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Revista :Estúdio

versión impresa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.10 no.25 Lisboa mar. 2019

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

O processo de criação de Ricardo Basbaum quanto ao uso do diagrama e da voz

The process of creating Ricardo Basbaum's use of diagram and voice

 

Gustavo Henrique Torrezan*

*Brasil, artista visual e pesquisador.

AFILIAÇÃO: Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, São Paulo. Rua Doutor Plinio Barreto, 285. 4º andar. Bairro Bela Vista. São Paulo, São Paulo, CEP 01313-020 Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Desde os anos 1960, as artes visuais expandiram o seu fazer, adotando novos procedimentos para suas práticas, o que abriu espaço para que outras sensorialidades fossem consideradas e ansiadas como diferentes modos de vivenciar o mundo e produzir novos discursos. Isso causou um certo combate a materialidade da obra a partir da produção de experimentos que possuíam a ideia de uma resistência ao mercado e de fuga da representação. O legado dessa época repercute no que é atualmente produzido, especialmente no trabalho de Ricardo Basbaum, que se caracteriza como um grande sistema no qual o diagrama e a voz são materiais. Ambos, articulados sob o viés da filosofia da diferença, motivam o campo de seu processo criativo. Aquilo que este artigo pretende abordar é o processo criativo do artista em particular as diferentes expressões do conceito de diagrama a partir da obra de Gilles Deleuze relacionando-o com a voz enquanto engenho experimental de singulares visualidades enquanto procedimento criativo do artista.

Palavras chave: Processo de Criação / Singularidade / Diagrama / Voz.

 

ABSTRACT:

Since the 1960s, the visual arts have expanded their practice, adopting new procedures for their practices, which has opened space for other sensorialities to be considered and desired as different ways of experiencing the world and producing new discourses. This caused a certain combat to the materiality of the work from the production of experiments that had the idea of a resistance to the market and of escape of the representation. The legacy of that time has repercussions on what is currently produced, especially in the work of Ricardo Basbaum, who is characterized as a great system in which the diagram and the voice are material. Both, articulated under the bias of the philosophy of difference, motivate the field of its creative process. What this article intends to address is the creative process of the artist in particular the different expressions of the concept of diagram from the work of Gilles Deleuze relating it with the voice as experimental ingenuity of singular visualities as a creative procedure of the artist.

Keywords: Creative process / Singularity / Diagram / Voice.

 

Introdução

As artes visuais, após a segunda metade do século XX, firmaram-se como referencial para muitos trabalhos de artistas da atualidade devido a sua intenção expansiva quanto aos procedimentos e práticas adotados. Ricardo Basbaum constrói seu trabalho a partir desse referencial. O artista, nascido em 1961, na cidade de São Paulo, é professor do Curso de Artes Visuais e do Programa de Pós Graduação da Universidade Federal Fluminense no Rio de Janeiro (UERJ), cidade onde vive. Em sua biografia constam exposições como a Documenta de Kassel, Bienais de São Paulo (25o, 27o e 30o), urban tension — museu in progress (Viena — Áustria), Entre Pindorama (Künstlerhaus, Sttutgart — Alemanha) entre muitas outras. É hoje um dos principais artistas do país e certamente está entre aqueles que possuem maior influência no cenário artístico mundial.

Além de ser artista, atua também como professor, curador, crítico, escritor e músico, em uma profusão de ações que o impulsionaram a formular o conceito ARTISTA-ETC; uma síntese conceitual que tenta abarcar a soma de atividades nas quais um artista da atualidade está envolvido e produz enquanto modos de sua prática, reflexão e lugares de atuação. Cabe ressaltar que para ele a prática artística e docente são indissociáveis, já que agenciam estratégias comunicacionais que provocam sensações singulares e não palavras de ordem.

Basbaum iniciou sua carreira nos anos 1980 relutando em seguir a "tendência" da época que foi marcada pela retomada da pintura. Os projetos do artista se desenvolvem na mistura entre a arte contemporânea e o campo comunicativo, a partir da criação de trabalhos que se desdobram em um grande sistema complexo. Basbaum elaborou uma sigla e uma forma como marca de fácil memorização, o NBP (Novas Bases para a Personalidade), que apresenta, em termos gerais, uma ideia de transformação. Criado no formato octogonal, com cantos chanfrados e com um furo no meio, o objeto do NBP norteia outro projeto: Você gostaria de participar de uma experiência artística?

O objeto criado pelo artista, cuja forma remete a um vírus e é de fácil memorização — e por isso atua como uma marca –, pode ser usado e experimentado sem qualquer limite ou instrução, tendo como única exigência a documentação da ação. Essa atividade/proposição está relacionada a um grande conjunto que se interliga a outros trabalhos, construindo um grande sistema que, em síntese, objetiva apresentar linhas invisíveis tecidas por diversos tipos de relação e sensação, para tornar aparente as redes e estruturas de mediação. Estas estratégias comunicacionais são entendidas aqui como um meio experimental de produzir conhecimento pela sensação, que se dá através do esboço de um campo político da subjetividade.

A partir da mobilização dos campos sensoriais e conceituais, Basbaum busca com o NBP deflagrar processos de transformação ao mesmo tempo em que incorpora os registros das ações produzidas como questão fundamental do próprio trabalho, tamanha a abertura polifônica que favorece.

Junto a esses projetos sempre há a construção de um diagrama (NB: Sobre o diagrama fala o artista: "se um desenho — mapa, diagrama — é convocado a servir de ferramenta para a produção de pensamento, é porque está já posto o desejo de pensar de outra forma — pensar sensivelmente, sensorialmente, pensar o ainda não-articulado, o imprensado" [Basbaum, 2010:31]) que muitas vezes é apresentado como parte integrante do trabalho. São estruturas cartográficas para "mapeamento afetivo e relacional" (Basbaum, 2010:31) combinando linhas, palavras e outros elementos gráficos que "indicam a efetivação de processos procurando instaurar dinâmicas de funcionamento em que há produção" (Basbaum, 2010:29). Esse dispositivo de contato "se trata de um plano de composição, cuja guia não é a ordenação, mas a composição de um bloco de sensações: uma encruzilhada" (Ferraz, 2005:11), ou melhor, uma plataforma de articulação de forças.

Assim, a construção dos diagramas para o artista se dá como possibilidade de desdobramento para a experimentação de um outro procedimento: o uso da voz nas artes visuais.

Basbaum, recentemente, prolongando os trabalhos e procedimentos até aqui apresentados, cria textos a partir de seus diagramas que são lidos, gravados e inseridos como parte de outros trabalhos. Dessa forma, o artista concentra a intensidade do acontecimento para incitar e singularizar a voz enquanto presença corporal e material para o seu trabalho artístico, a fim de enfatizar sua "carnalidade": ela, a voz, produz-se como experimento.

Ainda que um início daquilo que pode ser entendido como uma escrita de artista possivelmente tenha se dado no início do século XX com, por exemplo, Paul Klee e Wassily Kandisnky, quando buscaram indicar as questões que propunham com seu trabalho usando a escrita, o texto, como base para suas argumentações, foi somente a partir dos anos 1960 que o artista tomou a palavra para si, passando a produzir além de seus trabalhos plásticos, textos que explicitam, apresentam seus procedimentos, tornando-se um ponto importante na construção de um pensamento da arte na contemporaneidade.

Daqueles que iniciaram essa prática, conectados com as propostas pedagógicas da Bauhaus, que entre outras propunha que a arte estivesse alinhada com questões do cotidiano, podemos referenciar inúmeros outros que, se elencados, evidenciam os seus procedimentos ligados à construção de novos experimentos com materiais lançando mão de práticas pouco adotadas, produzindo aproximações entre a palavra e a imagem, que até então estavam afastadas no campo da arte, de maneira a abrir a possibilidade para a criação de conceitos enquanto construção de seu trabalho artístico.

Vou me ater especificamente a essa escrita, aquela que o artista produz como elemento integrante ou mesmo como seu trabalho de artes visuais. A escrita, assim, torna-se um procedimento do artista, evidenciada a partir da desmaterialização e da expansão do campo de atuação da arte.

Na medida em que a prática da desmaterialização da arte e a expansão de sua atuação se dão é possível indicar que o ateliê de produção do artista e o seu metier perdem sua especificidade. Do mesmo modo que o ateliê é o lugar onde se cria, se produz o trabalho, tal qual propõe Robert Smithson (2006:182), o escritório, a biblioteca, um computador ou um laptop podem ser entendidos como um "novo" ateliê do artista, onde além de ele construir seus trabalhos, produz uma prática.

Ao pensarmos o processo de criação, nota-se que a criação do trabalho de arte é a fabricação de uma trama, rede tecida em favor da produção. Parte do movimento, junta vestígios, produzindo certa estabilidade precária, para conseguir parar em pé (Deleuze, 1992). Um trabalho de arte é então um tecido de conexões que constrói o possível do impossível, traz a potência da sensação, da invenção enquanto movimento da vida em nós que coincide com a mobilidade da própria vida nas coisas. Para realizar uma criação, é comum que sejam feitas anotações que, assim como os rabiscos, não possuem o rigor de metas estabelecidas, já que eles são uma espécie de mescla entre a construção e a destruição em gestos e de gestos. São marcas formadoras que tencionam os limites entre a perfeição e a imperfeição e que indicam rastros que nada mais são que sinais daquilo que foi percorrido e os meandros, fissuras, nos quais é possível se insinuar e seguir inventando o trabalho. Essas anotações são a potência de um novo, marcas da construção de um estilo e de atravessamentos que o artista experimenta para dar vida a sua criação, para que ela se adense engendrando pequenos blocos de sensação.

É por isso que, ao notar e atentar para o processo de criação em arte, torna-se perceptível que o trabalho artístico está sempre aberto, à mercê de atravessamentos que propõem novos rumos. Nele, a incerteza e a ousadia é também material do artista em derivas de experimentos das anotações que muitas vezes são afins e em outras são dispares em relação com o problema que o desafia. O que até aqui foi apontado indica que a construção de um trabalho de arte pode ser antecedida ou não por referências, mas o importante é que ele, enquanto processo, mantenha sua abertura para as forças e que o artista sustente esta abertura abrindo-se ele também aos afetos que "chamam" a criar ou alterar o trabalho, produzindo desvios quando necessário.

Ir e vir, fazer e refazer, construir e apagar, sobrepor e extrair camadas no processo de criação e inseri-lo também como material da pesquisa, pois todo o pensamento de Deleuze, no que se refere às condições do pensar, propõe uma reflexão em torno da noção de criatividade. Entende-se, portanto, que não só o trabalho de arte, mas o processo de criação pelo qual ele é gerado, é material para edificar o campo que é o da criação como processo singular de construção de conhecimento, de reflexão, mas também um campo para experimentação do pensar. Um pensar com arte. Nesta proposta de pensar com arte é lócus de produção do artista Ricardo Basbaum. (NB: Que segundo Ricardo Basbaum [2007:47] é "a mais precisa formulação das condições de possibilidade para a produção de enunciados e visibilidades que possuam a predisposição de uma real intervenção em um campo cultural, por articular multiplicidade, simultaneidade e internalidade: ou seja, implica numa estratégia de produção de real que abre-se para uma combinatória rizomática de amplas possibilidades (…) sempre considerando o funcionamento conjunto das duas matérias (simultaneidade), sem deixar de cumprir a exigência de participar de dentro do mesmo processo proposto (internalidade)."

 

Outras sensorialidades são consideradas e ansiadas como outros modos de experimentar o mundo e produzir novos discursos.

Pode-se notar, a partir do que até aqui foi apontado, que desde os anos 1960 a arte expandiu o seu fazer, motivando uma linguagem cada vez mais característica do próprio meio artístico e ao mesmo tempo em que aumentou a variação dos materiais usados; desinteressou-se por aqueles até então típicos de seu metier abrindo-se para a possibilidade de que qualquer material pode agora se tornar artístico, alargando então o campo das plásticas. Outras sensorialidades são consideradas e ansiadas como outros modos de experimentar o mundo e produzir novos discursos: a voz é material do artista visual. Criou-se uma dilatação que fez com que a arte gerada perdesse sua materialidade, ou melhor, sua fisicalidade, em favor de propostas ditas conceituais.

Assim, o encadeamento indicado na introdução traz a seleção de artistas que de um modo ou de outro, cada um com seus procedimentos e práticas singulares, buscaram esgotar as ideias vigentes de arte, retirando camadas consolidadas do fazer artístico, do sistema e do estatuto da arte, entre outros. Nos procedimentos adotados entenderam que é esgotando que o novo, o diferente pode aparecer. A ideia do esgotamento perpassa por duas questões que aqui se pretende trazer a tona, a partir de dois procedimentos que de certa forma fazem uso do texto. Ambos são evidências da busca de um esgotamento da fisicalidade da obra. Estes procedimentos estão em relação com o material experimental utilizado nestas práticas artísticas que se tornam arte, mas cuja materialidade escapa tal como indica o trabalho de Ricardo Basbaum.

Não se trata de legitimar os condicionantes da língua ou do escrito, mas sim de atentar para os experimentos que buscam perverter esses condicionantes fazendo com que a linguagem produza uma "falha" na qual ocorre uma fuga da representação e, assim, dá a ver e a ouvir, torna sensível visões e falas descoladas de corpos: blocos de sensação (Deleuze, 1992).

O uso da voz esteve sempre associado a outros ramos da arte, especialmente a música e ao teatro, mas também a literatura. É através desta última que se desenvolveram estudos importantes realizados por Paul Zumthor. O teórico, a partir de pesquisas sobre a literatura medieval, apresenta uma distinção entre o conceito de voz (vocalidade) e de fala (oralidade), trazendo a atenção para a voz viva — e não para a do discurso que pode ser mediado por outros elementos, como por exemplo, a escrita — indicando questões em que a voz não se reduz a palavra oral (esta que é uma qualidade simbólica da voz) (Zumthor, 1993).

Zumthor (1993) referencia a voz poética ou "erudita", que pela sua natureza concentra as intensidades para produzir acontecimentos que a singularizam enquanto presença, duração e "carnalidade" através de uma performance (uma ação oral na qual produz-se um experimento com a voz, experimento é sentido, no qual ela também está incluída enquanto elemento, presença e performatividade). Uma questão importante a ser indicada neste artigo que, neste contexto, há uma diferença entre texto e obra, esta última está em constante movimento e ultrapassa o próprio texto pelo que comunica — poeticamente — no tempo da leitura. Som, ritmo, elementos visuais convidam o ouvinte não só a audição, mas a interagir corporalmente com a obra, na medida em que esta se efetiva entre o leitor e o texto no ato do acontecimento performativo da voz. É importante aqui ressaltar que para o autor a obra compreende a totalidade dos fatores da performance, onde o texto carrega em si as virtualidades da voz, o discurso se torna um gesto não-verbal e a palavra se torna uma não-palavra.

Uma partida para um pensamento. Ricardo Basbaum em uma de suas palestras cerca de um mês antes da apresentação ao público de seu trabalho no 32o Panorama das Artes Brasileira no Museu de Arte Moderna de São Paulo, ocorrido no ano de 2011, participou de um evento promovido pelo curso de especialização em Artes Visuais do Instituto de Artes da Unicamp que aconteceu no SESC Campinas. O tema central do evento era o uso da palavra nas artes visuais. O artista iniciou sua comunicação apresentando imagens de alguns trabalhos seus — desenhos feitos pelos filósofos Gilles Deleuze e Michel Foucault — ao mesmo tempo em que fazia comentários a respeito das imagens. Em um determinado momento apertou o play de uma gravação de áudio em seu computador enquanto no telão aparecia um grande diagrama de sua autoria. Após o início do som o artista levantou e sentou-se na plateia colocando-se como um expectador de sua própria palestra. A plateia continuou ouvindo o texto gravado até seu término.

Um mês depois, já no 32o Panorama da Arte Brasileira, o artista exibiu uma instalação que consistia em um grande diagrama feito em adesivo vinílico recortado que foi colado sobre as paredes de vidro do museu (onde ao fundo poderia se visto o Parque do Ibirapuera) e, em frente a essa parede de vidro, havia um banco almofadado e reprodutores de áudio com fones de ouvido. Nesse trabalho "Fuga para vozes interiores/Exteriores múltiplos" (2011) a gravação apresenta um texto lido pelo artista que busca dialogar, criando uma disputa, ou melhor, uma tensão produtiva entre as palavras que estavam na parede de vidro, e que formavam o diagrama, e a voz, favorecendo com que o visitante produzisse conexões que escapavam daquelas estabelecidas no diagrama ao instigar experimentos naquele espaço, mas também atravessamentos para além dele (da parede de vidro ao parque).

Tanto na palestra quanto no trabalho apresentado na exposição, o artista experimenta uma voz como um pensamento/convite para produzir novas sensações a partir de uma escrita que imprime um movimento de abertura para o visitante.

Basbaum não faz com que as palavras substituam o que é visto, mas sim que elas provoquem, estimulem novas visualidades. Assim cria uma ideia de imagem aberta que é produzida pela voz, usando-a como procedimento, como material para seu trabalho artístico.

Notamos aqui a possibilidade de uma proliferação de aberturas pela arte para produzir sensações no mundo, tendo neste caso a voz como material para o experimento.

A partir do que expõe Zunthor em suas pesquisas e daquilo que foi apresentado/descrito nos trabalhos de Ricardo Basbaum é possível pensar que o artista cria procedimentos para realizar performances, em que sua obra é produzida pela voz em acontecimentos espaço-temporais. Estamos assim diante de um trabalho que se abre para que o visitante experimente por meio de um conjunto de artefatos construído, que praticamente nenhuma fisicalidade possui, mas que se produz enquanto sensação.

Um outro modo de aumentar a potência da imagem, dissipando-a, se dá com a construção de um diagrama que é apresentado por Gilles Deleuze e usado pelo artista Ricardo Basbaum.

Deleuze, em seu livro intitulado Foucault, faz uso do conceito de diagrama para pensar as proposituras do outro filósofo que dá nome ao livro. Escreve que para Foucault, a construção da formulação abstrata do Panóptico indica a imposição de uma conduta a uma multiplicidade humana que deve ser tomada como restrita e que se faz através da repartição no espaço-tempo (Deleuze, 1995:43) de duas variáveis indissoluvelmente ligadas, estando este — o diagrama — em um funcionamento que se dá abstraindo qualquer obstáculo ou atrito, aponto-o como uma força na medida em que ele deve destacar-se de qualquer uso específico. "O Diagrama não é mais o arquivo, auditivo ou visual, é o mapa, a cartografia, co-extensiva a todo o campo social. É uma máquina abstrata. Definindo-se por meio de funções e matérias informes, ele ignora toda distinção de forma entre um conteúdo e uma expressão, entre uma formação discurssiva e uma formação não-discursiva." (Deleuze, 1995:44). Atribui a ele a característica de uma máquina que apesar de ser muda e cega produz conhecimentos (ou sensações). Indica adiante que todo diagrama não para de misturar matérias e funções de maneira a construir mutações, age para produzir "um novo tipo de realidade, um novo modelo de verdade" (Deleuze, 1995:45) que desfaz a realidade e as significações dadas, diferencia-se da estrutura já que suas alianças tecem uma rede flexível e transversal, horizontal, "definem uma prática, um procedimento ou uma estratégia, distintos de toda combinatória, e formam um sistema físico instável, em perpétuo desequilíbrio, em vez de um círculo fechado de troca" (Deleuze, 1995:45).

São formas de exterioridade onde se atualizam relações de força que aparecem em toda relação de um ponto a outro. Assim, pode se conectar ao fora dele próprio (em outro diagrama que pode estar sobreposto a ele mesmo), ou melhor, a "pontos relativamente livres ou desligados, pontos de criatividade, de mutação, de resistência" (Deleuze, 1995:53).

Em Lógica da Sensação, livro também escrito por Gilles Deleuze, é feito outro uso do conceito de diagrama, desta vez para pensar o processo de criação do artista Francis Bacon e o que é pintar para o filósofo. Segundo Deleuze (2005), no movimento para a criação de uma obra, o artista se lança à tela para fazer marcas, traços, linhas, movimentos que induzem à lugares ou zonas de manchas e cores, agindo como uma luta contra aquilo que já estava na tela para que sejam demarcados, limpados, escovados, espanados, ou melhor, recobertos pelo ato de pintar. Essas ações introduzem aquilo que Bacon chama de Saara (2007: 103) e que nada mais é que construir um deserto despovoado para que o pintor possa enfrentar, seguir, ou seja, construir um campo onde ele inicie sua aventura da pintura.

Para construir esse campo de Saara é necessário construir o diagrama que é a operação das linhas e das zonas, dos traços e das manchas que "são não representativos, não ilustrativos, não narrativos" (2007:103), isto é, são assignificantes e, por serem assim, sugerem ou introduzem as possibilidades de fato e com elas a construção de um mundo cujo mote se dá como mecanismo de uma catástrofe e do caos, que irrompem com a soberania do visual, dando "ao olho uma outra potência" (2007:104), para que o pintor atue, produza o pintar. Assim, o diagrama, ao ser traçado em uma tela, estabelece uma abertura para os domínios sensíveis onde encerra o ato preparatório e inicia o de pintar.

O conceito, tal como formulado por Deleuze, foi explorado pelo "artista-etc" Ricardo Basbaum.

Ricardo Basbaum faz uso de diagramas em seus trabalhos criando-os como espécies de desenhos que buscam não figurar ao combinar linhas, palavras, elementos gráficos em campos monocromáticos. Referencia que para ele diagramas "são estruturas cartográficas para mapeamento afetivo e relacional" (Basbaum, 2010:29) onde também indica e efetiva processos dinâmicos de produção de pensamento. O artista aponta que o diagrama pode possuir uma presença autônoma e é uma "plataforma de articulação das dimensões sensorial e conceitual, concebida como agente intersticial — dispositivo de contato entre uma situação real e outra potencial" (Basbaum, 2010:29) que media a produção de novos gestos e discursos.

Basbaum então propõe um desenho como um diagrama, como seu trabalho de arte, objetivando construir com ele dinâmicas discursivas que evidenciam temas e conceitos caros, tanto para o artista quanto para a arte contemporânea.

Propõe com eles provocar propostas de experimentos singulares para os participantes, e coloca como uma de suas referências os trabalhos dos artistas a partir dos anos 1960, em especial os de Hélio Oiticia, Lygia Clark e Lygia Pape, na medida em que esses artistas propuseram a inserção do visitante como participante indispensável e ativador do trabalho. Ao mesmo tempo, dialoga com artistas conceituais como Allan Kaprow, Piero Manzoni e Marcel Duchamp, ao trazer a importância da construção de conceitos. Assim, constrói seu trabalho a partir da noção de sistema com seus inúmeros desdobramentos, dando especial atenção à ideia, ao conceito de diagrama.

O diagrama, desse modo, pode ser entendido como uma prática do artista, que fazem uso desse conceito para pensar e produzir um plano de composição aberto, movente, que apresenta e gera a possibilidade de indicar as forças que o compõe e que a partir dele podem ser atravessadas.

 

Conclusão

O que se conclui a partir daquilo que até aqui foi abordado é que a construção dos diagramas para Ricardo Basbaum se dá como possibilidade de desdobramento para a experimentação do uso da voz e do texto. Também, o modo como ele faz uso da voz se dá a partir de uma perspectiva diagramática, colocada como performance na obra e disparada no processo de uma escrita experimental.

 

Referências

Basbaum, Ricardo. (2010) "Sur, sur, sur… como diagrama: mapa + marca." Revista investigação. n. 11. Porto Alegre.         [ Links ]

Deleuze, Gilles (1992) Guattari, Félix. O que é a filosofia? Trad. De Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34.         [ Links ]

Deleuze, Gilles. (1995) Foucault. Trad. Claudia Sant'Anna Martins. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Deleuze, Gilles. (2005) A imagem movimento. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Ferraz, Silvio. (1998) Música e repetição: a diferença na composição contemporânea.São Paulo:Educ/FAPESP. Disponível em: http://silvioferraz.mus.br/wip.htm Acesso em: 20 de maio de 2012.         [ Links ]

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Foucault, Michel. (1999) As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciência humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Zumthor, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido a 20 de dezembro de 2018 e aprovado a 21 janeiro de 2019

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: gustavo@cpf.sescsp.org.br (Gustavo Henrique Torrezan)

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