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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.10 no.26 Lisboa jun. 2019

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

O Presente Invisível: dimensão sensorial na instalação "Your blind passenger", de Olafur Eliasson

The Invisible Present: sensorial dimension at the art installation "Your blind passenger", from Olafur Eliasson

 

Rodolfo Nuno Anes Silveira*

*Portugal, sound Design, cinematografia, artes media e estudante de doutoramento.

AFILIAÇÃO: Universidade de Televisão e Cinema de Munique, Departamento de cinematografia (Hochschule für Fernsehen und Film — HFF); Universidade da Beira Interior (UBI); Faculdade de Artes e Letras; Departamento de Comunicação e Artes. R. Marquês de Ávila e Bolama, 6201-001 Covilhã, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Partindo da análise da obra "Your blind passenger" de Olafur Eliasson, este artigo propõe-se discutir a pertinência do espaço transitório sensorial e sinestésico em instalações artísticas imersivas. De modo especulativo consideram-se os processos de apreensão e transferência da realidade objetiva e subjetiva por meio da experiência sinestésica, da observação corporal, da incorporação de memória e da imaginação.

Palavras chave: Instalação Artística / Visível-Invisível / Experiência / Sinestesia / Imaginação,

 

ABSTRACT:

Based on the analysis of "Your blind passenger" from Olafur Eliasson, this paper proposes to discuss the pertinence of the transitory space sensorial and synesthetic in immersive art installation. Through a speculative way will be consider the processes of apprehension and transference of the objective and subjective reality through the synesthetic experience, the corporal observation, memory embodiment and the imagination.

Keywords: Installation Art / Visible-Invisible / Experience / Synesthesia / Imagination.

 

Porquê "Your blind passenger" de Olafur Eliasson?

A percepção, o movimento, a experiência sinestésica, a incorporação de memória, a calibragem dos sentidos perfazem o hiato temporal que consideramos Presente. A imaterialidade de tais conceitos e processos transforma a realidade invisível e transporta a obra artística para um estatuto mais elevado que a própria composição do criador. De entre as inúmeras obras de Olafur Eliasson (Copenhaga, 1967), "Your blind passenger" destaca-se pela ousada opção subtractiva que passa por retirar (quase) todos os elementos de uma realidade possível, literalmente, uma realidade visível. Blind passager é uma expressão dinamarquesa para stowaway (um passageiro clandestino que viaja escondido sem pagar e sem ser detectado). Metáfora para a experiência neste trabalho: um passageiro perde-se e volta a encontrar-se a si mesmo (Eliasson 2018:45). A obra é, por isso, uma exploração da percepção humana que convida os participantes à descoberta interior da invisibilidade fenomenológica ao encontro do passageiro clandestino que inseparavelmente connosco viaja.

Olafur Eliasson é um dos mais conhecidos e influentes artistas contemporâneos do nosso tempo. Nas suas exposições combina luz, sombras, água, nevoeiro, movimento e cor para imitar e recriar as forças da natureza recorrendo geralmente à criação de ambientes participativos sendo exemplos disso os seguintes projectos: (1) "The Weather Project" (2003), construído na Tate Modern de Londres, uma alusão ao aquecimento global que consistia num sol gigante constituído por 200 lâmpadas dispostas em semi-círculo cuja luz refletida sobre vidros colocados no teto dissipava-se uma neblina feita de água e açúcar que preenchia todo o museu. Assim que os participantes se deparavam com o seu reflexo, interagiam com a imagem de si mesmos, percorriam o espaço envolvidos na neblina, sentavam-se a absorver o calor e deitados no chão construíam com os corpos pequenas formações quase coreográficas. De certo modo, reconheciam-se, interagiam e observavam todos os outros como uma grande composição global. Um efeito referido pelo autor na expressão Seeing yourself seeing (Ver-te a ti a ver); (2) "New York City waterfalls" (2008), onde Eliasson (alegadamente influenciado pelas paisagens da Islândia) exibe e explora o intervalo temporal de uma queda de água. Representa, por isso, o tempo com as quatro cataratas artificiais espalhadas pela cidade, oferecendo ao espectador a livre interpretação desse hiato temporal exortando a relação de interdependência entre o espaço envolvente (a cidade de Nova Yorque) e o tempo relativo percepcionado através da água que cai. Em suma: sugere uma reflexão sobre o tempo da "cidade que nunca dorme". Desta forma, Olafur Eliasson cria instalações artísticas que não só fazem com que os participantes se questionem acerca da consciência espacial, como apela ao seu auto-conhecimento fenomenológico. Estabelece uma especulação em torno do sublime, qual estado transitório, espécie de deslumbramento e surpresa.

Radica precisamente nesta especulação a opção pela análise da obra "Your blind passenger", dada a possibilidade de abordar o despertar de outros sentidos na ausência da visão.

 

1. De participante a observador de si mesmo

O modo especulativo (não empírico) deste artigo estabelece uma linha ténue na abordagem da taxonomia commumente empregada no que concerne às instalações artísticas este carácter imersivo. Assim, ao retirar parcialmente o sentido cognitivo da visão, a instalação artística sugere ao participante uma nova leitura da obra, capaz de concorrer para uma apreensão da realidade pela observação empírica de si mesmo através de todo o corpo (e do seu sistema nervoso). Registe-se que o acto participativo de visitantes (pre)dispõe um posicionamento exterior à experiência proposta, significa: tomar parte de algo (pre)viamente estabelecido interagindo de modo cooperativo. Exemplo disso é instalação artística "The Weather Project" (2003) acima referida.

Assim que os participantes interpretam a realidade — outrora objetiva — de uma forma subjetiva, pessoal e única, tornam-se em observadores de si mesmos e companheiros desse passageiro clandestino. Note-se que o acto observativo dos participantes evidencia a proposta subliminar do autor: se de imersão se trata, o estado observacional é mais do que uma interpretação objetiva da realidade externa instalativa. Mercê do seu carácter artificial, a obra artística sugere pontes de contacto de cariz abstrato com o intelecto, aduz uma interpretação subjectiva da realidade interna de um corpo consciente, uma observação literal dos reflexos somáticos, movimentos sinestésicos e memórias em que o portal cognitivo visão pouco influencia. Se, por um lado, o tempo necessário à conclusão de um (pre)destinado percurso exorta o desenvolvimento interior de reflexão, por outro lado alavanca a expectativa de ver, elevando a importância do encontro com o objeto artístico: experiência que ultrapassa, por isso, as intenções (pensamentos iniciais) ou significados basilares e conceptuais do criador.

Assim sendo, o papel do observador é tão (ou até mais) importante quanto o do artista no estado original: o observador interpreta, imagina, influência e reconstrói o seu espaço visual mediante a anterior experiência singular e colectiva feita pelas lentes da cultura social.

 

1.1 O dispositivo (tudo é artifício)

A instalação de Eliasson "Your blind passenger" (2010) inscreve-se num túnel de 3,3 metros de largura x 2,7 metros de altura x 96 metros de comprimento construído no ARKEN Museum of Morden Art, Ishøj na Dinamarca (Figura 1). Uma composição feita por: lâmpadas fluorescentes, lâmpadas de mono-frequência, ventiladores, madeira, aço, tecido e plástico.

 

 

Ao entrar no túnel o participante fica de imediato envolvido por fumo e parcialmente encandeado por uma luz brilhante. A visibilidade é reduzida a uma área de 1,5 metros e a noção do dispositivo (túnel) e dos próprios movimentos corporais esvai-se. Deste modo, o trabalho artístico coloca os participantes numa posição de dependência dos outros sentidos — como o tacto e a audição— mais do que o sentido da visão.

Experienciar "Your blind passenger" significa percorrer a totalidade da extensão (pré)definida por Eliasson. Ali, o autor obriga o participador (Oiticica) a uma dicotomia: ver a estrutura e a dimensão do túnel como objecto artístico (tipo vagão), posto num museu, é parte da experiência de construção do trabalho artístico; e, agora, dentro do túnel, não é possível ver, sentir ou participar de modo externo à obra. A sugestão éclara: utilizar outro tipo de ferramentas cognitivas para abordar o objeto artístico desta instalação. Óbvio: ter-se-á de participar de modo interno, através de todo o corpo, e não simplesmente através do portal sensorial e cognitivo da visão: os olhos (Figura 2). Não basta ver, é preciso sentir de modo extenso, estar: a observação cede lugar à inscrição.

 

 

Assim que o participante passa fisicamente a entrada e aceita as premissas pré-dispostas, uma outra dimensão de "Your blind passenger" acontece: o participante encontra-se consigo mesmo (passageiro clandestino de si próprio).

A sua interpretação do tempo e do espaço passa a ser percepcionada de modo interior e altamente subjectiva, transforma-se por isso no observador de si mesmo: o modo como adquire propriedade cognitiva da obra reflete-se no seu intelecto. A busca de significado advém da experiência anterior, induzida pelas influências culturais e imaginação singular que perfazem a esfera cognitiva onde se movimenta o sujeito, que se observa a si mesmo a observar os estímulos externos e os reflexos cognitivos internos da absorção da experiência. Estabelece assim um contrato de auto-conhecimento e de sincronização com o seu sistema nervoso somático. A participação activa nesta realidade fictícia desvenda certas premissas internas que permitem avaliar a realidade quotidiana que experiencia.

A inércia do fumo (flutuante) agita-se com o movimento dos corpos e dos "passageiros clandestinos" no vagão da imaginação. A consciência da insuficiência do sentido da visão coloca em alerta todos os outros sentidos. As várias secções iluminadas por diversas tonalidades, na seguinte ordem — luz ranca quente (de baixa frequência), ausência de luz (escuro), luz amarela (mono-frequência) e finalmente luz branca fria (de alta frequência) — certificam o progresso alcançado pelos "observadores". Registe-se que esta é uma marca muito forte de Eliasson: a tentativa de provocar movimento através da cor — procedimento análogo ao de outras instalações como, por exemplo (1) "Room of one Color" (1998), (2) "360 degrees Room for all Colors" (2002), (3) "Your body of work" (2011) e (4) "Your rainbow panorama" (2011). Nestas instalações o autor confere primazia ao participante para definir o andamento, a cadência, a performidade da experiência e incentiva a descoberta de algo invisível. Dentro do túnel, a audição é ativada de forma geo-posicional: sons de outros observadores suscitam avaliações referentes à posição no espaço (distância, características acústicas das secções, etc.), anunciam prognósticos das situações que se seguem e resguardam o observador de inesperadas surpresas, preparando-o com uma maior expectativa para as etapas seguintes. Ouvir sons de outros humanos pode até garantir segurança, caso se experiencie a instalação artística sozinho. A termoceção (a perceção de temperatura) transforma-se num sentido mais que informativo: passa a interpretar e a reconhecer significado (a pele também vê e olhos também sentem). Assim sendo, as secções de diferentes tonalidades no dispositivo desencadeiam informação sinestésica entre vários sentidos: a luz amarela, a sensação de quente; a luz branca fria de tom acinzentado, a sensação de frio; o escuro, a sensação de alerta. (Figura 3)

 

 

A contínua apreensão de realidade e a reorganização de tarefas sensoriais prepararam a principal secção do túnel: a ausência de luz. Eliasson, ao mesmo tempo que liberta o observador de hábitos comuns de avaliação da realidade questiona claramente a auto-suficiência da visão. Quando a visão não é o predominante portal sensorial de cognição o corpo funciona como medium. Porquê? — Porque o portal sensorial visão atua na periferia da intuição, certificando-a: a constrangida visão humana apenas disponibiliza fragmentos do ambiente envolvente, por isso o ambiente percebido e apreendido parcialmente e compilado pelo imaginário de um todo: "Um campo visual não é feito de visões locais. Mas o objeto visto é feito de fragmentos de matéria e os pontos do espaço são exteriores uns aos outros" (Merleau-Ponty 1999:25). O manancial quotidiano de informação visual enaltece o desconhecimento oculto desi, respondendo de forma trivial aos apelos mais íntimos do ser. É, por isso, aterrorizador para nós — seres visuais — a ausência de luz. No escuro, desconhece-se a realidade envolvente: a dimensão espaço altera-se consoante o medo. Resumindo: (i) as mãos servem instintivamente de radares na procura de obstáculos ou de proteção primordial da caixa craniana onde tudo se passa; (ii) os pés dando passos são cada vez mais medidos e (iii) o som da respiração fica cada vez mais presente. (Figura 4) É no reconhecimento da fragilidade do sentido visão — que surge a possibilidade de sincronização interior — que se aceita a reorganização sistémica de todos os outros sentidos. "Movimento, tato, visão aplicam-se, a partir de então, ao outro e a eles próprios, remontam à fonte e, no trabalho paciente e silencioso do desejo, começa o paradoxo da expressão" (Merleau-Ponty, 2003:140). Assim o observador é obrigado a criar um não-espaço que transitará (empiricamente) do interior do túnel para o seu próprio interior. Tal é justificado pela experiência mental e corporal que, na expressão de Eliasson, corresponde a "Um sentimento é relação entre o estado mental e fisico".

 

 

A especificidade do meio ambiente gera, pois, questões subjectivas centradas na produção e assimilação de conhecimento sobre o corpo do observador que clarificam a sua importância e interligação com a obra.

 

2. A simbiose entre dois mundos

É o lado invisível de "Your blind passenger" que fornece o efeito de catarse ao objeto artístico: a assinatura do pacto de confiança entre o corpo e o passageiro clandestino. A singularidade de cada observador opera no abismo desses dois mundos:

(i) O mundo que nos recebeu assim que chegamos e que ficará assim que partimos: um mundo exterior, cultural, circunstancial e evolutivo em que participamos e que continuará a existir sem nós mesmos; (ii) e um mundo íntimo onde prevalece a vida interior, a natureza da experiência, em suma, as qualidades de estar vivo: um mundo que só existe porque também existimos, um mundo que deixará de existir na ausência de vida interior e que sem ele deixaremos de compreender e experienciar o outro mundo exterior. Sendo assim, sublinhe-se, é na consciência deste mundo interior que assenta o conhecimento e avaliação do mundo exterior.

Segundo Eliasson "a ideia daquele que percepciona se transformar em produtor é aqui essencial: ele projeta os seus sentimentos naquilo que o rodeia — ele relaciona-os assim". Através da deambulação sistémica de corpos em movimentos e da atmosfera de fenómenos e de condições físicas envolventes, ambos (participante-corpo-passageiro) constituem o significado na tradução da experiência fenomenológica da apropriação da natureza, por sua vez recriada na busca da transformação causada no observador pela coisa observada.

Existem, então, duas vidas unidas a um corpo. Impulsionado por emoções, satisfaz desejos saciando os mais íntimos prazeres através de tarefas motoras: uma ferramenta de sobrevivência tanto mecânica como mental, um medium e uma ponte que liga ambas as extremidades dos dois mundos num «sensível em si», seja, a «carne» que absorve o mundo no invólucro frágil do sensível.

"É preciso que nos habituemos a pensar que todo o visível é moldado no sensível … todo o ser táctil está votado de alguma visibilidade…", (Merleau-Ponty 2003:131). A alusão ao conceito de «carne» é obvia, e vai muito além do dualismo: o corpo também vê. Entenda-se, é dentro do processo perceptivo adjacente aos fragmentos de visão que se inscreve a harmonia preestabelecida do mundo sensorial: "… toda a visão tem lugar em alguma parte do espaço táctil" (Merleau-Ponty 2003:131). A cognição sensorial, seja ela que ordem for, possibilita o deslizamento de pequenas incorporações de memórias tanto no corpo sensível, como no corpo senciente. Pois, "em vez de rivalizar com a espessura do mundo, a de meu corpo é, ao contrário, o único meio que possuo para chegar ao âmago das coisas, fazendo-me mundo e fazendo-as carne" (Merleau-Ponty 2003:132). Em suma: existe um idioma subjacente a todos os seres, uma comunicação onde opera o gesto, a «Palavra Universal» e base de toda a vida.

 

3. Entre a apropriação da natureza e a imaginação

Eliasson exorta, desta forma, a passagem entre mundos. Sugere possibilidades de interioridade aos seus passageiros-participantes (de um mesmo corpo) e fomenta a criação de panoramas inconscientes únicos. De tal modo que a resposta empática de cada observador pré-escreve os extremos da sua experiência: do trágico sofrimento à extrema alegria: a experiência é inconscientemente delineada pelos sentimentos gerados no corpo de quem observa sendo, por isso, ímpar, subjectiva e literalmente única. Note-se que também o "inconsciente é o elemento propulsor do movimento do pensamento e da acção" (Gil 2018:338). É a incessante procura de respostas e impulsos "carnais" que alavanca — o sistema muscular, o sistema nervoso somático, o sistema cognitivo — o movimento de corpos na busca de significado. Essa recompensa empática num espaço mental não obedece a regras nem a fronteiras. A dimensão do passageiro clandestino (a criação do objeto artístico singular) advém tanto dos (pre)dispostos desejos, medos, valores internos bem como das influentes ambições e perspectivas de alcance espiritual na "experiência interior" (Bataille). Na imaginação, o céu não é o limite. Pois: "O corpo tem ainda o poder de se imaginar em todas as escalas…" (Gil, 2018: 332).

Poder-se-ia até dizer, que a experiência imersiva cria, de um modo abstrato e numa breve alusão às neuro-ciências, objetos emocionantemente competentes. Diz António Damásio que tanto as percepções como os sentimentos estão ligados a objetos imediatos. Objetos estes que transportam uma série de sinais que transitam pelos mapas cerebrais e estão diretamente ligados aos sentimentos produzidos. Registe-se que a percepção, o processo de incorporação de memória e imaginação tem lugar dentro e não fora do corpo. Clarificando: embora a perceção e os sentimentos sejam processos mentais, ambos têm a sua origem em mundos diferentes (na respetiva ordem): exterior e interior:

Para além de estarem ligados num objecto imediato, o corpo, os sentimentos estão também ligados a um objecto emocionalmente competente que deu inicio à cadeia emoção — sentimento. De uma forma bem curiosa, o objecto emocionalmente competente é responsável pelo estabelecimento do objecto que está na origem imediata do sentimento. […] O panorama espetacular de um pôr-do-sol sobre o oceano é um objecto emocionalmente competente. Mas o estado do corpo que resulta do contemplar desse panorama é o objecto imediato que está na origem de sentimento, e é o objecto cuja percepção constitui a essência do sentimento (Damásio, 2003:110).

A viagem pendente entre esse dois mundos, a cadeia emoção-sentimento, a reflexão interna e a imaginação subscrevem as condições necessárias para o auto-conhecimento do que de mais natural existe em si. O pacto de confiança, antes assinado, revela o rosto escondido do incógnito passageiro e o mais íntimo de si manifesta a mais pura "aura" (Benjamin) por entre as brumas da exacerbada influência social. De dentro do corpo de observador renasce um novo olhar, uma nova avaliação de si e do mundo exterior em torno do sublime na Natureza. "A consciência de si — essa faculdade excelente do ser humano — passa pelo conhecimento do que sente e pensa o outro, expressão do desejo inesgotável do Homem pelo Homem" (Vincent, 2010:33).

 

4. O Presente Invisível

O que se diz "presente" enquadra-se no hiato temporal de nanossegundos que circunscrevem o impulso emitido e a resposta a esse impulso: seja ele luz, som, qualquer campo electromagnético ou químico que nos faça mover em relação a algo. Exemplificando: numa conversa telefónica com alguém de outro continente, embora se saiba que existe um pequeno atraso de milissegundos, o que definimos por "agora" inscreve-se no hiato temporal que se denomina "presente". É necessário referir que esta noção de "presente" está contida dentro do nosso planeta Terra e que fora dele a diferença de milissegundos se transformaria em anos-luz o que destronaria a nossa valiosa noção de "presente". Registe-se que: "A noção de "presente" diz respeito às coisas próximas, não às distantes" (Rovelli, 2018:47). É essa mesma proximidade (a composição de elos de forças geradas pelas pré-dispostas constelações de elementos) que cimenta a base do processo sinestésico: o reencontro das diferentes variantes do combinar portais sensoriais na reconstrução da realidade. Assim sendo, "o visível à nossa volta parece repousar em si mesmo" (Merleau-Ponty 2003:128). E é esse parecer, essa semelhança, essa interrogação que pavimenta o átrio da catedral do mais íntimo, num convite à transgressão do hábito onde habita a libertação da condição individual e à descoberta da natureza interior do corpo sensível / senciente.

O Presente Invisível "…deste mundo, aquele que o habita, o sustenta e torna visível, sua possibilidade interior e própria, o Ser desse ente" (Merleau-Ponty 2003:146) opera na constante evolução e aprendizagem cognitiva que se fundamenta na incapacidade de apreender fragmentos de realidade apenas com os olhos e que repousa na vocação inata do observador: na absorção de estímulos, na apropriação de natureza, no sentido e no auto-conhecimento de si e na possibilidade de criação de "imagens mentais"; uma conciliação de dois mundos; o rejuvenescimento da "aura" (Benjamin) do singular objeto artístico; um pacto de confiança entre o observador e incógnito passageiro clandestino no convés do vagão da memória. Apartir da imaginação vemos o impensável e é assim que apreendemos (pelo despertar dos sentidos) o presente mágico do mundo sensível.

 

Referências

Abram, D. (2017). The spell of the sensuous. New York: Vintage Books, a division of Penguin Random House.         [ Links ]

Damásio, A. (2003). Ao encontro de Espinosa: as emoções sociais e a neurologias do sentir. Mem Martins: Europa-América        [ Links ]

Eliasson, O., Grynsztejn, M., Bal, M. (2007). Take your time: Olafur Eliasson. San Francisco: San Francisco Museum of Modern Art.         [ Links ]

Eliasson, O., Irwin, R. (2007). 'Take your time: A Conversation', in Madeleine Grynsztejn (ed.), Take your time: Olafur Eliasson. San Francisco: San Francisco Museum of Modern Art        [ Links ]

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Gil, J. (2018). Caos e Ritmo. Lisboa: Relógio de Água Editores.         [ Links ]

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Rovelli, C. (2018). A ordem do Tempo. Lisboa: Objectiva.         [ Links ]

Vincent, J. D. (2010). A Viagem extraordinária ao centro do cérebro. Alfragide: Texto.         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido a 02 de janeiro de 2019 e aprovado a 21 de janeiro de 2019

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: r.silveira@hff-muc.de (Rodolfo Silveira)

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