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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.24 Lisboa dez. 2018

 

EDITORIAL

EDITORIAL

Em torno de uma geografa do quotidiano: arte e emancipação

Towards a geography of everyday life: art and emancipation

 

João Paulo Queiroz*

*Portugal, par académico interno e editor da Revista Estúdio.

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes (CIEBA). Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058, Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Convivemos com a alienação há pouco tempo: ela é denunciada na sociedade industrial através da relação prioritária do homem com os objetos, e pela redução crescente da relação do homem consigo próprio, e com os seus semelhantes. O homem, mais rico, hoje, é no fundo muito mais pobre. Há uma função superior nos artistas, como estes o perceberam, pois estavam atentos há muito, e eram ágeis a apontar absurdos, ou em apresentar a cor verdadeira dos corpos humanos, na sua beleza e fraqueza profundas. Assim são os artistas apresentados neste número da Revista Estúdio.

Palavras chave: Alienação / infirmitati / Revista Estúdio / Indústria Cultural.

 

ABSTRACT:

We are living with alienation only a short time ago: it is denounced in the industrial society through the priority relation of man with objects, and by the increasing reduction of the relationship of man with himself and with his fellow men. The richest man today is in the end much poorer. There is a superior role for artists, as they perceived it, for they had long been attentive, and were quick to point out absurdities, or to present the true color of human bodies in their deep beauty and weakness. There is a superior role for artists, as they perceived it, for they had long been attentive, and were quick to point out absurdities, or to present the true color of human bodies in their deep beauty and weakness. So are the artists presented in this issue of Study Journal.

Keywords: Alienation / infirmitati / Estudio Journal / Cultural Industry.

 

1. Alerta: viver pode não ser nada de especial

A vida quotidiana encerra mistérios na soma das pequenas coisas, na soma das pequenas atitudes. Ninguém vive sem passar uma parte muito importante da sua vida fazendo tarefas sem nada de especial, ou habitando espaços quotidianos, caseiros, sem muito interesse. E, contudo, essas ações constituem a identidade profunda, a singularidade radica na banalidade. Na maior parte do tempo, os humanos têm pouco interesse, ocupados em repetir gestos e funções vitais.

O processo de banalização da existência começa a ganhar impulso com o domínio comercial e tecnológico: amortecer as dores, curar as doenças, diminuir os esforços, distrair de modo industrializado, consumir a vida em embalagens ou pacotes de consumo. Este processo chama-se alienação. A alienação pode descrever-se simplesmente como o afastamento de nós mesmos.

 

2. Atenção: realidade e 'infirmitati'

Convivemos com a alienação há pouco tempo: ela é denunciada na sociedade industrial através da relação prioritária do homem com os objetos, e pela redução crescente da relação do homem consigo próprio, e com os seus semelhantes. O homem, mais rico, hoje, é no fundo muito mais pobre. Esta perda é profunda eestá assente num esquecimento generalizado, numa distração festiva, colorida, mas tão absurda e inútil quanto um simples jogo vídeo. Arealidade cultural amoleceu e perdeu força dramática, adoeceu, sofre de "infirmitati" (Queiroz, 2016a; 2016b). Assim se apontem instâncias de auto-descolonização, de reflexão, de resistência, de libertação, de emancipação: a arte pode ser uma delas. Mas exige-se dos artistas um olhar mais atento, talvez hoje mais difícil, porque é mais fácil estar confortavelmente entorpecido. A arte deve permanecer no terreno, em incomodidade, em desacerto, em alavanca, em movimento: é hoje uma questão essencial de cidadania o lugar para a inquietação (Queiroz, 2017), ou se quisermos, a clareza de exigir uma independência funda que vença a casca fabricada pela indústria em que a cultura desembocou.

 

3. Aviso: estamos a ser fotografados

Há uma função superior dos artistas, como o perceberam os primeiros, atentos desde o início, ágeis em apontar absurdos, ou em apresentar a cor verdadeira dos corpos humanos, na sua beleza e fraqueza profundas.

Estes corpos são fracos e pedem algum verde nas carnações. Estes corpos anunciam os mortos dos absurdos bélicos, das complicadas guerras, com um prazo curto e uma fome constante. O assunto da arte é aquilo que somos, desde o banal ao excepcional.

Talvez nunca tenhamos feito tantas autorrepresentações como nos média modernos. E, no entanto, o esgotamento torna o espécime reduzido no seu valor, por uma inflação icónica generalizada.

 

4. As obras vistas de fora

Raquel Pelayo (Porto, Portugal), no artigo "Aurélia de Souza: o Feminismo ao Espelho," debruça-se sobre a artista portuguesa de início do século XX Aurélia de Sousa (1866-1922), e particularmente sobre um auto-retrato com um laço, relacionando-o com um posicionamento sobre a questão de género e da reivindicação desta mulher artista em meio muito adverso no seu tempo.

Em "Leire Muñoz: paisaje en proceso (work in progress)," de Ainhoa Akutain & Ana Arnaiz (Bilbau, Espanha) apresentam a exploração paisagística numa perspetiva atualizada de Leire Muñoz (n. 1983, Getxo-Bizkaia, Espanha). Através de reposicionamentos espaciais, com imagens e sons, enfatiza a processualidade da paisagem e a sua dependência da cultura na obra "Eco-Intervalo-Obstáculo-Resonancia-Reflexión" apresentada em 2017 na Galeria Carreras Mugica de Bilbau.

Daniel Wolff (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil) no artigo "A milonga gaúcha na gênese do Quinteto para violão e quarteto de cordas, de Fernando Mattos," aborda, na área da música, o uso da milonga, som tradicional gaúcho, como elemento original e gerador do Quinteto para violão e quarteto de cordas (2008), docompositorbrasileiro Fernando Mattos(n. 1963, Porto Alegre, Brasil). No artigo "Os registos tangíveis de Liene Bosquê," Susana Pires (Lisboa, Portugal), apresenta a obra da paulista Liene Bosquê (n. 1980, São Paulo, Brasil) com um foco nas instalações de janelas esfoladas pela descolagem superfícies moldadas em latex. As janelas são primeiro tapadas, para depois se arrancarem num processo entre o violento e o curativo destas aberturas das casas.

Daniela Cidade (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil), "Giordano Toldo e a viagem: estratégias da fotografia como marca da transformação do espaço urbano," aborda a proposta de Giordano Toldo (radicado em Rio Grande do Sul, Brasil) na série "Em busca de Elliot Erwitt," para reflectir plasticamente sobre o espaço urbano e a experiência com a cidade. Diz Toldo:

'Em busca de Elliot Erwitt' compõe fotos turísticas da cidade de Nova York. As fotografias de Erwitt me inspiraram a conhecer a cidade e em cada imagem há um pouco de mim e um pouco de Erwitt. Um reencontro permitido pelo olhar. (Toldo, 2015)

No artigo "Porque a toalha de mesa apareceu na pintura de Adriane Hernandez?" João Carlos Machado (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil) interroga as pinturas recentes da artista Adriane Hernandez (radicada em Rio Grande do Sul, Brasil) onde as imagens de plantas, folhas e pássaros são cruzadas por padrões em xadrez como os de toalhas de mesa. A metáfora da conexão que a mesa permite pode colocar-se a par com algum questionamento de género, em torno da domesticidade.

Em "Violencias sin violencias en la obra de Manuel Franquelo-Giner," Andrea Domínguez (Pontevedra, Espanha), apresenta a obra de Manuel Franquelo (n. Madrid, 1990) que nas suas séries fotográficas visita o tema do bio poder (Foucault, 2008), assim como nos objetos tridimensionais que amplificam carnes alimentícias processadas.

Hugo Moreira (Sumaré, São Paulo, Brasil), em "Wilton Azevedo: do gesto gráfico ao pixel," apresenta o designer Wilton Luiz de Azevedo (1958-2016, Brasil) e os seus video-poemas de influencia concretista.

Em "Jéssica Mangaba: 'no Álbum,' uma memória construída," Sandra Gonçalves (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil) introduz a série fotográfica "No Álbum II" de Jéssica Mangaba (n. 1988, São Paulo) que visita e ficciona as memórias de seu pai a partir de imagens pré-existentes refotografadas e fundidas com novas imagens, em busca de uma síntese mnésica.

Dora-Iva Rita (Lisboa, Portugal), em "A Matéria da Escultura em João Castro Silva," apresenta o trabalho do escultor João Castro Silva (n. 1966), sobretudo as suas peças em madeira. Escolhendo as madeiras rústicas de obras, as "madeiras de maré" trazidas pelas águas, ou as madeiras de uma espécie particular, a Criptoméria-japónica, são a matéria recondicionada onde é depois condensada uma nova espiritualidade.

O artigo "O que resta e o que se quebra na poética da perda e da destruição na casa labirinto de Raquel Andrade Ferreira," de Adriane Corrêa & Eduarda Gonçalves (Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil) debruça-se sobre a obra de Raquel Andrade Ferreira (radicada também em Rio Grande do Sul, Brasil) especificamente sobre uma performance, "Narrativas de uma destruição" de 2012, e uma instalação, de 2013 "era domingo e o almoço havia sido servido". A questão de género é revisitada através da destruição física de objetos da esfera decorativa doméstica ou das lides caseiras.

Cláudia Matos Pereira (Brasil, e Lisboa, Portugal) no artigo "A poética da matéria natural que se transmuta em organicidade: o olhar ecológico da artista Semea Kemil," introduz a obra da artista plástica Semea Kemil (n. Ewbanck da Câmara, Minas Gerais, Brasil). São estruturas arborescentes em paper clay que recordam a fragilidade da natureza.

O texto "'Entre Solaris e Nostalgias': fotografia e pintura nas obras de Jociele Lampert," de Andréa Brächer (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil) apresenta a recente série de trabalhos e monotipias de Jociele Lampert (n. Santa Maria, Rio Grande do Sul, 1977). Jociele atravessa as referências e convoca stillls cinematográficos de filmes de Andrei Tarkovski, como 'Solaris,' 'Andrei Roubliev' ou 'Nostalgia' recriando novas ficções e atribuindo aos materiais uma imobilidade pictural singular: como se o espectador assistisse do lado de trás do ecrã às imagens interditas.

Sofia Torres (Porto, Portugal), no artigo "O Uncanny na obra de Michaël Borremans," debruça-se sobre uma tendência expressiva que se caracteriza pela expressão climática angustiada, em que os corpos exibem uma solidão permanente e frágil, num desencantamento essencial, que pode recordar a obra de outros contemporâneos, como por exemplo Tiago Batista (Rocha, 2015), Marilice Corona (Brächer, 2015), ou também José Carlos Naranjo (Serrano León, 2016).

Em "Vozes Dissonantes: a abstração geométrica de Rose Lutzenberger," Paulo Gomes (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil) debruça-se sobre a escultora Rose Lutzenberger (n. Porto Alegre, RS, 1929) representada no acervo da Pinacoteca Barão de Santo Angelo, no Instituto das Artes da Universidade Federal de Rio Grande do Sul. A obra desta artista, da geração de Ilsa Monteiro e Joyce Schleiniger, tanto em escultura como em serigrafia, insere-se na máxima exploração formal da fase final do modernismo, convocando formas modulares geométricas e dinâmicas ao mesmo tempo que se acendem as cores, e o funcionalismo se aproxima dos limites do seu formulário abstratizante e otimista. Luisa Paraguai (Campinas, São Paulo, Brasil) no artigo "Sistema marginal: a coleção em Sara Ramo," aborda a obra desta artista espanhola, Sara Ramo (n. Madrid, 1975) mas crescendo entre Espanha e Brasil e hoje radicada em São Paulo. O seu trabalho, instalativo, baseia-se em grande parte na festividade e no deslocamento dos objetos quotidianos: há uma escultura colorida em todos os objetos que nos rodeiam, nas casas que habitamos, deveríamos talvez ser mais felizes.

 

5. Carta à NASA

Um dos últimos escritos do pintor português Miguel D'Alte (1954-2007) é uma carta à NASA. Um verdadeiro requerimento para sair da comunidade e da banalidade. Um pedido de resgate na forma de pequeno poema em prosa, aos "Exmos Senhores dirigentes da N.A.S.A.": "Levem-me à Lua para que se torne real a primeira obra de arte feita no nosso querido satélite."

Em linhas gerais poder-vos-ei desde já deixar uma ideia do conteúdo da obra do a realizar: será um trabalho muito sintético que represente os valores que julgo fundamentais — Amor, solidariedade, e fraternidade entre os seres humanos.

Tenho já alguns estudos feitos e caso aceitem a minha proposta deslocar-me-ei aos E.U.A. a fim de falar mais pormenorizadamente convosco e apresentar uma maqueta do projecto. (Miguel D'Alte apud Pereira, 2018)

Esta carta deste grande e malogrado pintor transporta a solidão essencial, um segredo e um desejo. O desejo diz-se depressa e sabe-se que é impossível. E a maqueta do projeto não é novidade: é feita sem cessar, aqui na Terra, pelos mais atentos, os mais insatisfeitos, pelos mais resistentes, inquietos, pelos artistas enfim. É a arte afinal um assunto a que a NASA tem dificuldade em responder.

 

Referências

Toldo, Giordano (2015) "About." In Giordano Toldo. Página oficial. URL: http://giordanotoldo.format.com/about        [ Links ]

Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica: Curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Rocha, Susana de Noronha Vasconcelos Teixeira da. (2015). Tiago Baptista: as falhas que nos prendem ao chão. Revista :Estúdio, 6(11), 165-174. Recuperado em 10 de abril de 2018, de http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1647-61582015000100017&lng=pt&tlng=pt.         [ Links ]

Brächer, Andréa. (2015). Ensaio: Fotografia e Pintura nos trabalhos de Marilice Corona. Revista :Estúdio, 6(11), 175-181. Recuperado em 10 de abril de 2018, de http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1647-61582015000100018&lng=pt&tlng=pt .         [ Links ]

Pereira, Helena Mendes (Org.) (2018) Miguel D'Alte: palavras escritas à Lua. Astronauta Associação Cultural. ISBN: 978-989-20-8369-8        [ Links ]

Queiroz. João Paulo (2016a) "Educação artística, casos e realidades: 'infirmitati,' ou a fraqueza analógica". In Novos Lugares para a Educação Artística. Lisboa: Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa & Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes. pp. 379-86. ISBN: 978-989-8771-44-5. URL: https://drive.google.com/open?id=131F9ZBSZr4VotjfN MIaT4iNeOuEigK2s        [ Links ]

Queiroz, João Paulo (2016b) "Educação artística e a 'infirmitati,' ou a fraqueza analógica." Revista Matéria-Prima. ISSN 2182-9756, e-ISSN 2182-9829. Vol. 4 (2) maio-agosto: 12-17.         [ Links ]

Queiroz, João Paulo (2017) "Cidadania e arte, uma questão de revolução." Revista Croma. ISSN: 2182-8547, e-ISSN 2182-8717. Vol. 5 (10) pp. 12-7.         [ Links ]

Serrano León, David. (2016). Obsesión y oscuridad en la obra de José Carlos Naranjo. Revista :Estúdio, 7(13), 155-165. Recuperado em 10 de abril de 2018, de http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1647-61582016000100017&lng=pt&tlng=es.         [ Links ]

 

 

Enviado a 11 de março de 2018 e aprovado a 16 de março de 2018

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: j.queiroz@belasartes.ulisboa.pt (João Paulo Queiroz)

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