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Revista :Estúdio

versión impresa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.10 no.26 Lisboa jun. 2019

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

As tessituras de Sônia Gomes e as repercussões de memórias em nós

The weaves of Sônia Gomes and the repercussions of memories in us

 

Cláudia Mariza Mattos Brandão*

*Brasil, artista visual.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal de Pelotas, Centro de Artes, Curso de Artes Visuais — Licenciatura. R. Alberto Rosa, Nº 62, Bairro Porto 96010-770, Pelotas, RS, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O texto contextualiza e reflete sobre algumas produções da artista contemporânea Sônia Gomes (1948), natural de Minas Gerais (Brasil), visibilizando a espessura histórica que impregna os objetos, somando histórias a sua própria, e caracterizando a complexidade de um tecido social. Através de suas obras, ela provoca reflexões sobre as corporeidades humanas em seus processos cotidianos de construção e desconstrução, propondo novos ciclos vitais para os indivíduos e suas memórias, os objetos e sua transcendência.

Palavras chave: Sônia Gomes / artes visuais / memória.

 

ABSTRACT:

The text contextualizes and reflects about some productions of the contemporary artist Sônia Gomes(1948), from Minas Gerais (Brazil), making visible the historical thickness that impregnates objects, adding stories to their own, and characterizing the complexity of a social fabric. Through her works, she provokes reflections on human corporeities in their daily processes of construction and deconstruction, proposing new life cycles for individuals and their memories, objects and their transcendence.

Keywords: Sônia Gomes / visual arts / memory.

 

Introdução

É possível considerarmos que a experiência humana é algo processual, que se dá no desenrolar do tempo e preenche a vida de sentido e significado. E isso pode ter um caráter prático, com uma finalidade em si mesma; teórico, referida num interesse cognitivo; ou aquela que envolve uma implicação individual, pessoal. Nesse sentido, considero que a experiência estética define-se através dos modos de encontros humanos com o mundo, natural, dos fenômenos, ou o dos objetos criados, suscitando diferentes emoções, mobilizando o corpo como um todo, e provocando um conhecimento diferenciado, que envolve razão e sensibilidade. A experiência estética faz referência ao que nós, humanos, sentimos diante de uma obra de arte, cuja interpretação surge da interpelação de formas criativas acionando a nossa atenção, e provocando uma abertura mental, empática, para a contemplação desinteressada e o gozo estético (Chauí, 2011).

E é no contexto de experiências estéticas e suas afecções que trago esta breve análise de algumas obras da artista brasileira Sônia Gomes (Caetanópolis, Minas Gerais, 1948). A artista é formada em Direito, professora e artista plástica, criadora de objetos, esculturas e instalações, estruturados com tecidos, moldados por nós, tramas e costuras, agregados à sua própria história e à teia social brasileira.

O texto contextualiza e reflete sobre algumas produções da artista, as obras Memória (2004) e Maria do Anjos (2017-2018), dando visibilidade a questões caras a Walter Benjamin, assim como memória e narrativa; e às ideias de Zygmunt Bauman acerca da sociedade de consumo e o descarte de objetos. Mais que tudo, a intenção é inter-relacionar Arte e Vida, Arte e Sociedade, refletindo acerca da potência reflexiva provocada por objetos que nos tiram do campo da passividade e reatividade e nos colocam no da ação e da atividade, configurando arecepção da obra como uma experiência estética

 

1. No tempo da memória e da criação artística

Benjamin (1994) compara o tempo aos movimentos das ondas no mar: elas avançam para o futuro, recuam ao passado, e retornam à linha da margem, o presente, argumentando que nesse vai-e-vem do tempo, as memórias são revisitadas e atualizadas permanentemente, nos colocando no foco da história e de seus compassos e descompassos. E a elaboração manual dessa cadência a qual o autor se refere, ganha visibilidade na união de diferentes tecidos retorcidos, amarrados e costurados que dão sustentação aos objetos criados por Sônia Gomes.

As roupas velhas reutilizadas pela artista na elaboração da obra Memória (2004) (Figura 1) evocam a ausência dos corpos que um dia lhes deram formas, acionando a memória e acenando para a passagem do tempo. Em Memória vemos tecidos rearranjados quase que formando um estandarte, assim como simbolizações culturais alegóricas Às vidas que outrora preeencheram as roupas transfiguradas em obra de arte.

 

 

Entendo, assim como López Quintás (1992), que os modos de nomear o real e a nós mesmos estão condicionados aos modos de percepção de cada um. E isso faz com que percebamos a existência de campos de intercâmbio entre as pessoas, constituídos por estímulos e respostas oriundos da captação das diferentes e complexas realidades. Identifico em Memória a ação criadora dando "vida" a esses campos que fundam a vida cultural. Observar a materialidade alegórica e pensar no invisível que ainda a habita faz com que a nossa memória seja acionada, estimulada pelas cores e formas. Assim, somos lançados ao espaço do jogo da experiência estética, estabelecido através da capacidade que temos de distanciamento perspectivo em relação ao meio.

As obras da artista evocam uma gama ampla de referências, desde a sua própria história e cultura regional, assim como questões mais profundas referenciadas na própria existência humana. Com suas abstrações, muitas vezes figuradas pelo olhar, podemos também identificar Sônia Gomes posicionada tal e qual uma narradora. Ou seja, alguém que narra "desde dentro", implicada com seus objetos e afetos, reescrevendo estéticamente o estranhamente familiar que nela provoca choques perceptivos, e que "ecoam" até nós, espectadores:

A reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração. (…) Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ele tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si. Uma se articula na outra, como demonstraram todos os outros narradores, principalmente os orientais. Em cada um deles vive uma Scherazade, que imagina uma nova história em cada passagem da história que está contando (Benjamin, 1994:211).

Temos, portanto, uma tecelã / narradora cujos fios/obras nos colocam num emaranhado de texturas e cores que moldam as memórias afetivas da artista apelando para o imaginário social que a impregna. E isso está diretamente relacionado a uma infância solitária e carente de afeto, ao meio industrial das tecelagens e suas sobras, e às suas origens africanas. Desde pequena gostava de brincar com os restos de tecidos, e assim foi se ensaiando a dar nova vida às emoçõ

Segue-se então que outro atributo do "objeto de consumo" deve ser uma cláusula em seu registro de nascimento — "destino final: lata do lixo" — escrita em letras menores, mas numa grafia certamente legível. O lixo é o produto final de toda ação de consumo. A percepção da ordem das coisas na atual sociedade de consumo é diametralmente oposta à que era característica da agora já ultrapassada sociedade de produtores (Bauman, 2007:117).

Sônia, oriunda de uma região têxtil de Minas Gerais, busca exatamente o caminho inverso da sociedade de consumo problematizada por Bauman, e o que para muitos é "lixo", assim como velhas roupas e restos de uma atividade fabril, são ressignificados em objetos lúdicos. Mas também não podemos esquecer que no nosso Brasil, o "lixo" também é o destino de muitas vidas e histórias, principalmente, de pessoas negras. Como uma mulher negra, a sua produção também se manifesta como uma estética da sua própria existência social, e de alguém que sempre quis viver e sobreviver do seu trabalho artesanal: "Por que eu acho que o trabalho tem que ser a sua vida. Trabalhar com o que a gente acredita, o que a gente gosta de fazer. Tem que ser verdadeiro (…) Eu sempre gostei da estética africana e está no meu sangue também", como declara em vídeo gravado no atelier da artista, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JoHMrbEWnZ4

Durante a 11ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul, realizada em Porto Alegre (RS, Brasil), entre abril e junho de 2018, Sônia apresentou a instalação "Maria dos Anjos" (2017-2018) (Figura 2). A obra foi elaborada tendo como base um vestido de noiva doado à artista, que foi içado por rondanas, ocupando uma das salas do Memorial do Rio Grande do Sul (Pinto, 2017). Sobre as doações de materiais, no vídeo anteriormente citado a artista declara: "Acho que as pessoas começaram a mandar isso para mim, porque sabiam que eu daria um ressignificado maior para aquilo que elas não tinham coragem de colocar no lixo". Isso, pois das tramas intuitivas emergem memórias biográficas pessoais que assumem um caráter coletivo, estético e orgânico, como materialidade ressignificada através das experimentações com aquilo que repousava esquecido no fundo de alguma gaveta.

 

 

 

Conclusão

A obra da artista contemporânea brasileira Sônia Gomes alcançou destaque no panorama nacional e internacional, não pela nobreza de seus materiais, mas pelas formas lúdias e coloridas, e a profundidade das reflexões que provoca nos espectadores. Dificilmente alguém passará ao largo de suas produções, pois as tramas de diferentes cores e textura, seus nós e amarrações, atraem o nosso olhar, e logo vamos identificando pequenos indícios das origens daqueles materiais. E isso nos conecta às nossas pequenas brasilidades e à complexidade do espaço social de um país com dimensões continentais, configurando narrativas sobre o tempo presente que emergem das inquietações de uma mulher, negra e brasileira, e todas as consequências de tal realidade. Trata-se de uma narradora estranhada e entranhada, cujos procedimentos artísticos e fazeres técnicos, costuras, nós e amarrações, tanto nos remetem a práticas religiosas africanas, como o Candomblé, assim como à tradição mineira dos bordados, ou à religiosidade dos trajes comuns nas comemorações dos dias de santos da religião católica, marca da cultura regional da região mineira brasileira, conectando arte, sociedade e vida pessoal.

Como busquei demonstrar neste pequeno texto, a artista não se conforma em repetir o passado através de ideias recicladas, ela recicla materiais e com isso desafia ao mesmo tempo o passado e o presente, nos convidando a participar de uma experiência estética ímpar. Sonia visibiliza a espessura histórica dos objetos, somando histórias a sua própria: uma criança órfã que foi criada pela família do pai, branco. E assim, costurando com afeto suas afecções, ela vai elaborando e caracterizando a complexidade de um tecido social, instigando reflexões sobre as corporeidades humanas em seus infindáveis processos de construção e desconstrução, e propondo novos ciclos vitais para os indivíduos e suas memórias, para os objetos e sua transcendência.

 

Referências

Bauman, Zigmunt (2007) Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. ISBN: 978-85-7110-969-8        [ Links ]

Benjamin, Walter (1994) Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras escolhidas; v.1). 7ª ed. São Paulo: Brasiliense. ISBN: 978-85-11-15628-7        [ Links ]

Chauí, Marilena (2011) Desejo, Paixão e Ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras. ISBN: 978-85-3591-830-4        [ Links ]

López Quintás, Alfonso (1992). Estética. Petrópolis, RJ: Vozes. ISBN: 978-84-3213-212-4        [ Links ]

Pinto, Ana Estela de Sousa. (2017) A artista é mulher e negra, mas arte é arte. Folha Ilustrada. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/12/1944244-a-artista-e-mulher-e-negra-mas-arte-e-arte-diz-sonia-gomes.shtml        [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido a 03 de janeiro de 2019 e aprovado a 21 janeiro de 2019

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: attos@vetorial.net (Cláudia Brandão)

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