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Revista :Estúdio

versión impresa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.10 no.25 Lisboa mar. 2019

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Memórias de uma mente com lembranças: o imaginário doméstico no trabalho de Rick Rodrigues

Memories of a mind with memories: the domestic imagination in the Rick Rodrigues's work

 

Luciane Silva Bucksdricker*

*Brasil, artista visual.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Instituto de Artes Visuais, Programa de pós-graduação em artes visuais. Rua Senhor dos Passos, 248 — Prédio anexo, 5 andar, Centro, Porto Alegre/RS, CEP: 90020180, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Pretendo investigar neste artigo como se apresenta o imaginário do universo da casa e do lar, no trabalho artístico de Rick Rodrigues (João Neiva/ES, 1988). Ainda, por que vias e linguagens ele se aproxima e como dá conta desse espaço doméstico real e sonhado artisticamente, relacionandoos com as divagações sobre a casa e lar do filósofo Gaston Bachelard, do arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa e do psicanalista alemão Sigmund Freud.

Palavras chave: casa / lar / devaneio / memória / ficção.

 

ABSTRACT:

I intend investigate in this article how the imaginary of the universe of the house and the home is presented in the Rick Rodrigues's artistic work(João Neiva / ES, 1988). Yet, by what pathways and languages does he approach and how does he account for this real and artistically dreamed domestic space, relating them to the ramblings about the house and home of the philosopher Gaston Bachelard, the finnish architect Juhani Pallasmaa and the german psychoanalyst Sigmund Freud.

Keywords: house / home / daydream / memory / fiction.

 

Introdução

A casa e sua ideia de lar tem sido temas recorrentes em representações visuais no final do século XX e início do século XXI. São trabalhos ricos em clichês culturais e significados contraditórios, mas que demonstram a universalidade do assunto e sua contemporaneidade. Afinal, todos habitamos de alguma maneira uma casa, ou parte dela, independentemente de nossa classe social, gênero, raça ou localidade geográfica.

Rick Rodrigues (João Neiva/ES, 1988) é um jovem artista contemporâneo que vem se destacando atualmente no sistema de arte brasileiro. Graduado em artes visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo — UFES, cursa o mestrado na mesma instituição, focando seu trabalho no universo da casa e nas memórias da infância, traduzindo-as em uma produção que atua no território do sensível e do delicado através de linguagens como o desenho, o bordado e a instalação. Rodrigues trabalha dentro da sua própria casa e a partir dela, naquilo que ele denomina de "quartêlie", o quarto antigo de seu irmão mais velho, que por acaso, também foi quem lhe deu as primeiras lições de bordado a partir de costuras em celas de cavalo. Dentro deste espaço lembranças e trabalhos em processo misturam-se em um devaneio próprio do artista, que vai construindo pequenas histórias poéticas, aliando autobiografia com ficção. O artista parte do privado para discutir o universal, tentando achar pontos que se entrelaçam e se sobrepõem em todos os lugares: questões de afetividade e memória. Através das lembranças das casas do passado e de memórias familiares, o artista capixaba transforma o intangível em material artístico. A casa é o amplo território discursivo onde Rodrigues devaneia de maneira particular. Os seus cômodos estão interligados um ao outro por pensamentos e lembranças e oferecem ao artista uma topografia de seu ser mais íntimo, mesclando memória, sonho e ficção. A casa e o lar e a forma de habitar é o fio condutor que percorre e interliga todos os trabalhos de Rick produzidos até hoje.

 

1. Casa: refúgio e cela

"O ato de habitar é o modo básico de alguém se relacionar com o mundo", afirma o arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa. Se habitar causa um impacto do sujeito no ambiente e vice-versa, poderíamos através da análise dos hábitos de alguém, em um determinado lugar, identificar essa pessoa. Seus gostos, seu temperamento, suas preferências. O ambiente seria como um decalque desse sujeito, o mais íntimo que se poderia chegar de uma pessoa sem o uso da palavra. O ambiente onde uma pessoa vive torna-se uma extensão dela, tanto física como mental. Os corpos residem em uma casa para proteção, intimidade, mas, também, lá domicilia-se nossa mente com seus desejos, sonhos, medos e segredos. A casa na poética de Rick Rodrigues propõe, entre tantas discussões, pensar sobre as fronteiras entre o público e o privado, a tensão do dentro e de fora, o eu e o outro. A casa como casca do lar e do ateliê, é um lugar onde o artista realiza os diversos gestos e ações, íntimos e secretos, repetitiva e minuciosamente, e vivencia as mais diversas e possíveis identidades (Pallasmaa, 2017)."O lar é uma encenação da memória pessoal, um mediador complexo entre a intimidade e a vida pública."

A casa é refúgio e cela ao mesmo tempo. O entrelaçamento quarto/ateliê reflete na produção de Rodrigues. Além de trabalhar na casa e sobre a casa, o uso dos materiais também provém do mesmo lugar. Lenços, brinquedos de infância, objetos há muito guardados. O corpo-casa do artista se engrandece e se confunde entre arte e vida. O processo de criação acontece também na contaminação de materiais e linguagens, na mistura da brincadeira de criança com a arte e nas memórias reais com as memórias inventadas. O trabalho de Rick é proposto a partir da mistura de arquivos e memórias que habitam há muito o seu corpo-casa. O artista faz uso de diversas linguagens para cercar a casa pelos mais diversos ângulos, entre elas o desenho, a serigrafia, o bordado e as instalações que incorporam miniaturas de partes da casa (como camas, cadeiras e escadas) à outras linguagens tradicionais.

 

2. Tudo que não invento é falso

Na exposição Tudo que não invento é falso de 2016 (Figura 1), Rodrigues apresenta algumas séries de trabalhos que tem o mesmo nome. Composta por desenhos em grafite vermelho e azul, objetos miniaturas em madeira e uma série de bordados, ele apresenta uma instalação que permeia todo o universo doméstico. O nome da mostra já denota o entrelaçamento entre os documentos da época de infância e a memória inventada que preenche as lacunas daquilo que não se tem registrado. O lugar entre a confissão e a ficção aparece como um terreno fértil para a prática artística.

 

 

Uma escada em miniatura, longa e estreita, e que muitas vezes não chega a lugar nenhum. Ou que se atravessa por lugares impossíveis como ponte para lugares secretos. Uma cama de molas perfeitamente verossímil mas em tamanho diminuto e disposta sobre um fofo travesseiro (Figura 2). Casas de pássaros minúsculas dividindo espaço com meninos e meninas desenhados e bordados, tendo como característica rostos escondidos por flores ou por casas. As instalações de Rick Rodrigues mexem com o imaginário infantil e requerem constantemente que se traga nossa própria bagagem interna para dialogar com que é proposto. Essa relação entre a contemplação do trabalho em um determinado espaço, durante um tempo, por um espectador, assinala o que podemos chamar de instalação. Segundo Elaine Tedesco (2004), "em uma instalação o artista implica simultaneamente sua proposta e o lugar onde se situa; depois, com a duração um determinado local é temporariamente transformado. Além disso, um espectador precisa ser acionado para que o círculo de relações se forme".

 

 

A escada é um elemento de ligação para aquilo que você não alcança. As escadas usadas de maneira diversificadas por Rodrigues levam a alcançar pensamentos e memórias que não são de fácil acesso, outras vezes parecem pontes para lugares insabidos ou passagens para esconderijos que dão proteção. As escadas interligam os trabalhos de toda a exposição, funcionando ora como sugestão, ora como possibilidades (Figura 3 e Figura 4).

 

 

 

 

Já na série de trabalhos em desenho em que o artista usa a figura humana tendo a cabeça substituída por uma casa ou um corpo gigante que habita uma casa miniatura (Figura 5 e Figura 6) observa-se o pensamento sobre o viés de uma construção de um mapa interno, de um universo doméstico próprio. O corpo e a casa criam juntos um itinerário de lar. Um habitar que vai acontecendo a partir e através de uma viagem doméstica, remapeando ele mesmo as diferentes noções do que seria a sua própria noção de lar.

 

 

 

 

 

3. Que casa é essa que se habita?

No romance O mágico de Oz de 1900 de L. Frank Baum, Dorothy Gale, uma menina órfã de doze anos, vive com seus tios em uma fazenda no Kansas (EUA) e sonha com um lugar melhor. Após ser golpeada na cabeça e perder os sentidos, no momento em que um ciclone levanta sua casa para o céu, ela e seu cão Totó acordam na terra mágica de Oz. Após muitas aventuras pelo mundo de Oz; uma estrada de tijolos amarelos, bruxas boas e más, novos amigos e descobertas, Dorothy consegue voltar para casa. Confusa e febril, a personagem profere na cena final do filme, sentada em sua cama e ao lado de sua família, a clássica frase: "Não há lugar como nosso lar." Quando Dorothy acorda falando sobre Oz, sua tia Em tenta acalmá-la dizendo que tudo foi apenas um pesadelo e que ela está segura em casa, mas Dorothy acredita que havia algo "estranhamente familiar" em Oz, ela realmente parecia um "lugar". Sua aventura começa e termina em sua casa, mas o fantástico mundo de Oz faz com que a personagem repense suas ideias sobre a essência do lugar e do lar. Qual seria a diferença entre "casa" e "lar" e o que seria este estranho naquilo que parece tão familiar? Em português, assim como em várias outras línguas, temos duas palavras para designar diferentes facetas do ato de morar. A casa seria a estrutura arquitetônica criada para abrigo e proteção onde desenvolvemos atividades domésticas, enquanto que o ato de habitar transforma esta casca sem significado em algo especial, o lar. Este, daria a noção de pertencimento e seria construído na nossa mente, é um local de celebração e luto, sonhos, pesadelos e insônia. Ele está ligado a memórias e desejos pessoais. A busca pelo lar começaria ainda no útero da mãe e terminaria apenas local da morte, em um desejo nunca preenchido. A busca do lar seria o próprio caminho da vida, segundo David Lichtenstein, psicanalista lacaniano, que afirma no artigo Born in exile: theres no place like home de 2009 que "O lar é uma ilusão de inteireza."

Na trajetória artistica e poética de Rick Rodrigues, a partir da pequena cidade de João Neiva, assim como na aventura de Dorothy Gale em Oz, consegue-se co-participar do devaneio e compartilhar com eles essa busca pelo o que poderíamos denominar "construção da sua própria ideia de lar". Habitar uma casa, isto é, torná-la pessoal, envolvê-la com objetos próprios, rituais pessoais, secretar o próprio cheio, sentindo-se em casa, fazer dela um lar, produz seres com raízes que possuem história: passado, presente e futuro. Um homem que não habita vive em uma eterna solidão do tempo presente. Quando se habita uma casa, ela se torna extensão do corpo. Nela se reconhece e se molda a própria identidade. E essa construção de lar pode levar muito tempo ou surgir a partir de um ciclone que tira do chão para devolver tudo em forma de clareza logo mais. Os desenhos de Rodrigues muitas vezes podem parecer nonsense como as ideias no romance de Baum, mas é com esse rico imaginário poético que uma casa deve ser povoada para transformar-se em lar. "De fato, em nossas casas temos cantos e redutos onde gostaríamos de nos aninhar confortavelmente. Aninhar-se pertence à fenomenologia do verbo habitar, e apenas aqueles que aprendem a fazê-lo conseguem habitar com intensidade. " (Bachelard, 2010:30)

 

4. Quando o familiar se torna estranho

Mas, assim como o lar é referência de segurança e companheirismo, também é local de atos violentos, de memórias reprimidas e de solidão. A casa estrutura a maneira como se vive, e é estruturada pelas normas da sociedade e do tempo em que se vive. Pode-se então, considerar o lar como um duplo, entrelaçado entre o sonho e o pesadelo.

O texto O Estranho (Unheimlich), escrito em 1919 por Freud, começa com o psicanalista apresentando os diversos significados e, às vezes, as contradições contidas nos significados das palavras unheimliche (estranho) e heimliche (doméstico/oculto). Aproveitando-se da ambiguidade na língua alemã nos significados dessas palavras, Freud consegue explicar o que seria o "estranho no familiar", no conhecido. Isto é, o fenômeno do estranho estaria no momento em que as coisas familiares de repente mostram-se desconfortavelmente desfamiliares, perturbadoramente estranhas. Quando surge aquela dúvida entre o que é familiar e o que é intruso. O estranho é ao mesmo tempo caseiro e não-doméstico, é uma experiência familiar que esconde uma situação desconhecida como a sensação que Dorothhy Gale sentiu após voltar de sua aventura pela mágica terra de Oz, ou o desconforto conhecido, que repousa entre o sonho e o pesadelo, que se sente ao olhar algumas peças e desenhos de Rick Rodrigues; a miniatura de cama que repousa na parede a 2 metros de altura com uma escada vertiginosa a qual que não se sabe ser possível subir até ela (Figura 7) ou seja pelos lindos e delicados bordados em lenços que nos mostram personagens sempre com o rosto tapado por flores, como em um pesadelo que nunca se descobre o rosto da pessoa que persegue (Figura 8 e Figura 9).

 

 

 

 

 

 

No estranho está contido o retorno. O estranho é algo que retorna, algo que se repete, mas que, ao mesmo tempo, se apresenta como diferente, ele relaciona-se com o sobrenatural, com algo de fantástico que surge de dentro da realidade familiar e que ocasiona o sinistro. O estranho surge do reprimido. Revelar o reprimido de uma casa seria revelar o oculto, as entranhas e os segredos do seu corpo. E cada casa tem os seus próprios segredos.

 

Conclusão

O lar é uma construção social afetiva, uma maneira de habitar uma casa e de criar uma formação identitária. Assim como a arquitetura da casa se modifica com as mudanças sociais e o passar do tempo, a formação de lar também se altera através do tempo, das culturas, raças e gêneros. "Um lar autêntico tem alma, uma alma que espera seu habitante" nos resumo poeticamente Pallasmaa (2017:22) sobre a ideia de uma construção de lar pessoal.

A partir de seu imaginário poético Rick Rodrigues traduz em suas produções artísticas sua própria ideia de lar, por vezes parecendo provindas de doces sonhos e outras tantas parecendo chegadas de devaneios perturbadores, onde realidade e mundo onírico se misturam. Diante da produção desse artista o observador reencontra-se com suas memórias de infância e põe em cheque o como e quanto habita em si mesmo.

 

Referências

Bachelard, Gaston (2001). A poética do espaço. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ISBN 978-85-336-2419-1.         [ Links ]

Baum, L. Frank (2013). O Mágico de Oz. Rio de Janeiro: Zahar. ISBN 978-85-3780966-2.         [ Links ]

Freud, Sigmund. (1919) O estranho. [Consult. 2018-08-15] Disponível em URL: http://conexoesclinicas.com.br/wpcontent/uploads/2015/01/freud-sigmund-obrascompletas-imago-vol-17-1917-1918.pdf        [ Links ]

Lichtenstein, David. (2009) "Born in exile: There is no place like home." Psychoanalytic Psychology, vol 26,451-458. [Consult 2018/08/15] Disponível em URL: http://psycnet.apa.org/record/2009-22330-008.         [ Links ]

Pallasmaa, Juhani.(2017) Habitar. São Paulo: Gustavo Gili. ISBN 9788584520947        [ Links ]

Rodrigues, Rick (s/d). Site do artista. [Consult 2018-11-23] Disponível em URL: https://www.rickrodrigues.com/        [ Links ]

Tedesco, Elaine Athayde Alves. (2004) Instalação: campo de relações. [Consult 2017-12-26] Disponível em URL: http://www.comum.com/elainetedesco/pdfs/instalacao.pdf        [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido a 03 de janeiro de 2019 e aprovado a 21 janeiro de 2019

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: luciane.dricker@gmail.com (Luciane Silva Bucksdricker)

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