial. Ali o futuro estava acontecendo, era preciso atentar e se possível imitar seu exemplo, bem sucedido, de progresso material e humano.

Deste modo constituíram-se duas visões de futuro que disputavam a primazia na condução dos destinos do país: aqueles que miravam a Europa como modelo de sociedade, de desenvolvimento econômico e princípios morais e aqueles que miravam os EUA, como novidade bem sucedida de transformação social rumo ao progresso e a democracia social. Nesta aproximação de ideias com os EUA, fica evidente uma certa noção de identidade nacional, de jovens nações que estão buscando seu lugar no mundo e entre as grandes civilizações. Mas uma ideia e uma questão em especial foram a gênese de um intenso, extenso e significativo debate intelectual por parte de nossos “homens de ideias”, qual seja, a ideia de fronteira. “(...) Fronteira é um tipo de junção de espaço simbólico, ideológico e material. (...) (OLIVEIRA, 2000, p.117) Lá como cá, pelas próprias características físicas, ecológicas e geográficas do território, os denominados “espaços vazios” (a uma questão subjacente aqui, que passa ao largo da discussão, qual seja, que estes espaços não estavam exatamente “vazios”, mas eram ocupados por pessoas e/ou conformados por processos ambientais que deveriam ser removidos, exterminados ou modificados, para que a nação, em progresso, pudesse se instalar).

Em um livro dedicado ao tema, Oliveira afirma que:

(...) Minha hipótese de investigação era a de que, nesses dois países, a geografia teria fornecido o mais forte embasamento para a construção dos modelos de identidade nacional que tiveram êxito. Nessa hipótese, não trabalhei supondo que os dois modelos de construção fossem idênticos, ao contrário, sei que as diferenças são enormes e podem ser observadas ao longo dos artigos que tratam diretamente da construção da identidade norte-americana. (OLIVEIRA, 2000, p. 11)

A produção deste imaginário, no Brasil, está estreitamente relacionada à produção literária e ensaística, as formas por excelência que nosso bacharelismo encontrou para expor suas ideias e narrativas, ainda que desde período anterior, sobretudo relacionada às sociedades científicas que aqui se instalaram (no caso da geografia, além do IHGB, tínhamos de maneira conflituosa, duas sociedades, localizadas no Rio de Janeiro, ver (Pereira, 2005) e as faculdades isoladas, uma busca por estudos onde os métodos científicos de elaboração e exposição de pesquisas fossem executados.

A Primeira República foi pródiga em fabulações que procuravam rearticular os temas da terra e da construção da nacionalidade. Dois livros, escritos no mesmo ano, funcionaram como portas de entrada para a discussão sobre a natureza de nossa geografia americana e seu papel na invenção de uma sociedade moderna, inscrita na dinâmica temporal do Ocidente: Canaã, de Graça Aranha, e Os Sertões, de Euclides da Cunha.(...).(MAIA, 2008, p.55)

 

Sem dúvida nenhuma o livro de Euclides da Cunha marca este debate, de forma indelével até hoje. Sua formação, o sucesso imediato da publicação, a forma como aborda o problema e as conclusões a que chega, constituem o pano de fundo sobre o qual a temática se desenrola. Outros intelectuais irão escrever sobre a mesma questão, com opiniões e tratamentos diversos e nesta discussão vem à tona, uma espécie de constituição bipolar do país: litoral-interior, cidade-campo, moderno-atrasado, civilização-barbárie, indústria-agricultura, urbano-rural.

Podemos dizer que há um pensamento geográfico presente em várias vertentes deterministas e evolucionistas, assim como no modelo de crítica literária difundida no fim do século XIX. A importância da fórmula de Taine –meio, raça e movimento- está registrada na maioria dos intérpretes do Brasil na virada do século XIX para o XX. Essas questões vêm sendo investigadas e afirmadas pelos geógrafos, principalmente por aqueles que vêm fazendo a leitura do pensamento geográfico no Brasil. (OLIVEIRA, 2008, p.18).

 

Em relação aos EUA o debate surge de forma um pouco distinta. A obra que o marca, tinha a intenção, senão clara, ao menos subliminar, de lançar uma nova visão do país, que reforçasse o passado em meio a uma conjuntura de intensa transformação econômica, social e territorial. O sentido era dar relevo ao mito fundador, quando o país ia perdendo contacto com ele, assim.

Uma expressão dessa narrativa fundante é o ensaio de Frederick Jackson Turner ‘O Significado da Fronteira na História Americana’, lido em 1893 na reunião da American Historical Association que acontecia em Chicago em conjugação com a Word’s Columbia Exposition, comemorativa do quarto centenário da descoberta da América. Turner faz uma releitura da excepcionalismo americano e o coloca para o mundo acadêmico. Desde então os historiadores discutem, pesquisam para ‘provar’ o acerto ou o equívoco de sua tese. (OLIVEIRA, 2008 p. 35)

 

O sertão para Euclides da Cunha, o Oeste para Turner vão mobilizar uma série de ideias-força que tem na relação homem-meio, um poderoso veio de análise acerca das capacidades, dos desafios, da visão de futuro, de sociedade que os respectivos países têm para enfrentar. O livro de Euclides é uma espécie de denúncia de como um processo de ocupação que se realiza à revelia do Estado e da sociedade, pode levar a um embrutecimento do homem, ao seu isolamento e ao seu abandono. Mesmo sendo “um forte” na sua luta contra a natureza hostil e daí forjar um caráter, que pode representar o “Brasil profundo”, é preciso resgatar e recuperar este homem a bem da nação e de sua integridade nacional.

Por outro lado, a retórica de Turner é uma celebração, enunciação da vitória do “gênio do homem” sobre a natureza, que ao dominá-la, transforma-a e a si mesmo, inventando um novo homem, expressão desta simbiose entre cultura e meio ambiente. Este novo homem é a gênese de uma nova sociedade, identificada a si mesmo, que desencadeia uma nova forma de vida em comunidade. Protagonistas dessas epopeias, bandeirantes e pioneiros serão os artífices deste território-sociedade fundante

O movimento de penetração e expansão territorial da América portuguesa vai ser, na segunda década do século XX, objeto de valorização, de reinterpretação, de construção mítica. São os paulistas que, nos anos 20 e 30, querem reconstruir a história da unidade nacional, a partir do movimento dos bandeirantes (...). (OLIVEIRA, 2008, p.96).

 

No contexto da História dos EUA, o texto de Turner bem como a noção de fronteira servem como uma construção ideológica, que se tornou hegemônica e funcionou para ocultar o processo violento, racista e usurpador que o projeto de expansão territorial de suas elites realizou durante o período de colonização

O mito da fronteira é, assim, um dos mitos nacionais criados na história americana dos séculos XVII até o século XX. A ideia de chegada à terra prometida, um Novo Mundo além da crença de ser o povo escolhido povoam o imaginário norte-americano. A história deste povo é representada como a história de sucessos do homem branco, anglo-saxão e protestante. Os excluídos desta ‘história oficial’ foram, durante muito tempo, os índios e os negros já que não se encaixavam em nenhum dos papéis honrosos desta trama. No final do século XIX, outros ‘excluídos’ fazem sua entrada no cenário americano: são os operários imigrantes que participam da fantástica revolução industrial americana após a guerra de civil. (OLIVEIRA, 2000, p.128)

 

Este debate vai estar presente numa série de manifestações culturais, em embates políticos, em programas de associações civis, em livros, revistas, exposições que aparecerão no período considerado. A Semana de Arte Moderna, o movimento modernista, as expressões artísticas deles decorrentes, a literatura regional, enfim a agitação política, cultural e social que o país à época vive, terá estreita correspondência com a imagem de nação que se defende, pugna que colocará em confronto as diversas visões de identidade nacional.

Segundo Fischer, não é comum que haja gerações e gerações preocupadas com a identidade – ou formação, conforme chamam os literatos – em todos os países. Esse é um tema que ocupa grande parte das discussões e das obras de autores de países colonizados. Isso também ocorreu na Argentina, por exemplo, até meados da década de 30, quando os autores argentinos estabilizaram uma leitura de sua identidade que consideraram satisfatória. No Brasil, parece que se trata de uma questão mais aguda e que não se restringe a um momento, ao contrário, percorre toda nossa história. (BACKES, 2000, p.13)

 

 

3. Sentido de formação: intérpretes do Brasil

Temos tentado, ao longo deste trabalho, evitar um tratamento linear do tempo, na busca pela dinâmica própria que a temática requer. Neste ponto do trabalho, esta atenção eleva-se no tratamento metodológico e apoiando-nos em Braudel (1982), que conforme Arruda (1984) nos chama a atenção, ousou em seu plano de análise passar de uma ordem cronológica para uma ordem metodológica, onde o historiador estabelece os cortes temporais e a periodicidade que julgar mais pertinentes ao seu objeto de estudo (por exemplo, tempo geográfico, tempo social, tempo pessoal: as dimensões da vida prática), julgamos que para compreender adequadamente a temática enunciada acima, no âmbito de nosso objeto de pesquisa, precisamos fazê-la em perspectiva e comparativamente.

É na realidade o olhar retrospectivo que informa nossas indagações neste momento. Recuperar o debate sobre os denominados “Intérpretes do Brasil” só faz sentido se não os imobilizarmos na conjuntura em que tiveram lugar seus escritos, mas perceber a sua produção como vasos comunicantes, de extensão e largura variadas, de um sistema maior, no qual ganham pertinência sem contudo, perder a singularidade de suas contribuições.

Assim se nos concentrarmos no século XX, podemos perceber alguns momentos-chave, aceitos de modo geral pelos campos disciplinares que trabalham com esta questão. Começando pelas décadas de 20 e 30, onde segundo Candido (1984), teríamos a passagem de um projeto estético para um projeto ideológico Lafetá (1974). Nesta passagem e após a Revolução de 30, coloca-se o que o autor conceituou como “rotinização” no plano cultural, de um modo de ser e estar que vai rompendo com o quadro social anterior.

Conhecemos através de Antonio Candido, o mais renomado e longevo crítico, se quisermos delimitar, literário, da cultura brasileira, que no “espírito dos anos 30”, uma espécie de consciência crítica difusa semeou um interesse pelas “coisas do Brasil”, que a “rotinização” das atividades culturais propiciou uma “consciência nacional” cuja preocupação maior era conhecer a “realidade brasileira”.

É neste ritmo então que vemos a literatura regional (nordestina em especial mas também gaúcha, mineira), dar-se a conhecer e ao Brasil, tornar-se nacional, que outras expressões artísticas como a pintura, a música (especialmente popular, com a introdução paulatina do samba no gosto nacional), a poesia, o cinema vão trazendo um Brasil novo, desconhecido na sua própria diversidade espacial, cultural, social.

À maior circulação de ideias, corresponde um crescimento do mundo editorial, com revistas, jornais, livros, entre outros, pontuando o debate sobre o país. É aqui que se inserem grandes obras, em geral tomadas como ensaísticas, porque fruto da reflexão livre, porém ponderada e consequente, de intelectuais que se legitimam não pela academia, mas pelo próprio meio diverso e consagrado da produção literária.

De modo geral estas obras marcam o desenvolvimento do pensamento político e  ideológico inicialmente, acadêmico e científico posteriormente, de suas épocas, tanto para se legitimarem como para confrontá-las, nos legando novas interpretações que de certa forma, significaram uma ruptura com a tradição de pensamento anterior, seja do ponto de vista teórico-metodológico, seja do ponto de vista explicativo.

Como camadas que vão se ajustando, acresce-se a este pano de fundo, algumas obras que serão seminais, durante a década de 30, numa conjuntura de reajustamento das elites no poder, de uma nova composição de classes (urbana) na sociedade e da ascensão da indústria como motor do processo econômico. Estas obras serão uma espécie de divisor de águas no campo intelectual, por sua aceitação, suas abordagens inovadoras e suas análises que buscavam, de certa forma, responder aos anseios das classes dirigentes do país. Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre (1933), Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda (1936) e Evolução Política do Brasil de Caio Prado Júnior (1933).

Podemos afirmar que estas obras, da primeira metade do século XX, tinham como desígnio, como intenção escrutinar, moldar um certo “sentido de formação” nacional, oferecer uma resposta ao que éramos como país, como construção histórica inscrita no conjunto das nações ditas civilizadas. Os títulos dos livros não deixam dúvidas sobre isso: Casa Grande & Senzala pode ser lido através mesmo da metáfora da casa, Raízes do Brasil remete aos fundamentos, à base do Brasil  Ricupero ( 2008).

Do ponto de vista teórico-metodológico temos a antropologia norte-america (Franz Boas) como mediação ao trabalho de Gilberto Freyre, a sociologia alemã (Weber) para o estudo de Sergio Buarque de Holanda e o pensamento crítico marxista (Marx) para Caio Prado Júnior. Portanto três diferentes parti pris para analisar o modo como o Brasil se insere no império colonial português e como a partir daí, o país constrói sua participação na expansão do sistema capitalista e na denominada ocidentalização do mundo, ou seja, no projeto de modernização europeu. Destas obras se destacará os conceitos de plasticidade para o primeiro, cordialidade para o segundo (no conjunto dos estudos sobre personalismo, patrimonialismo) e sentido de formação para o último.

Não aludirei aos seus teores, pois sobejamente conhecidos, contudo são obras que a partir daí, pautaram os debates subsequentes, seja para refutá-las, seja para legitimá-las, como veremos mais adiante. Estas obras dialogaram com seu tempo, ao fazerem a mediação entre passado e futuro. A conjuntura política, econômica e social do país naquele momento, repercutirá as análises por elas trazidas.

Até aqui estamos fazendo referência a pensadores, intelectuais que estavam inseridos institucionalmente ou indiretamente na influência do Estado, seja pela via do exercício profissional, seja pela ação de organizações civis ou de divulgação, como então era comum. Embora esta seja uma via de continuidade ao longo do período, isto é, a proximidade dos intelectuais ao Estado.

Posteriormente destacam-se os anos 50, onde o Nacional-Desenvolvimentismo sintetiza a ambiência política, cultural, social e econômica do Brasil feérico que se vivia então. Vivia-se o otimismo do progresso, dos 50 anos em 5 e da aceleração da industrialização. Destoando da filiação acadêmica temos no Rio de Janeiro, o ISEB, instituição que se coloca a tarefa de pensar o Brasil e com este propósito se aproxima da CEPAL, ambas as instituições muito próximas do Estado. Articulada aos governos do período reunia intelectuais de renome no propósito de diagnosticar os desafios nacionais no combate ao “atraso” ou entraves à modernização do país.

Por outro lado, a partir da criação da USP (Universidade de São Paulo) em São Paulo e da UDF (Universidade do Distrito Federal) no Rio de Janeiro, veremos progressivamente este debate caminhar para o âmbito acadêmico, o que terá como consequência outro “modus operandi” e mesmo a institucionalização de outra esfera de discussão e legitimação do discurso e do fazer, agora formalmente científico.

Deste modo veremos nos anos 50, o aparecimento de “Os Donos do Poder” de Raymundo Faoro (1958), “Formação Econômica do Brasil” de Celso Furtado (1959), “Formação da Literatura Brasileira” de Antonio Cândido (1959) e o despontar de Florestan Fernandes na USP, à frente do instituto de Ciências Sociais. Correndo paralelamente teremos, portanto, a institucionalização acadêmica das ciências sociais no Brasil e a constituição concomitante de “escolas” como é o caso de Rio de Janeiro e São Paulo, que passam a polemizar o debate.

Continuamos aqui com a referência à obra weberiana, no caso de Faoro, desta feita, reforçando o patrimonialismo como ideia-força de análise. Celso Furtado, neste aspecto revelará uma abordagem especial; sobre suas referências teóricas, ele afirma serem Mannheim, a antropologia norte-americana, via Gilberto Freyre e o positivismo Furtado (1998). É importante registrar neste momento que a trajetória de Celso Furtado será distinta, particularmente, dos demais, na medida em que a participação na CEPAL abrirá todo um novo campo de reflexão, discussão e atuação, a partir da América Latina, que terá como consequência a sua Teoria do Subdesenvolvimento. É também o momento no qual terá a oportunidade criar a SUDENE, marco de sua ação como planejador e através da qual porá em prática sua concepção de planejamento governamental.

Anos 70, na correlação de forças entre o esgotamento paulatino da ditadura militar e a crescente organização da oposição, vamos ter o aparecimento de vários projetos, entre os quais artísticos, de tomada de posicionamento político, mas não só, que vão novamente resgatar os elos perdidos de nossa história recente.

Mas as influências externas também se farão notar ainda que lentamente, entrando na década de 80 e neste sentido, influenciados pelas celeumas acadêmicas do pensamento pós-moderno (rompimento com as grandes narrativas e sistemas explicativos) e a assunção de novas temáticas (direitos humanos, sociais e ambientais), conjugadas a novas formas interpretativas (virada linguística, cultural e espacial) que deslocam temas/metodologias e reacendem polêmicas disciplinares, veremos a expansão do sistema universitário e da pós-graduação, num movimento de formalização da produção intelectual em contornos científicos. Assim os debates se internalizam no meio acadêmico e daí justificam sua legitimidade social (Werneck Vianna 1997).

Neste período então são publicados “Crítica da Razão Dualista” de Francisco de Oliveira (1972), “A Revolução Burguesa” de Florestan Fernandes (1976) e “Liberalismo e Sindicato no Brasil” de Luiz Werneck Vianna (1976). Estes autores estarão dialogando diretamente com o modo como a modernização, no Brasil, se consolidou sob o regime capitalista periférico, isto é, como seu viés conservador, excludente e desigual logrou forjar a formação social brasileira durante o século XX. Aqui teremos o pensamento crítico, sobretudo Marx e Gramsci pautando o debate.

Por outro lado, veremos a crítica literária ganhar mais densidade reflexiva e propositiva com os trabalhos de Roberto Schwarz (1997, 1987, 1978). Seu texto “As ideias fora de Lugar” tem como interlocução, a proposta de interpretação da cultura brasileira de Antonio Candido (nomeada como a ética da malandragem) e a literatura de Machado de Assis, vai lançar um debate que se estenderá no tempo e entre os campos disciplinares que refletem sobre a cultura brasileira.

 Deste modo mesmo depois da redemocratização do país e da nova Constituição de 1988, o esforço por maior participação política, por maior distribuição de renda e por um desenvolvimento mais autônomo estariam constrangidos pelos interesses específicos das classes dominantes que operam na manutenção do controle social e político a partir do Neoliberalismo, com sua proposta de Estado mínimo e mercado como instância de resolução dos conflitos sociais. Assim sai de cena o cidadão e entra o consumidor.

Na década de 90, outra conjuntura, confusa porque enviando sinais trocados entre economia e política, isola o social na busca por si mesmo, inclusive com projeto claro de negação de parte da herança política e cultural que predominou a partir de 30.

O debate nos anos 90 será, de certo modo, aglutinado, pelo lançamento de um livro, “O Espelho de Próspero” de Richard Morse (1982, México; 1988, Brasil), Historiador norte-americano, brazilianista e o artigo de Simon Schwartzman publicado na Revista Novos Estudos do Cebrap (1988). Debate onde não poucos tomaram parte, poderíamos sintetizar na retomada da celeuma entre “americanistas e iberistas”. Embora, de modo geral, a maioria se baseasse em Weber, o problema era o tipo de modernização que teve curso no Brasil e na América Latina (isto possibilitou que estudiosos latino-americanos fizessem parte do debate) e sobretudo, suas consequências para as sociedades que aí se forjaram.

 

 

4. Conclusão

Atualmente, novamente nos encontramos em linha aberta com a tradição de pensar o Brasil, no sentido forte, debate colocado pela retomada do desenvolvimento e do Desenvolvimentismo (com novas adjetivações teóricas, por exemplo, novo, social), portanto muito mais próximos dos anos 50 no ufanismo economicista, do que no pensamento crítico dos anos 70. Atualmente diríamos que o debate se renova e ganha maiores horizontes a partir dos denominados estudos pós-coloniais. O sentido aqui é a abertura teórica, metodológica, epistêmica, bem como de temas, abordagens, releituras e a recusa clara de uma orientação europocêntrica.

Em relevo a questão é, em outra chave interpretativa, o que faz comunicar um Hélio Oiticica, uma Lígia Clark, um Glauber Rocha, com Mario de Andrade, com Tarsila do Amaral, com Mario Peixoto? Tanto do ponto de vista estilístico como político, o que tem a ver o Tropicalismo (tema, entre outros, do último Schwarz), os Dzi Croquettes e os Secos e Molhados com Oswald de Andrade, com Pagú e até recuando um pouco mais com Chiquinha Gonzaga, Sinhô e Grande Otelo e Oscarito?

Como literatura, música, cinema, televisão e internet vão se sucedendo e adensando, sob os auspícios da indústria cultural, os impasses e a complexidade da cultura brasileira, que alguns têm pejo em dizer nacional? É bem possível que para Celso Furtado, Aleijadinho fosse um “Intérprete do Brasil”, assim como poderíamos dizer que Oscar Niemeyer também, com a plasticidade tropical do concreto, sua linguagem por excelência.

O debate sobre os “Intérpretes do Brasil” legitima e sanciona a forma escrita da interpretação do Brasil, mas escrita sob determinados parâmetros, especialmente consagrados, na sua interpretação pela forma acadêmica. Será que Caetano Veloso, Haroldo de Campos e Patativa do Assaré poderiam ser designados como tais? Só para exemplificar com linguagens próximas àquelas mencionadas.

Sabemos que este debate tem algumas premissas que norteiam sua identificação, como a própria escrita, por assim dizer norma culta de expressar a experiência do sensível e do diverso, consagrada no século XIX, na cultura europeia, daquilo que nos aproxima e nos afasta dos outros, do registro palpável e longevo da história. Mas entre o que ela foi e o que ela é atualmente, vai um longo curso, onde as bifurcações são tantas, que parece, perdeu-se o rumo e o horizonte para o qual caminhar.

O território, neste contexto, continua sendo um referente, contudo atualizado pelos desafios e transformações que a sociedade brasileira passou nos últimos anos. A sua modernização continuada pelo meio técnico-científico-informacional (Milton Santos) e pelos vetores culturais e financeiros da Globalização, instauram novas complexidades à sua apreensão pela intelectualidade brasileira. A sua fabulação continua, entretanto, informada pela densidade de sua ocupação material, o que traz outros contornos às ideias com as quais sua imagem é construída.

 

 

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