SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.9 número23O inconsciente em Fercho Marquéz: reflexões sobre o estado nascente da escultura índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.23 Lisboa set. 2018

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Histórias fora da ordem: agenciamentos entre Livia Flores e Clóvis Aparecido dos Santos

Stories out of order: Agency between Livia Flores and Clóvis Aparecido dos Santo

 

Beatriz Pimenta Velloso* & Raylton Zaranza**

*Brasil, Artista visual e professora universitária.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Escola de Belas Artes, Departamento de Artes visuais — Escultura (BAE). Av. Pedro Calmon, 550, Cidade Universitária, Cep 21941-901, Rio de Janeiro — RJ, Brasil.

**Brasil, artista visual e estudante de graduação.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Escola de Belas Artes, Departamento de Artes Visuais — Escultura (BAE). Av. Pedro Calmon, 550, Cidade Universitária, Cep 21941-901, Rio de Janeiro — RJ, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

A partir do conceito de agenciamento formulado por Deleuze e Guattari, e conceitos de Foucault explicitados no contexto da arqueologia do saber, este texto analisa os sentidos gerados pelas obras de Clóvis Aparecido dos Santos (artista que trabalha no atelier do Museu Bispo do Rosário) quando foram instalados por Livia Flores (artista-pesquisadora e professora da UFRJ) na Galeria do Espaço Cultural Sergio Porto, na 26a Bienal de São Paulo e no Museu Histórico Nacional.

Palavras chave: arte e loucura / agenciamento / critica das narrativas.

 

ABSTRACT:

From the concept of agency drawn by Deleuze and Guattari, and concepts from Foucault's archeology of knowledge, this text analyzes the meanings from the works of Clóvis Aparecido dos Santos (artist working at Museu Bispo do Rosário atelier) when installed by Livia Flores (artist-researcher and professor of UFRJ) at Espaço Cultural Sergio Porto, the 26th Bienal de São Paulo and at the National Historical Museum.

Keywords: art and madness / agency / criticism of narratives.

 

Livia Flores (1959) — artista visual, pesquisadora e professora universitária —, atua em interstícios institucionais e se dedica a investigar questões referentes ao cinema expandido. A partir do conceito de "cinema sem filme", ela transporta objetos captados as margens da cidade para instituições. "Em vez de o filme deslocar o mundo — a cidade — para dentro da galeria, são os objetos e artistas encontrados em suas franjas" que se evidenciam, devolvendo o cinema ao mundo. Vendo sua "imagem de artista espelhar-se no limiar" entre o visível e o não visível, nos reflexos de um espelho que carrega junto ao seu corpo, questiona-se "sobre a relação entre o periférico e a formação de imagem". (Flores, 2007:35). As experiências contidas nos trabalhos de Livia indicam que "vivemos um estado de ser cinemático", capaz de materializar todos os nossos sonhos e desejos, portanto, antes de vermos o mundo real já o imaginamos a partir de projeções e telas radiantes, deste modo, para escapar à luz dos clichês e suas infinitas repetições é preciso operarmos dobras que nos dão acesso as áreas de invisibilidade (Flores, 2012:13).

Clóvis (1960) gosta de andar, coletar, colecionar e combinar objetos que encontra pelo mundo, "diz que quando caminha não pensa em nada, apenas compõe e canta músicas", assim veio de Avaré, uma cidade do interior do Estado de São Paulo, caminhando à beira de estradas e rodovias até chegar a cidade do Rio de Janeiro (Resende, 2015:1). Livia conheceu Clóvis na Fazenda Modelo, uma instituição que recolhia a população das ruas do Rio e a alojava em zonas afastadas da cidade.

O primeiro agenciamento entre os dois artistas ocorreu através de trabalhos produzidos por Clóvis na Fazenda Modelo, deslocados por Livia para a Galeria do Espaço Cultural Sergio Porto, no Rio de Janeiro, um cubo branco de paredes vazias que levava o espectador a se aproximar dos objetos posicionados ao centro (Figura 1 e Figura 2). Para chegar a estes o visitante tinha que atravessar o chão da galeria, coberto por tacos soltos, que faziam barulho e se desordenavam na medida em que eram pisados (esta foi uma potente contextualização de Livia para instalar o lustre e a casa de Clóvis). Na época, o piso de granito instalado no Espaço por uma reforma da Prefeitura não agradou à direção nem aos artistas que frequentavam a galeria, os tacos de madeira que o cobriam, agrupados em diferentes formas, ironicamente, foram apreciados em seu conjunto ordenado, mas rejeitados por suas unidades, sempre na iminência de soltar e desencadear um acidente. A redundância das linhas que se formam entre um taco e outro — no contexto do Concretismo definidas como linha orgânica em conceito formulado por Lygia Clark (1954) — é similar à organização de moléculas enquanto constituem uma determinada substância.

 

 

 

 

Deleuze e Guattari (2011) concebem uma metáfora que explica as associações que constantemente se criam entre o ser e as coisas do mundo, explicando "a ontologia como geologia: ao invés do ser, a terra, com seus estratos físico-químicos, orgânicos, antropomórficos," com suas camadas estratificadas, em processo de composição ou decomposição. O professor Challenger, personagem de histórias de ficção científica, diz que no início "a Terra era um corpo atravessado por matérias instáveis não formadas", para a frustação de uns e a felicidade de outros, enquanto tudo parecia ser mutação e novidade produzia-se no mundo um fenômeno de estratificação das matérias instáveis, que aprisionava "intensidades livres ou singularidades nômades" em sistemas de ressonância e redundância. Os estratos formavam camadas que operavam por "codificação e territorialização", mas a terra, ou o "corpo sem órgãos" (um corpo sobre o qual o que serve de órgãos se distribui segundo movimentos gerados por multiplicidades), "não parava de se esquivar ao juízo, de fugir e se desestratificar, se descodificar, se desterritorializar". As camadas estratificadas grupavam-se, no mínimo, aos pares, uma servindo de substrato à outra. A superfície de estratificação entre uma e outra camada era um "agenciamento maquínico", o qual não se confundia com as camadas, e por ser mais denso, ficava entre elas, tendo uma face voltada para os seus estratos e outra face voltada para o corpo sem órgãos (Deleuze & Guatarri, 2011: 56, 70, 71).

A partir desse mecanismo abstrato é possível imaginarmos a potência do agenciamento entre Clóvis, que tem o acaso e a coleta de coisas encontradas no mundo como princípio de sua arte, e Livia, que questiona em suas instalações o funcionamento das camadas estratificadas das instituições de arte. Em Puzzlepólis II, instalação realizada na 26a Bienal de São Paulo, o cruzamento de imaginários dos artistas e do campo da arte torna-se mais nítido, não são apenas dois objetos em uma galeria, mas uma multiplicidade deles simulando uma cidade pulsante e com luz própria (Figura 3). Cidade esta que se desloca em sintonia com os movimentos do espectador, na medida em que suas luzes são refletidas nas vidraças do prédio da Bienal, cobertas, por Livia, de vinil preto transparente, tendo os reflexos do dia confundidos com a paisagem externa, e de noite se assemelhando a uma cidade real (Figura 4). Vista através de reflexos a heterogeneidade desta cidade se estratifica, oculta a relação de descontinuidade que existe na combinação de objetos que dispensa critérios de escala, técnica ou função. Objetos híbridos que assentados sobre rodas ou sustentados por improváveis colunas, permanecem flutuando em meio a mercadorias de alto valor simbólico.

 

 

 

 

Igualmente notável é a produção de Clóvis instalada por ele mesmo em seu espaço de trabalho na Fazenda Modelo, ali os mesmos objetos pendurados na trama do telhado resgatam a paisagem da cidade que, furtivamente, o convidou a se retirar (Figura 5). A casa da Fazenda que se transfere para o alto de um prédio parece ser o começo de São Paulo, do Rio de Janeiro, de todas as cidades do mundo. Clóvis, como filho mais velho, ainda bem jovem, ouviu de sua mãe "se não tinha condições de ajudar na manutenção da família, deveria então procurar o próprio sustento" (Resende, 2015:1). Assim ele saiu de Avaré, uma pequena cidade formada pela economia agrícola e pecuarista, hoje uma estância turística conhecida como "capital nacional do cavalo", que anima sua agenda com dois grandes eventos anuais, a Exposição de Agropecuária e a Feira de Música Popular Brasileira.

 

 

Livia, que já problematizava a questão da identidade nas megalópoles, especialmente no trabalho Lambe, de 2002 — no qual prédios administrativos da cidade, fotografados à noite, foram impressos em formato 3X4 fazendo referência a triagem operada nas recepções, quando solicitam a quem entra o número de identidade e o arquivam junto a uma foto registro neste mesmo formato — ao ver a cidade de Clóvis se identifica e constata que ela também é de sua responsabilidade (Figura 6). Pensando nas condições de desigualdade em que foi constituída a sociedade brasileira, em 2007 a artista faz uma intervenção dentro de uma vitrine do Museu Imperial, na cidade de Petrópolis, RJ, instalando uma pilha de cobertores baratos (normalmente usados por moradores de rua em tempo frio), junto aos pertences da Princesa Isabel (filha de D. Pedro II, que assinou a Lei Áurea, em 1888, libertando tardiamente os escravos no Brasil) e as ferragens que atavam mãos e pés de escravos. (Figura 7).

 

 

 

 

Em 2015, Clóvis realiza sua primeira exposição individual em São Paulo, na Galeria Estação, um espaço dedicado a revelar a arte brasileira não erudita, que deseja incluí-la como linguagem no circuito artístico contemporâneo. As pinturas exibidas nessa exposição sugerem fragmentos vistos ou coletados nas estradas, que desde cedo fascinaram o artista (Figura 8). Clóvis somente deseja experimentar o mundo, para isso tem a rodovia e os veículos que nela transitam, "um corpo sem órgãos", que ignora a negação e a privação. Nas linhas e planos traçados pelo seu pincel, carros, plantas, animais e homens não se deixam reduzir, e nas formações do inconsciente se associam, mudam de natureza e formam uma multiplicidade, que se modifica "segundo outras distancias, conforme outras velocidades e com outras multiplicidades, nos limites de limiares". (Deleuze & Guattari, 2011:56-7, 59).

 

 

O segundo agenciamento entre os artistas ocorreu em 2016, quando Clovis já trabalhava no Atelier Gaia, espaço vinculado ao Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, que funciona dentro da Colônia Juliano Moreira, uma instituição municipal que oferece assistência à saúde mental, localizada na Zona Oeste do Rio de Janeiro. A Colônia que antes mantinha seus pacientes em regime interno, isolados do resto do mundo, hoje oferece assistência e atividades durante o dia, deixando-os sair ou voltar para casa quando quiserem. Clóvis tem na colônia um porto seguro, costuma sair sem destino pela Linha Amarela e desaparece por tempo indeterminado, mas sempre retorna ao atelier. Em 2017, no último encontro entre os artistas, Livia dirigiu e produziu um vídeo que foi deslocado do Atelier Gaia, no Museu Bispo do Rosário para a Galeria do Império, do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro (MHN), para dentro da exposição Histórias fora da ordem(da qual participei e realizei a curadoria em parceria com o artista-pesquisador Luciano Vinhosa), onde Clóvis aparece, cantando. No MHN, a Galeria do Império abriga uma exposição permanente de peças referentes ao período em que a família real portuguesa se estabelece no Brasil, entre 1822 e 1889. Temas de destaque nesse período são a economia baseada na mão-de-obra escrava, a Guerra do Paraguai, a Princesa Isabel, a abolição da escravidão e a Proclamação da República. Como no Museu Imperial de Petrópolis, a presença dos escravos no MHN se restringe a algemas e instrumentos de castigo, salvo raras exceções como soldados negros sem identidade, vistos ao longe em pinturas de batalhas da Guerra do Paraguai. No vídeo produzido por Livia vemos Clóvis no Ateliê Gaia cantando uma música de sua autoria, que traz tanto um imaginário infantil quanto a de um trabalhador rural e seus patrões, ressoando vozes fantasmas de um passado sem representação (Figura 9).

 

 

Andando à margem de viadutos e grandes rodovias, frequentemente Clóvis é visto atravessando lentamente paisagens entrecortadas por veículos velozes. Assim lhe vêm as imagens que canta em sua voz monocórdia:

olhei pro leste, olhei pr'oeste… eu vi a boiada que ia chegando… cheguei na sede da fazenda, o gado estava em frente ao curral… e o cavalo comendo aquelas graminhas verde ao redor do escritório… eu vi o menino tocando violão e ao seu redor cheio de carneirinho… por isso meu querido filho ouça sempre o conselho de sua mamãe e do seu papai, pra mais tarde você não se arrepender… O tempo estava de chuva relampiava muito forte… mas eu era empregado tinha que trabalhar… arriei o meu cavalo e peguei uma estrada muito velha aonde existia uma bandeira muito antiga… eu fui obrigado a descer do cavalo e me esconder debaixo daquela bandeira… onde existiam aquelas abelhas que não podiam sentir o cheiro do sangue…

No Museu Histórico Nacional o monitor instalado abaixo dos retratos de famílias da aristocracia do café, a voz de Clóvis invade o espaço da Galeria do Império, atravessa móveis, porcelanas, livros, armas e bustos de mármore, reverberando nos instrumentos de castigo da senzala (Figura 10).

 

 

Foucault, em suas analises sobre as modernas instituições de confinamento — "o hospício, a clinica e a prisão, e suas respectivas estruturas discursivas — loucura, doença e criminalidade", já pressupunha "uma outra instituição similar à espera de uma análise arqueológica — o museu –, e sua fiel disciplina — a história" (CRIMP, 2015: 45). Se Foucault (2008) propõe repensarmos o museu e a história, através de suas descontinuidades, rupturas, limiares, limites e transformações, Deleuze e Guattari com suas metáforas nos fazem imaginar através de uma história de ficção científica, que a violência é inerente ao nosso devir de transformação desde o início da formação do espaço terrestre. Na disparada da contemporaneidade para atender a acelerada necessidade de transformação, parece ser importante tarefa do artista desterritorializar, descodificar, desconstruir a ordem do nosso conhecimento preservado, isolado, dentro de nossas instituições.

 

Referências

Clark, Lygia (1954) "Descoberta da linha orgânica." Disponível em URL http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=6        [ Links ]

Crimp, Douglas (2015) "Sobre as ruínas do museu" São Paulo: Martins Fontes. ISBN: 978-85-806-3233-0        [ Links ]

Deleuze, Gilles & Guattari, Félix (2011) "Mil Platôs." Rio de Janeiro: Editora 34. ISBN: 978-85-85490-49-2, Vol.1. 2a Edição.         [ Links ]

Foucault, Michel (2008) Arqueologia do Saber.Rio de Janeiro: Forense Universitária, ISBN: 978-85-218-0344-7        [ Links ]

Foucault, Michel (2013) Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, ISBN: 978-85-326-0508-5        [ Links ]

Flores, Livia (2012) "ARTE BRA Vol. 5.", Rio de Janeiro: Automática, ISBN: 978-85-64919-05-1. Disponível em URL http://www.automatica.art.br/livros/artebra_liviaflores2.pdf        [ Links ]

Flores, Livia (2007). "Como fazer cinema sem filme." Revista Arte e Ensaios n.15. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ, ISBN: 1516-1692. Disponível em URL http://www.ppgav.eba.ufrj.br/wp-content/uploads/2012/01/ae15_-Livia_Flores.pdf        [ Links ]

Resende, Ricardo (2015) "Biografia" [Texto do catálogo da exposição de Clovis Aparecido dos Santos], São Paulo: Galeria Estação. Disponível em URL http://www.galeriaestacao.com.br/artista/91        [ Links ]

 

 

Enviado a 04 de janeiro de 2018 e aprovado a 17 de janeiro de 2018

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: biapimentav@gmail.com (Beatriz Pimenta Velloso)

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons