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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.24 Lisboa dez. 2018

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

A Matéria da Escultura em João Castro Silva

The Matter of Sculpture in João Castro Silva

 

Dora-Iva Rita*

*Portugal, artista plástica, pintora.

AFILIAÇÃO: Universidade de lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e Estudos em Belas Artes (CIEBA). Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058, Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Nesta comunicação desenvolveremos uma breve análise de algumas das esculturas de João Castro Silva, realçando o papel semiótico das madeiras usadas como ponto de partida para as obras, nomeadamente as madeiras rudes provenientes dos estaleiros de obras, as madeiras trazidas às praias pelas tempestades juntamente com sargaços, ou as densas madeiras da grande criptoméria-japonica, com o objetivo de se perceber a importância da opção daquelas matérias específicas na percepção final da obra.

Palavras chave: João Castro Silva / escultura / matéria-prima / método iconológico / Criptoméria-japónica.

 

ABSTRACT:

In this communication we will develop a brief analysis of some of João Castro Silva sculptures, highlighting the semiotic role of wood used as a starting point for the works, namely the rough woods from the construction sites, the wood brought to the beaches by the storms, or the dense woods of the cryptomeria-japonica, in order to perceive the importance of the choice of those specific materials in the final perception of the work.

Keywords: João Castro Silva / sculpture / raw material / iconological method / Cryptometryjaponic.

 

Introdução: a matéria

Porque não valorizamos, nós, a transitória materialidade física e sim a, pretensa, eterna espiritualidade?

— João Castro Silva, 1999

A migração das formas por entre matérias permite imprevistas trocas semânticas. A migração das ideias por entre as formas elucida os espíritos.

Na escultura são as formas — esculpidas, moldadas, enformadas — que se apossam das matérias — a madeira, o barro, a pedra, o metal — imprimindo nelas as suas verdades. Mas, de facto, não é só assim: a mesma cabeça é diferente se for esculpida na madeira, ou for o barro ou o metal a matéria. Embora na percepção total da obra não se proceda a quaisquer separações, a coisa representada e a qualidade da matéria com que se representa, completam, em simbiose, a integridade semântica da obra. Assim, uma cabeça de madeira tem outra significação e expressividade, porque expressão é informação e sentido, do que a mesma cabeça em barro ou em metal (Potts, 2000).

Dos materiais que usa à maneira como o autor trabalha a peça — a ferramenta e a aplicação da máquina, a força que exerce, o tempo e ritmo do trabalho — à opção mais ou menos detalhada de sugestão final, impregnam a obra final de outras significações.

Ao interrogamo-nos sobre a vida como um todo maior do que ela é, a arte traz-nos essa outra realidade onde é permitido a confluência de tudo quanto desejarmos ter como referente. Sem limites ou preconceitos, deixamo-nos migrar para a obra levando tudo o que realmente somos, mas, frequentemente, esquecendo no subconsciente muita da realidade que está presente em obra, como as matérias e os gestos de que é feita, porque nos encontramos perante o compromisso entre o complexo material e conceptual que o autor instituiu como sendo a obra e a nossa aproximação, com muito menos informação sobre ela em si mas com a nossa história e respostas às incertezas que mais intimamente procuramos encontrar.

Compreendamos, então, que uma escultura é uma sequência de hibridismos formados pelas diversas opções dos diversos intervenientes, desde o início à sua fruição, sendo que este fenómeno é verificável em qualquer processo criativo-contemplativo.

 

1. A obra de João Castro Silva

João Castro Silva nasceu em 1966, estudou escultura na Faculdade de Belas Artes de Lisboa (FBAUL) seguindo para Londres com o objetivo de desenvolver maiores competências em fundição (curso de "Bronze Casting", Royal College of Art, 1994). É recorrente as pessoas formadas pela FBAUL terem grande facilidade em se adaptarem a outros meios académicos e profissionais devido á aquisição, no seu percurso formativo, de vastos e variados conhecimentos, tanto na cultura e sensibilidade artísticas como no saber-fazer. Foi isto o que sucedeu com João Castro Silva que, passado algum tempo, regressou a Lisboa, mensurando claramente a importância da formação adquirida na FBAUL, mais profunda, alargada e estruturada do que aquela que encontrou fora. No entanto, trouxe consigo um importante nível de conforto, nomeadamente na segurança que adquiriu ao confrontar-se com outros pares, com outros meios oficinais, tecnológicos e académicos. Isto dá-lhe o impulso da autonomia, iniciando uma permanente atividade criativa escultórica e uma inovadora procura de matéria-prima para o seu trabalho, o que o capacitou a uma maestria na escultura em madeira.

Na primeira exposição individual (Tentações, 1996. Galeria Míron Trema, Lisboa) revisita o universo boschiano, pleno de arquétipos oníricos e poéticos. Na senda destes encontros com imaginários estranhos, compostos por inesperadas possibilidades formais de existência, João Castro Silva exerce um exercício de aplicações diversificadas ao nível dos materiais, procedimentos e tecnologias. Trabalha metais, em chapas e filamentos, redes, peças descartadas. Corta, solda, funde, torce. Usa madeiras repescadas de várias origens. Membranas finas que, depois de aplicadas sobre redes, se transformam em favos de mel. As figuras que criou são fortes, transcendentemente transparentes e etéreas, simultaneamente pesadas e leves, ferozes e amáveis, insanas e lúcidas. Estas peças, compostas por aleatórias matérias e formas, estão, todavia, completamente apartadas de qualquer sentido anedótico. Assumem-se apenas como uma singela comemoração do dissemelhante. É através da recoleção de materiais que João Castro Silva consegue imprimir a este ciclo produtivo a ousadia formal de serem obras estranhas, figuras não pertencentes ao nosso universo.

É também neste sentido de confluência de "diferentes" transformados em "semelhantes" que João Castro Silva desenvolve temerários ensaios de oragos e relicários (1999). Em figuras esculpidas em madeira integra outros elementos, cujos registos diferenciados enunciam um ecumenismo poético e ontológico ao nível das narrativas e das matérias. Esta tipologia do pensamento criativo parece adensar-se umas vezes e ser esquecido noutras. Mas apenas aparentemente, porque quando trabalha um aglomerado de partes da mesma matéria como se de um bloco maciço se tratasse, o pensamento criativo continua um processo similar.

Na obra escultórica de João Castro Silva verificamos uma rigorosa interdependência entre matéria-prima e obra acabada. Cada opção expressa determinada perspetiva do mundo e todas as opções tomadas, desde a escolha da madeira à finalização do trabalho escultórico, convergem para um mesmo fim expressivo potenciando-o semanticamente. Daí a importância no trabalho artístico de todas as opções tomadas do princípio até ao final.

As obras de João Castro Silva são obras totais, prenhes de significação, abrindo-se com extrema clareza numa abordagem iconográfica (Panofsky, 1989).

Das matérias-primas comuns da escultura a madeira é aquela que mais próxima está da natureza humana (Potts, 2000). Ao ser esculpida deixa de ser árvore (Ventura, 2016) e passa a ser obra de outro arbítrio alcançando outra natureza — a da arte ou a do espírito, aquelas que necessitam de matéria para se manifestar. O escultor incorpora-lhe outro carácter na sua natureza, que é tudo o que carrega desde a origem, por pouco comemoradas que sejam as sua forma anterior, os solos que nutriu, as brisas que abraçou, as florestas que integrou, a envergadura que foi adquirindo.

De facto, é madeira que João Castro Silva mais utiliza como matéria-prima das suas obras. Analisemos algumas das escolhas mais recorrentes que o autor faz, realçando o papel semiótico das madeiras usadas como ponto de partida para as obras, que subdividimos em três categorias de modo a facilitar a abordagem, nomeadamente:

1. as madeiras rudes provenientes dos estaleiros de obras,

2. as madeira de maré (Ventura, 2016:20) trazidas às praias pelas tempestades,

3. e as densas madeiras da grande Criptoméria-japónica,

com o objetivo de se perceber a importância da opção daquela matéria específica na percepção final de cada obra ou ciclo de obras.

 

2.1 As madeiras rudes

As madeiras já usadas em várias atividades, sujas, rachadas, feridas, são uma das proveniências da matéria-prima que mais caracterizam as esculturas de João Castro Silva. São madeiras que aparentemente perderam a dignidade da origem, cortadas em pranchas serviram em estaleiros, cofragens, paletes. Já foram estruturas de edifícios demolidos. Têm histórias de bravura para além da árvore a que pertenceram e da escultura que vão incorporar.

O escultor entalha e cola as pranchas formando um bloco homogéneo que depois esculpe. Tendo uma matriz oficinal pragmática cujo objetivo é a consequência expressiva formal, o autor pode recorrer a outras técnicas construtivas numa mesma peça, moldando pranchas entre si com auxílio de prego (Figura 1). As marcas da degradação pelo uso duro a que a madeira esteve exposta, passam para a peça esculpida e deixam-lhe cicatrizes que vão inequivocamente acentuar alguma tragédia enunciada (Figura 2).

 

 

 

 

Por vezes o escultor ousa a ironia assumida pela aplicação da cor, fazendo inverter sinais que remetem para percepções contraditórias (Figura 3).

 

 

 

2.2 Madeira de maré

Num processo de descoberta poética e criação plástica, João Castro Silva parece inverter as questões do fazer, permitindo-se recolectar matéria já imbuída dos valores semânticos antropomórficos desejados. Continua a ser a árvore o grande protagonista destas obras: ramos decepados, curtidos pelas águas do mar, erodidos por rolar nas areias, esbranquiçados pela salmoura, as madeira de maré — ossos humanos (Figura 4).

 

 

Quase como num jogo inocente, onde só existe a transparência das coisas, João Castro Silva aplica em obra quase diretamente estas pequenas madeiras de sargaços calcificadas. Aí os pequenos troncos passam a ossos corroídos de soldados desconhecidos mortos em desventuradas guerras. É esta limpidez do alcance da obra que possibilita a escultura de João Castro Silva resplandecer.

 

2.3 Madeira da Criptoméria-japónica

Noutras situações, a matéria-prima é madeira de árvores que vencem o nosso tempo, podendo viver na casa dos milhares de anos. Advém de entes de metabolismo mais lento do que o nosso, de verticalidade extraordinária dos seus 70 m de envergadura, com folhas que lembram vegetações de épocas muito mais antigas. A matéria-prima tem um odor agradável e é rosada como a pele do escultor, leve e com uma densidade de 300 a 420 Kg por m3. A Criptoméria-japónica (Figura 5), um tipo de cipreste oriundo da China ou Japão, é hoje endémica em muitos outros locais do mundo, como nos Açores, onde se sobrepôs à floresta autóctone da Laurissilva. É uma forte e resistente árvore, daí o ser uma árvore de culto, envolvendo os santuários e os templos nipónicos (Zuzuki, 1987). João Castro Silva consegue incorporar nesta madeira a ductilidade da água, a leveza do ar, o peso da pedra, a uma estranha espacialidade de luz. Isto pode-se constatar na exposição instalativa Draperies (Figura 6) na Sala do Veado do Museu de História Natural e da Ciência que decorreu no ano de 2015.

 

 

 

 

O valor semântico de cada peça exposta é tão expressivo, eloquente e diverso, que remete o observador para uma transcendência, transformando-o em contemplador. E também modifica o espaço. Sacraliza-o. A oscilação parece existir e ser permanente, comprometendo o olhar e a percepção do ar em movimento.

As cisões entre as tábuas marcam o todo como veias ou como sulcos de navalha. As ideias irrompem à medida que os olhos afagam as superfícies. A delicada leveza das peças e da instalação surpreendem por contrariarem o próprio conceito de matéria esculpida. O têxtil sobrepõe-se-lhe. A ideia sobrepõe-se à matéria. De facto as peças parecem levitar acima do chão com a ajuda do ar. Ao circular por entre elas percebemos a sua verdadeira natureza, mas aí já a nossa percepção se encantou. Jogar com estes limites e saber não cair em redundâncias estéticas redutoras ou híper-habilidades, demonstra uma criação e saber fazer de mestre. Por instantes vem-nos à memória o assombramento dos Abakans ou os corpos lacerados de Magdalena Abakanowicz (1930), as redentoras figuras de Antony Gormley (1950), os vultos suspensos dos Pronomes de Ana Vieira (1940), a fragilidade cenográfica das instalações de Kaarina Kaikkonen (1952), o travo de algum acampamento improvisado de migrantes ou de vivências já desusadas da urbanidade mediterrânica. As tapeçarias alvas, dependuradas em linhas vagas que unem vão a vão e recortam o espaço, são cortinas, separações que escondem do olhar para além de si, podem ser mortalhas, sudários, mantéis. Podem ser tudo aonde a imaginação ilusória nos transporte. Podem referenciar-se como absurdos ou fascínios, grandes utopias ou pequenas verdades. Mas são esculturas relevadas em madeira de Criptoméria-japónica, variando entre os 135 e os 200 cm em altura ou largura, em que o espessamento não ultrapassa os 7 cm. A branda força da árvore está presente, as fibras sedosas permitem um toque de pele, embora visual. A energia específica da matéria-árvore funde-se àquela que é própria ao escultor. O polimento final é semelhante ao que o santeiro ou o imaginário dão à sua imagem e é do domínio da pintura. A pintura, velada, encobre a matéria sem a esconder, no entanto, obriga-a a fingir-se mármore, pele, aumentando o protagonismo semântico das obras. A árvore transfigura-se.

Cada peça é como tecido de árvore lavado que seca ao ar, e, por mais que pareça contraditório, como animal que lambe as feridas para as sarar. Porque a arte sara. É "curativa", disse-o Louise Bourgeois.

 

Conclusão

Ainda sobre a frase de João Castro Silva que sublinhámos no início — Porque não valorizamos, nós, a transitória materialidade física e sim a, pretensa, eterna espiitualidade? — Proponho pensarmos que é a "transitória materialidade física" que nos permite ter liberdade e autonomia para engendrarmos alguma "eterna espiritualidade", ou, com maior focagem sobre o que temos vindo a falar, podemos afirmar que é através das matérias de que é feita que a obra revela a sua substância, emancipando-se conceptualmente, daí a importância, quase deontológica, nas escolhas e diversas opções que o autor vai fazendo ao longo da sua realização, pois serão um fator de comunicação intrínseco, assumindo-se assim um compromisso de sustentabilidade conceptual e criativa.

 

Referências

Panofsky, Erwin (1989). O significado nas artes visuais. Lisboa: Presença.         [ Links ]

Potts, A. (2000). The Sculptural Imagination, Figurative, Modernist, Minimalist. Londres: Yale University Press.         [ Links ]

Silva, João Castro (1999). Homens Eternos Homens Efémeros (catálogo). Lisboa: Trema — Arte Contemporânea.         [ Links ]

Ventura, C. A. (2016). Apontamentos sobre a Escultura em Madeira. Possibilidades do Tronco e seus Elementos. Tese de Mestrado em Escultura. Lisboa: Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. http://www.repositorio.ul.pt/bitstream/10451/28550/2/ULFBA_TES_1001.pdf        [ Links ]

Zuzuki E., Tsukahara J. (1987). Age structure and regeneration of old growth. Cryptomeria japonica forests on Yakushima Island. Bot. Mag. Tokyo. 100(3):223-241.         [ Links ]

 

Enviado a 05 de janeiro de 2018 e aprovado a 17 de janeiro de 2018

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: doraivarita.contact@gmail.com (Dora-Iva Rita)

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