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Revista :Estúdio

versión impresa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.10 no.26 Lisboa jun. 2019

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Viagens como fonte de inspiração: o itinerário da artista Maria do Céu pelas imagens

Travel as a source of inspiration: the artistic itinerary through images

 

Thomaz Carvalho Lima*

*Brasil , artista visual.

AFILIAÇÃO: Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Instituto de Artes (IA), Laboratório de Gravura. Cidade Universitária Zeferino Vaz, Barão Geraldo, Campinas — SP, São Paulo; CEP: 13083-970, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O presente artigo tem como objetivo apresentar o trabalho da artista plástica Maria do Céu Diel, que traça sua trajetória buscando registros que evidenciam o processo de construção da memória. Nesse sentido, podemos perceber a força retórica de suas imagens que transitam em cada passo, dados em dois sentidos: interno e externo. Assim, transformando os caminhos em imagens que habitam o mundo real.

Palavras chave: imagem / trajetória / gravura / memória.

 

ABSTRACT:

This article aims to present the work of the visual artist Maria do Céu Diel, who outlined her trajectory searching for records that put in evidence the process of memory construction. In this sense, we can perceive the rhetorical force of her images that transit in each step of the journey in two directions: internally and externally. Thus, turning the paths into images that inhabit the real world.

Keywords: image / trajectory / engraving / memory construction.

 

Introdução

Minha gravura reside em toda parte. O caráter deambulatório do desenho nasce dos lugares que foram conhecidos durante tantas viagens.
Maria do Céu Diel (Diel, 2005)

O presente artigo tem como objetivo apresentar o trabalho da artista visual Maria do Céu Diel, que traça sua trajetória buscando o registro de imagens que evidenciam o processo de construção da memória. A artista e professora Maria do Céu se graduou em Educação Artística pela Universidade Estadual de Campinas, em 1989. Continuou seus estudos na mesma instituição, se formando como Mestre em Educação, em 1996, e Doutora em Educação, no ano 2000. Atualmente é professora aposentada do Departamento de Desenho da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Como artista plástica, é gravadora e colagista. Também já realizou inúmeras exposições coletivas e individuais no Brasil e no exterior, tendo obras em acervos privados e públicos. Para além, serão pontuadas a trajetória da artista plástica Maria do Céu, que conheço por meio da vivência e proximidade da mesma. Suas imagens são o ponto principal do desenvolvimento do texto e se relacionam com a escuta, que desvela o silêncio que se faz presente em nossa realidade. Maria do Céu o irrompe com turbilhões de pensamentos nos fazendo questionar como nos posicionamos por meio de imagens que nos envolve. Assim, refletir a produção de Maria do Céu é se colocar a disposição de suas obras, vibrando e dialogando com os caminhos e escolhas feitas no pensar as imagens, tanto no mundo das ideias como em sua concretude: o ato do fazer.

 

1. Trajetórias, Memória e Imagem

A epígrafe imagética demonstra na Figura 1 a recorrente imagem produzida por Maria do Céu onde exprime a ligação da terra com o céu buscando elementos que unifiquem os dois caminhos. Traços fortes em que as dimensões dos sulcos dão movimento à imagem, fazendo com que essa dialogue com a trajetória e seu elemento de construção da obra da artista.

 

 

Traços vigorosos e imagens que nos remetem ao fantástico estruturam o trabalho da artista. Na sua percepção de construção, relaciona-se ao que, através da memória e do olhar, inerente a sua trajetória pelo mundo, percebe e vivencia. Nesse sentido, partilha por meio das imagens a sua representação subjetiva do olhar sobre a realidade. Também oferece aos lugares que habita tanto a sua visão do real quanto sua visão constitutiva do mundo imaginário.

A gravura guiada por traços fortes insidiosos no metal dão a vitalidade que a produção do artista necessita para existir. Isto é, a obra de Maria do Céu se compõe por cada elemento de memória que se transfigura em traços, riscos, manchas que se avolumam nas lastras de metal, dando a estas um sentido único para construção da narrativa de sua obra. A imagem nascida da junção da ponta seca e da água forte no metal traduz imagens forjadas nas praças, avenidas, monumentos e caminhos que podem ou não ser transitados.

O olhar vigoroso diante do mundo, ora de cores, ora opacos, dão a dimensão desse diálogo de significados. A vontade expressa nas imagens é a fonte da força criativa da artista que, por meio dos desenhos e gravuras, constrói uma obra libertária, criando seu próprio enredo e os seus próprios caminhos. O olhar emblemático do mundo, onde cada imagem traz em si o seu significado e a noção de pertencimento a seu tempo e lugar, forja a busca dos significados e sentidos para a sua composição (Diel, 2012).

O lugar da disposição dos traços, linhas e sulcos, cria cada peça original, no sentido de que cada uma se reportará a um lugar específico do olhar e da memória. Cada imagem é única, de acordo com a sua história e o espaço ocupado na memória. Ao conhecermos o universo da criação da artista podemos perceber a força retórica em suas imagens, que transitam do real para imaginário em cada passo que dá em dois sentidos, o interno e o externo. Internamente busca em suas memórias as impressões que tira do mundo em suas caminhadas por trajetos reais. No imaginário transforma esses caminhos de imagens que povoam a realidade.

O professor Milton Almeida, orientador de Doutorado da professora Maria do Céu, escreveu sobre suas obras:

Sempre que caminho pelas gravuras de Maria do Céu, vejo-me emaranhado em páginas que nunca li, e que querem me conduzir de letra em letra, como numa calçada de lentrilhos. Tento me desvencilhar e percorro imagens que me vestem com véus estampados de traços — tinta de água fortes, pontas doce de aço de carinhos ácidos e violentos. (Almeida, 2005b)

Com essas palavras o professor Milton José de Almeida, descreve o trabalho da artista e reforça o caráter autoral de sua obra. Denota a sofisticação dos traços e a força que conduz a criação das obras de Diel, de forma poética. A imagem se transforma em uma obra que reforça a originalidade criativa do sentido de como é construída, além do envolvimento que sua obra produz em quem a admira. (Almeida, 2005b).

É importante ressaltar como a construção e elaboração das imagens passa pela organização de um referencial imagético, que age em quem o conhece e reconhece a força de sua proposição. A transformação sinuosa da imagem em uma linha poética de traços confere à artista a possibilidade de transformação inerente à arte. Assim, a produção da artista Maria do Céu Diel dialoga com os traços fortes do gravar e com a sutileza de imagens que vão se constituindo através das colagens. No fazer das obras, os pensamentos se confundem com a impressão do traço em linhas construídas com a consciência do corpo e da percepção de mundo que se pretende forjar.

Nessa intenção, o olhar do artista se guia na direção de seus próprios significados, por meio de elementos recorrentes que denotaram os símbolos e acepções. A apreensão subjetiva do olhar de um artista e a junção com os movimentos das mãos auxiliam na composição da trajetória da imagem e de quais elementos são recorrentes em cada composição. Portanto, em seu trajeto de criação, Diel consegue exteriorizar em imagens as suas percepções e convicções sobre a realidade, dando um tom de poesia ao que rascunha e desenha, demonstrando uma obra em construção baseada em seu caminhar como artista, em sua experiência sensorial e nos recortes de travessia que são externados na elaboração de sua obra.

Segundo Maria do Céu Diel, "entre a gravura e a imagem — o cemitério, a baia, portos, um vulcão, cidade ou a ponte — estará o lugar improvável, do corpo, do inscrito do artista vagando entre um lugar e outro." (Diel, 2005). Se deslocando por tais lugares, como na Figura 2, a artista imprime em suas imagens o caráter de trajetória, em que a cada passo e olhar são constituídas novas experiências. Assim, novas imagens que são povoadas por impressões, habitam o inconsciente do artista e se exprimem por meio de traços que sulcam o metal dando a este o temperamento da perenidade que uma obra de arte possibilita ao olhar.

 

 

A viagem e os trajetos como mitos de origem no trabalho de Diel nos convidam a percorrer sua obra. É possível notar a percepção da artista em suas trajetórias e viagens, podendo ser físicas e imaginárias, e tais elementos se unem dando sentido e significado a sua busca na construção de imagens que dialoguem com seus sentimentos acerca do mundo. Em suas composições, transforma traços, linhas e sulcos em poesia visual, que nos leva a possibilidade de imaginação que o percurso individual, pela arte, nos oferta.

Sua caminhada pela arquitetura das cidades antigas e contemporâneas, onde transita por ruas, praças, monumentos, vielas e espaços imaginários, como na Figura 3, faz com que compreenda em cada traço o significado de suas experiências naquela atmosfera, mesmo estando próxima ou longeva. Em suas viagens, procura captar aquilo que torna cada lugar único e quais são as acepções de seus símbolos e imagens. Os emblemas guiam o pensamento em reflexões. O entendimento de cada imagem vai conduzindo o pensar, forjando seus próprios emblemas, que serão perenizadas, no sentido em que habitarão o mundo real e a memória de quem viu e observou suas obras (Diel, 2014). De forma especial, Diel traduz cidades universais em que forja a estrutura da narrativa, dos lugares pelos quais transita. Com traços no metal, transforma em imagens através da expressão do olhar a apresentação de seu universo.Em sua trajetória como artista, ela se propõe ao desafio do pensar a imagem. Nesse sentido, entende que a reflexão sobre a imagem se apropria de sentidos e significados, podendo, assim, transcender em suas construções, além de perceber o que cada traço traduz da formação e produção da artista. Como Diel fala recorrentemente, a memória do corpo é um duplo caminho percorrido pelos olhos. Desta forma, a imagem e a memória se fundem em elementos de construção da obra e da narrativa, elaborada entre a palavra impressa e a imagem.

 

 

A junção entre imagem e a memória, como visto na Figura 4, retrata um caminho percorrido, onde a continuidade mostra a ligação do chão, a realidade com o céu que prenuncia uma tempestade ou uma possibilidade de intervenção no caminho. Com essa imagem Maria do Céu apresenta sua obra, em que articula as imagens percebidas com os traços que constrói por meio de seu referencial. O caminhar da artista é povoado por sua experiência, que é mediada pelo olhar. A obra de Maria do Céu vai assim se constituindo, como um enredo em que é discutido o mundo através do olhar e suas manifestações. Seu fazer artístico retrata a busca pela representação da imagem com os sentidos subjetivos e objetivos construídos por sua autora.

 

 

As imagens produzidas através da memória se estabelecem em máquinas de pensar que dão ao trabalho de Diel a força necessária à sua obra. Assim, seus trabalhos forjam o traço do pensamento original da artista, em que procura refletir sobre uma sociedade em movimento onde passado e presente dialogam entre si. Além disso, constrói o presente e o futuro por meio da experiência dos artistas que a precederam. As imagens se colocam como textos que narram o pensar através delas fazendo cada traçado com um significado dentro da obra. Quando descreve sua produção, Diel diz que reservou, para alguns de seus desenhos — os mais persistentes — o destino de serem gravura em metal, pois assim podem reverberar como imagens nas tipografias e terem as cores passadiças dos olhares. Com essa definição, a artista descreve a potência de seu trabalho e técnicas que estejam articuladas, ora com a força do espaço, ora com a força do tempo e do pensar imagens. Todos esses elementos povoam sua produção, além de criar diálogos permanentes. Tais trocas ocorrem no tempo de outros artistas e em seu tempo, se colocando como artífice da imagem que se movimenta, podendo se instalar no tempo e espaço em que se forja sua trajetória artística.

 

Conclusão

O trabalho da Maria do Céu é, por si, uma narrativa de lugares e tempos. Nesse sentido, a imagem desvela sua força e constrói o enredo de um tempo, em que o pensar e o refletir são mediados. Esse intermédio ocorre pela percepção de um mundo composto pela força da palavra, da vivência, e principalmente das imagens como interlocutoras do pensamento, onde são forjadas de forma a perpetuar suas intenções em uma sociedade composta por dualidade entre, idéias e concretudes. Desta forma, a memória de uma sociedade se constrói por signos e símbolos que se forjam no cotidiano, elaborados, nesse sentido, pelas imagens criadas pela artista, buscando diálogos imagéticos para que suas imagens vibrem em uma mesma freqüência e se perpetuem pelos lugares onde estão sendo pensadas ou imaginadas.

Sua obra revela e desvela toda a experiência da artista e nos conduz a uma viagem por entre figuras, gravuras e desenhos. Assim, nos são revelados trajetos e caminhos que sinalizam a construção de um referencial imagético, o qual envolve o espectador como se fosse uma poesia de imagens em que a linguagem se fortalece pelo sentimento de existir em um mundo cheio de caminhos, atalhos e trajetórias. Desta forma, são nos ofertadas possibilidades de criar e recriar o mundo de acordo com seu olhar e percepção.

A obra da artista nos faz refletir sobre como podemos e devemos desafiar a memória na construção do presente e a intervenção no futuro com o legado do que se produz e pensa em uma época. Inserido nesse contexto, pode-se criar a condição de pensar a realidade, transformá-la em imagens e preservando o passado, para construir o presente e anunciar o futuro.

Para concluir, evoco Ticiano, que nos coloca a Alegoria da prudência como um sinalizador de que estamos sempre a meio caminho das construções cotidianas, representadas pelas ações da vida (Almeida, 2005a). Nesse sentido, o trabalho de Maria do Céu dialoga com o do renascentista, pois reflete sobre a formação do artista em sua caminhada diária na busca de sua identidade, como reflexo de sua vivência e do estar no mundo. A prudência nos ensina: a cada passo temos que nos revisitar e refletir sobre o que pensamos e o que queremos forjar como obra e vida, que se misturam e se manifestam de diferentes maneiras.

 

Referências

Almeida, Milton José de. (2005a) O Teatro da Memória de Giulio Camillo. Cotia, SP: Ateliê Editorial & UNICAMP.         [ Links ]

Almeida, Milton José de. (2005b) Gravuras.in Almeida, Milton José de; Diel, M.C. ; Mobilon, N. (orgs.) [Catálogo da Exposição] Gravuras I. Belo Horizonte.         [ Links ]

Diel, Maria do Céu (2005) Gravuras. In Almeida, Milton José de; Diel, M. C. ; Mobilon, N. (Org.). Gravuras II. [Catálogo da Exposição] Belo Horizonte.         [ Links ]

Diel, Maria do Céu (2012) "Escrever pelas imagens." In Utsch, A; Almeida, A. R.; Lacerda, A. D.; Seo, M. N.;Diel, M. C. ; Queiroz, M.; Miguel, S. (Org.) Linha: escritos sobre a imagem. v. 1. Ed. Campinas: Império do Livro,         [ Links ]

Diel, Maria do Céu (2014) "Influência sem agústia." In Bicalho, A.; Utsch, A.; Mibielli, B.; Santiago, L. F.; Diel, M. C.; Sousa, J. F. (Org.) Linha: Escritos sobre a Imagem II. Campinas: Império do Livro.         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido a 03 de janeiro de 2019 e aprovado a 21 janeiro de 2019

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: 228313@unicamp.br (Thomaz Carvalho Lima)

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