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GOT, Revista de Geografia e Ordenamento do Território

versão On-line ISSN 2182-1267

GOT  no.6 Porto dez. 2014

https://doi.org/10.17127/got/2014.6.003 

EDITORIAL

 

Desenvolvimento urbano e centralidade metropolitana: Londres hoje, segundo Peter Hall

 

 

Valença, Márcio1

1Departamento de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte; marciovalenca10@gmail.com 

 

 

Escrever este texto não foi uma decisão fácil. Escrevi mas não sei bem como me sinto e também não sei se o texto traduz a fala cheia de detalhes perspicazes do grande mestre da geografia urbana, Sir, Professor Peter Hall. Este é apenas um relato de uma conversa um tanto que informal, de pouco mais de uma hora. Poucas semanas antes de seu falecimento, tive a boa sorte de, com ele, ter esta conversa, gravada, uma espécie de entrevista. Queria ouvi-lo acerca de várias questões, com as quais tenho me debruçado, que dizem respeito ao desenvolvimento recente das grandes cidades. Nosso encontro aconteceu na hora do almoço, na segunda-feira, dia 16 de junho de 2014, em um dos cafés da University College London (UCL). Estando no Centro de Londres, e sendo esta cidade também central no contexto do desenvolvimento contemporâneo, foi inevitável que fosse ela o mote da conversa. Não vou reproduzir a entrevista na forma de uma transcrição literal da voz do entrevistado. Ele, sempre atencioso e cortês, havia me pedido para não utilizar aquele material bruto, que colhi, sem que ele, primeiro, o revisasse. Por total negligência minha, não encaminhei o material para ele em tempo ainda de receber comentários adicionais e sua aprovação. Assim, o relato que inicio agora refere-se apenas ao material de interesse mais geral, como compreendido, interpretado, reordenado e editado por mim.

A entrevista se deu em torno de dois grandes temas – o papel das políticas sociais, em particular a de habitação, no contexto do neoliberalismo, e o papel do urbanismo na espetacularização e desenvolvimento das cidades contemporâneas –, que derivaram em vários outros temas correlatos, ao longo da conversa. Parece-me, no entanto, que o tema mais central e transversal a todos os outros tratados é o da importância da terra e do mercado imobiliário para o desenvolvimento urbano contemporâneo. Há uma crise, sem precedentes, no sistema de provisão habitacional na Grã-Bretanha. Esta crise afeta mais intensamente a área de Londres e o Sudeste da ilha, estranhamente as regiões mais ricas, onde se concentram os investimentos mais produtivos e a infraestrutura do país. Onde há atividade econômica e emprego, não há disponibilidade de moradias acessíveis. Hall explica que as questões relativas ao acesso à terra não são muito bem claras na Grã-Bretanha. Nem sempre se sabe ao certo quem é o proprietário da terra e o que se deseja fazer com esta. Nem sempre o que se pode fazer com ela está claro na legislação urbanística. Não é raro que empreendedores imobiliários prefiram deixar a terra vazia, por pura especulação ou para pressionar os governos para aprovação de seus projetos, do que realizar algum investimento produtivo. Os representantes da indústria negam que mantenham “bancos” de terras à espera de valorização. Não é o que transparece da realidade concreta, mas, em grande medida, tais práticas parecem ser consequência da forma de operação do próprio “mercado”.

Hall cita como exemplo o caso de Ebbsfleet International Station, localizada na pequena cidade de Dartford, no condado de Kent, a apenas 17 minutos do Centro de Londres, por trem. Há 20 anos atrás, quando o Eurostar (que liga Londres a Paris e Bruxelas) foi inaugurado, havia planos para que o trem fizesse uma parada no local, o que só veio a acontecer em 2007 (alegadamente, por problemas técnicos). Dada a proximidade a Londres e sendo tal parada estratégica, foi planejada a construção de uma “cidade jardim” e de um complexo de escritórios. A ideia era a de que para lá fossem destinados os backoffices, ou seja, aqueles espaços de trabalho para serviços de apoio ou funções de rotina das e para as empresas, que, para baratear custos com aluguéis e outros, poderiam ficar fora das áreas mais centrais de Londres. São empresas ou seus escritórios que complementam (e não competem) com as de Londres. O empreendimento nunca foi realizado e lá permanece uma enorme gleba à espera de investimento. A empresa proprietária nega que não tenha dado início ao projeto por especulação e argumenta que tem como característica realizar os seus empreendimentos em apenas quatro anos, do início, com o planejamento e compra do terreno, ao fim, com a entrega e venda final (“in and out in four years”). Muitos podem ter sido os motivos para que este e os demais empreendimentos planejados para o local não tivessem sido iniciados, como o atraso da inauguração da estação do Eurostar. Mas é certo que os empreendedores colocaram muita pressão no governo, argumentando que os montantes necessários para instalação de infraestruturas era expressivo e só compensaria se, e quando, os preços dos terrenos subissem. Hall também explica que os backoffices parecem ter perdido alguma importância na era das comunicações eletrônicas. E muitos, com a internet, ao invés de buscar novas localizações mais próximas da capital, foram se situar em cidades do entorno, como Reading e Milton Keynes, onde também há boa infraestrutura viária e de transportes. Com o passar do tempo, outra explicação plausível é que os vultosos investimentos subsidiados realizados em Stratford por ocasião das Olimpíadas de 2012 tornaram aquele destino mais atrativo do que Dartford. A Olympic Village, agora denominada East Village, é um enorme empreendimento residencial de alto padrão. Muitas grandes empresas, como a Transport for London, se transferiram para as proximidades. As pessoas preferem se localizar em Stratford, que é mais perto ainda do Centro de Londres e mais bem servida de transporte público (underground, Docklands Light Train - DLT, ônibus, overground).

Um outro exemplo que é também agravante dos problemas por que passa a capital no que diz respeito à oferta de moradia adequada e acessível é a produção de empreendimentos icônicos. Hall diz não compreender bem o processo, mas tal oferta está relacionada à natureza do mercado imobiliário em algumas áreas da capital. Fala-se muito – na academia e na mídia – que este mercado serve a investidores estrangeiros (talvez árabes e chineses), que deixam os imóveis fechados, sem utilização. Ele questiona, porém, o quanto isso pode ser verdadeiro. Acha haver um exagero. Quantos imóveis são de fato vendidos para investidores estrangeiros (alguns, supostamente, com maletas cheias de dinheiro sujo)? Este mercado de edifícios icônicos, sempre com design de arquitetos do starsystem, é dominado por edifícios comerciais, corporativos e públicos, além dos residenciais. E, em muitos projetos, os edifícios nem sempre são fáceis de alugar, ou porque são muito caros, ou porque não são bons lugares para se viver, ou por terem problemas estruturais graves. É valorizada mais a aparência desses edifícios do que a sua função. Assim, o The Shard, mais alto edifício da Europa, que fica no lado sul do Tâmisa, permanece em muito desocupado, e também, “dizem”, no caríssimo hotel que ocupa vários de seus andares, pode-se ver o quarto abaixo devido à sua forma piramidal. O Walkie-Talkie, outro edifício icônico, na City, também teve problemas estruturais, com sua fachada de vidro refletindo o sol sobre a rua e outras fachadas, elevando em demasiado a temperatura das superfícies. Acha ele que, talvez, os “estúpidos” devam ser nós mesmos. Os empreendedores imobiliários são mais “sabidos” e pode ser que obtenham mais riquezas mantendo os edifícios parcialmente vazios, uma prática que não é de hoje. Lembra, para exemplificar, o caso do Centre Point, construído em meados da década de 1960, na interseção da Oxford Street e Tottenham Court Road, na época o edifício mais alto da cidade, e que permaneceu parcialmente vazio por anos. No entanto, o proprietário pôde obter empréstimos vultosos junto aos bancos e entidades financeiras, tendo o edifício como garantia. A lógica que rege os negócios imobiliários nem sempre é a mesma que rege outras atividades econômicas ou o interesse público em geral.

Mas isto não quer dizer que estas diferentes lógicas, em disputa, não impactem no desenvolvimento urbano. Muitas decisões empresariais, em muito, consideram o estado do mercado imobiliário na escolha de sua localização. Assim, Hall explica que, muito estranhamente, as economias de aglomeração do tipo face a face são mais importantes hoje, na era da informática, dando origem a uma distribuição nada aleatória de clusters nos centros, ao redor dos centros e no entorno das grandes cidades, como Londres, Nova Iorque, Los Angeles, São Francisco e Hong Kong. Isto é muito evidente, digamos, nas 20 principais cidades do mundo. No entanto, o face a face é mais importante hoje para as atividades de nível superior do que para as atividades de nível inferior. (Um aspecto curioso da cultura dos executivos em Londres, por exemplo, é o prolongado horário de almoço nos pubs e restaurantes da cidade.) Assim, nas áreas mais centrais, a oferta não atendida de empregos de um certo tipo convive com o desemprego de muitos. Os clusters, em formação e uma vez formados, fazem aumentar o custo da terra e dos imóveis. Sobem os aluguéis. A cidade, aqui no sentido dos poderes públicos por ela responsáveis, tem de se adaptar e responder a todo este movimento, em muito o produto de decisões das próprias empresas, acompanhando a dinâmica do mercado. Hall apresenta alguns exemplos em Londres. Um dos casos interessantes é o da City, o burgo financeiro. Em meados da década de 1980, com o big bang, ou a desregulação financeira, muitas empresas (como as de Hedge Funds) se mudaram para burgos vizinhos no chamado West End, área predominantemente de entretenimento e residencial. Eram pequenas empresas e assim necessitavam de edifícios menores. Outras empresas também saíram da City para outras localizações, como as Docklands. A fuga das empresas desta área tradicional de negócios da cidade deveu-se aos altos custos dos aluguéis, que subiram com a demanda das novas empresas internacionais que passaram o operar na City após a desregulação financeira. Até então, sendo a área mais antiga da cidade, a City era avessa à verticalização e modernização de seu tecido urbano tradicional. Nos últimos 30 anos, a liberalização urbanística permitida pela “Corporation” alterou sobremaneira o burgo. [Segundo informação de Peter Rees, que foi o Chefe de Planejamento da City, nos últimos 30 anos, e é hoje Professor na UCL, a área de negócios da City mais do que duplicou, com a demolição e construção de mais e maiores edifícios.]

Uma ampla área que o setor imobiliário chama de Midtown, que se estende de King’s Cross, engloba o West End, até o South Bank, tem também sofrido grandes modificações em sua dinâmica econômica e imobiliária. A BBC de Londres, por exemplo, construiu novas instalações em White City, a oeste, levando todas as suas operações de rádio e TV para lá. Porém, teve de manter algumas atividades – como a transmissão dos noticiários – em sua tradicional localização no West End porque políticos, executivos e outros potenciais entrevistados passaram a se recusar, mesmo com transporte da BBC, a se deslocar para o novo complexo. O deslocamento, considerando o trânsito da capital e a maior distância, resultaria em muita perda de tempo. Também, para a BBC, não seria interessante realizar entrevistas por telefone: nas palavras de um conhecido entrevistador, é necessário olhar nos olhos dos políticos para saber se estão mentindo. Com isso, a BBC manteve as atividades de transmissão dos noticiários em sua antiga sede no Centro (West End), que sofreu uma ampla reforma e ampliação. Em outro cluster, nas proximidades de Old Street – vizinha à City, entre King’s Cross e Stratford –, há muitos pequenos negócios de serviços. De lá, estende-se a área do setor de TMT (technology, media and telecommunications), que também inclui algumas grandes empresas, como a Google, que está construindo nova sede em King’s Cross, e a própria BBC, com sua sede ampliada do West End, entre outras.

Londres, destaca Hall, como algumas outras capitais europeias, tem uma peculiaridade. É o que ele chama de “complete capital”, ou seja, uma capital nacional que concentra o mundo dos negócios, o da política, o da mídia e o do entretenimento. Londres, desta forma, concentraria – como no sistema americano, por exemplo –, as funções de Nova Iorque (serviços financeiros e legais), Washington (governo) e Los Angeles (mídia). Para que todas essas funções possam ser realizadas num mesmo espaço urbano, é necessário o desenvolvimento de uma infraestrutura adequada e serviços avançados (cabos de fibra ótica, transporte público e de cargas sofisticado, formando hubs rápidos, estruturas de entretenimento, educação e saúde, espaços públicos de qualidade, além dos serviços e infraestruturas básicas).

O mosaico urbano de Londres [e seus clusters especializados que, muitas vezes, se sobrepõem espacialmente e, até mesmo, na divisão dos espaços dos edifícios] assim se desenvolve de acordo com as funções complexas da cidade como centro do poder político e dos negócios. A capital tem de ser constantemente adaptada, considerando, inclusive, a internacionalização de sua economia e o papel do Estado britânico no mundo. Hall fornece uma visão gráfica – feita de próprio punho, no meu caderno de notas de pesquisa (ver figura 1) – quanto à dinâmica dos clusters em Londres. Diz não haver uma explicação fácil para a sua formação, mas argumenta que há, hoje, no Centro e em seu entorno imediato, o que no passado chamava-se CBD (ou central business district), só que hoje este está espacialmente mais disperso. Para o planejamento da cidade, foi estabelecido um novo termo: CAZ (ou central activity zone), definido por vários espaços, integrados por sistema rápido de transportes (hubs), chamados de áreas de oportunidade (OAS, ou opportunity areas). Ele cita algumas dessas áreas (em sentido anti-horário): Paddington, White City, West End (WE), Battersea, Nine Elms, South Bank (SB), Canary Wharf, Stratford e, fechando o círculo, King’s Cross. Essas áreas têm sido muito bem sucedidas na atração de negócios. Por exemplo, a nova embaixada dos EUA, já em construção, é localizada em Nine Elms, a BBC já concluiu seu novo complexo em White City e o Imperial College (University of London) está construindo um novo campus (Imperial West) em White City. O CAZ não define uma forma de desenvolvimento urbano contínuo, mas uma série de desenvolvimentos específicos que, juntos, formam um mosaico.

 

 

Mas não é só isso. Na figura 2, Hall representa o desenvolvimento de algumas OAS, no entorno da área central de Londres (ou da CAZ), o que ele chama de outer areas. Há várias destas OAS externas, mas cita os casos de Harrow (noroeste), Ealing Broadway (oeste) e Croydon (sul) para explicar uma mudança paradigmática, tanto em relação ao que acontece na CAZ, como em relação às características que estas localidades (as OAS externas) tinham em décadas passadas. Antes, esses espaços eram dominados por outras atividades, como os backoffices (Croydon) e os pequenos serviços e comércio (Ealing Broadway). Estas localizações formam grandes hubs de transporte público e, mais recentemente, devido inclusive à sua relativa proximidade ao Centro da cidade, têm servido para localização de novos empreendimentos residenciais.

 

 

Para finalizar, Hall também explica a dinâmica urbana na Grã-Bretanha. Londres, sua região metropolitana e o Sudeste da Inglaterra contêm um-terço da população e dos empregos da Grã-Bretanha. No entanto, gera muito mais do que isso em termos de Produto Interno Bruto porque a economia nessas regiões é muito mais produtiva do que aquela do resto do Reino Unido. Há uma enorme concentração de renda em favor de Londres e de seu entorno. Boa parte da economia está conectada num corredor central de, no máximo, 350 km, de sul a norte. E é preciso considerar que, com o Eurostar, Londres está a 2 horas de distância de Paris e de Bruxelas. Toda esta concentração de renda, poder e infraestrutura coloca uma sombra sobre a competitividade das outras cidades britânicas. Os planos de conexão da rede rápida de trens com o norte do país falharam. O próprio Eurostar deveria ter uma conexão com Manchester, nunca executada. O investimento em educação universitária concentra-se nas principais universidades, no chamado triângulo dourado (golden triangle), formado por universidades de Londres, a Universidade de Cambridge e a Universidade de Oxford. As demais são relegadas ao segundo plano em termos de investimentos públicos. A discussão atual sobre o desenvolvimento das outras regiões do país tem de levar essa desigualdade de renda e investimentos públicos e privados em consideração, mas é também pertinente questionar quantas cidades de “segunda ordem”, como as denomina Hall, poderiam ser desenvolvidas num contexto de 60 milhões de habitantes. De qualquer forma, Hall enumera as poucas cidades que mais têm avançado nas últimas décadas: Manchester, é claro, mas também Leeds e Edimburgo (mais do que Glasgow). Liverpool e Sheffield tentam, mas têm dificuldades para acompanhar este cenário competitivo. Birmingham está muito próxima a Londres e se beneficia, de certa forma, dessa proximidade. Hall pensa que, para melhorar as chances de sucesso, algumas dessas cidades, como Liverpool, Manchester, Leeds e Sheffield, devem formar um cluster, desenvolvendo maior conectividade geográfica e política.

A entrevista com Peter Hall cobriu vários outros pontos que, entendo, não são de interesse geral, por isso não são relatados aqui. Tentei aqui recriar a análise que ele fez do desenvolvimento urbano recente de Londres, por servir de referência também para a análise de outras grandes cidades internacionais. Hall, como poucos outros, deixou um enorme legado intelectual, que deverá servir de referência para os estudiosos do urbano, em todo o mundo, por muitas décadas vindouras.

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