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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.23 Lisboa set. 2018

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

O inconsciente em Fercho Marquéz: reflexões sobre o estado nascente da escultura

The unconscious in Fercho Marquéz: reflections on the nascent state of sculpture

 

Daniela Mendes Cidade*

*Brasil, artista visual.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Faculdade de Arquitetura (FA), Departamento de Arquitetura. Rua Sarmento Leite 320 CEP 90050-170, Porto Alegre, RS, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Este artigo analisa o trabalho do artista brasileiro Fercho Marquéz (1982), mais especificamente as instalações e esculturas onde ele trata de questões relativas à instauração da escultura, como contenção, molde e resistência. Pretende-se fazer uma metáfora de sua poética com questões políticas: a imposição à sujeição, o manuseio e a morte simbólica. O objetivo é enaltecer aquilo que escapa, se rebela, se subleva e se insurge neste processo de contenções da obra em se fazendo.

Palavras chave: Escultura / contenção / resistência / sujeição / política.

 

ABSTRACT:

This article analyzes the work of the Brazilian artist Fercho Marquéz (1982), more specifically the installations and sculptures where he deals with questions related to the instauration of sculpture, such as containment, mold and resistance. It is intended to make a metaphor of his poetics with political issues: the imposition of subjection, manipulation and symbolic death. The objective is to exalt what escapes, rebels, revolts and insists in this process of contention of the work in doing.

Keywords: Sculpture / restraint / resistance / subjection / politics.

 

Introdução

Artistas trabalham constantemente com temas ligados à instauração da obra, mas não é com a mesma frequência que tratam de metáforas subjacentes ao processo, como as questões políticas que podem ser associadas aos momentos da criação. Fercho Marques, jovem artista brasileiro que cursa o mestrado em Artes Visuais do programa de pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mostra em sua produção plástica e teórica esta preocupação. Uma série de trabalhos desenvolvida por ele apresenta determinados elementos, como produção de moldes com lacunas, acesso a lugares improváveis e transitoriedade dos materiais. O objetivo é o de realizar uma reflexão, através de metodologia dialética, sobre o inconsciente, e o paradoxo da sujeição e da resistência na obra em se fazendo. Trazendo exemplos de autores como Marie-José Mondzain (2017) Murielle Gagnebin e Christine Chavinel (2007), passando por autores e artistas contemporâneos como Gordon Matta-Clark e Robert Smithson, procurar-se-á também falar sobre os dilemas atuais e desafios da arte, a partir daquilo que se recusa ao controle do artista, mostrando-se reativo a toda a forma de submissão. A ultrapassagem dos limites impostos pelas formas da escultura, onde algo escapa para trazer a surpresa e, talvez, o fracasso, é o mote da conclusão. O texto passa pelas articulações entre contenção, fracasso e criação baseado no mito grego de Sísifo (Camus, 2008), fracasso quando ele inclui o contrário, esperança e superação em arte, e os hiatos abertos entre intenção e realização da obra.

 

1. As tentativas de imposição e o inconsciente rebelde

Para uma exposição intitulada À imortalidade da espera, realizada na Galeria do Centro Cultural da Santa Casa, em 2017 em Porto Alegre, Marquéz se refere a projetos e trabalhos escultóricos onde a morte se coloca como contexto poético e político, e que enaltecem o conteúdo que escapa, e que produz uma zona de frustração, um espaço fugidio e instável. Ele classifica os projetos como desenhos-aparições: "São previsões de morte, previsão de velório, previsão de paisagens mortas" (Marquez, 2017:13). Estes projetos são enviados a um marceneiro, o qual executa os moldes em madeira, caixas e caixões que posteriormente irão tentar reter o líquido quente da parafina. O artista faz uma comparação deste ato com "o escamoteamento da morte nas sociedades contemporâneas" (Marquez, 2017:17). Em seu discurso, ele se refere a tentativa de aprisionamento do espaço e à reação daquilo que não quer se submeter ou aparecer. A glicerina é o material condutor que convida o espectador ao que ele denomina de tempo de morte. No momento em que foi vertida ou disposta nas concavidades da obra, a glicerina passa a ser o material condutor:

sem forma, a glicerina líquida logo se exime daquele com quem tem o encontro, e parte em descida. Vai gordurosamente, pelo interior, penetrando o aquem-madeira, aderindo ao fundo das concavidades e, finalmente, escapa, vazando por entre as paredes (Marquez, 2017:19).

Trata-se de uma insubmissão do material, metáfora da sublevação, demonstrando a potência visual dos corpos que resistem à opressão. Poderia haver aqui uma equivalência visual e conceitual, enaltecendo e restituindo a dimensão sensível e, portanto, estética e política do trabalho? Um desejo que escapa rasgando a fronteira, e se opõe à tentativa de um aprisionamento.

Podemos aqui fazer uma analogia ao inconsciente. Como liquidar os conteúdos da memória, onde algo que foi ex-sabido, esquecido, continua em uma camada latente de cera quente, e pode escapar a qualquer momento entre frestas? Referimo-nos aqui a uma teoria fundamental da psicanálise. Valéry já lembrara a poética do esquecimento de Mallarmé, em um poema denominado Le Rameur (O Remador). O poeta assume o papel do remador que rema contra uma corrente poderosa (Valéry, 1987). As fronteiras entre o lembrar e o esquecer se estreitam. Valéry lembra de um "esquecimento positivo" (Valéry, 1987), um esquecimento curativo onde os conteúdos inúteis da memória são "rejeitados" para a reconstituição da capacidade criadora. Criar através daquilo que escapa, e que normalmente é esquecido. O esquecimento pode ser visto como um abandono à futilidade da vida, e à maneira que nos tentar impor as coisas, para poder atingir algo espiritualmente maior, superior. Weinrich (2001) lembra que o esquecimento está sempre mergulhado no elemento líquido das águas, onde "contornos duros da lembrança e da realidade são liquidados" (Weinrich, 2001:114).

Uma das questões mais enigmáticas nos trabalhos de Marquéz é o pensamento constante de morte, algo que está em uma zona inconsciente, representada pelo interior dessas caixas-pretas que tentam aprisionar, estocar. São zonas sombrias, profundas. Podemos fazer aqui uma analogia à iconocracia dos dias atuais, onde vivemos em um mundo submisso às imagens e ao olhar. Podemos lembrar aqui todas as tentativas de imposição e interdições à exposições de arte contemporânea, como as acontecidas recentemente em Porto Alegre, Brasil, com a proibição da visitação e o fechamento da exposição Queermuseu, no Centro Cultural Santander, em 2017. Marie-José Mondzain (2017) ressalta que a era atual, pós-industrial, é marcada por um período de saturação do espaço público a serviço do poder econômico, provocando uma crise de vitalidade e imaginação, pelas amarras que nos são impostas pelo poder constituído. Segundo a autora, estas contenções provocam uma crise na liberdade do olhar e das relações, fazendo com que desaprendemos a ver e a imaginar livremente.

Para ela, a liberdade do olhar é algo ligada ao desejo, e desejar ver é aceitar uma abertura ao inconsciente, assim como a como todas as nossas insatisfações e interdições, transbordando-as.

 

2. O recalcitrante

Murielle Gagnebin (2007) em L'image Recalcitrante nos lembra os sinônimos e significados do adjetivo, que podem ser associado ao paradoxal trabalho de Marquéz: a resistência, teimosia, obstinência, desobediência, voluntariedade, insubordinação, insistência, perseverança, renitência, casmurrice, persistência. Assim como algo que encontra-se na condição de aferrado, refratário, afincado, acirrado, cabeçudo, relutante, pertinaz, enfim, alguém ou algo que não se deixa enquadrar. Marquéz afirma que seu trabalho é um questionamento sobre a forma, ou o caixão: "Ataco, pois, a permanência, a constância, a imutabilidade dos materiais, buscando o não acabado, o que escapa" (Marquéz, 2017:28).

Geometricamente concebidas, suas formas e moldes são feitos de madeira que tem suas partes encaixadas e parafusadas umas às outras. Mas a glicerina líquida é um material recalcitrante, que ocupa o espaço mas se camufla ocupando as pequenas frestas. Para Marquéz, a pele da escultura é uma espécie de passageiro clandestino, que se incrusta nos veios da madeira, impondo através dos poros a sua rebeldia. Ele cita Georges Didi-Hubermann (1997), e adota a referência artística do escultor italiano Giuseppe Penone, e seu Libro di cera, de 1969, onde foram encadernados duas placas de cera prensadas entre si, com pavios, durante 1 minuto e 20 segundos. Este tempo, que também está presente no título da obra, é o tempo que o fogo vai derreter e desfazer a forma. Trata-se de um processo semelhante ao realizado pelo americano Gordon Matta-Clark também de 1969, intitulado Photo-fry, que fala da obra em processo, de sua poiética, do laboratório, do trabalho em atelier. E implica em pensar este texto como um processo, como instauração, um esforço para conectar fragmentos, fazendo um paralelo com o trabalho de collage. E ao mesmo tempo relaciona-se com a conjugação do fenômeno arquitetônico e urbanístico, a construção de espaços, de lugares, e sua destruição, sua fragmentação, enfim, sua insubordinação e recalcitrância.

Robert Smithson publicou muitos textos críticos sobre o processo de diferentes artistas e sobre o seu próprio trabalho, em reflexões que abrangem a entropia, os mapas e os paradoxos (as oposições, como a relação negativo/positivo). Sua atividade artística é toda marcada por essas oposições entre natureza/cultura, espaço/tempo, monumentos/antimonumentos, lugar/não lugar, deslocamentos/limites. A isubordinação dos elementos naturais, as tentativas de exceder os limites, aparecem na utilização pelo artista dos mais diferentes meios e categorias, sem distinção ou hierarquias entre a produção de objetos individuais, earthworks, nonsites, desenhos, mapas e fotografias, filme e escrita. Seus nonsites, nos quais se estabelece uma dialética entre o trabalho externo e o interno às galerias e museus, marcam o envolvimento de Smithson com a land art, da qual se torna um dos principais artistas e teóricos. Seu trabalho mais conhecido, Spiral Jetty (1970) tem como referência a arte pré-colombiana.

Em seus escritos, organizados por Jack Flam (1997), Smithson fala em conceitos como des-arquitetura (um negativo da arquitetura, um sentimento que acompanha o artista antes que ele defina seus limites fora do atelier, uma espécie de insubordinação à arquitetura, um levante), fragmentação e tempo. O próprio conceito de entropia tem a ver com o tempo como duração, onde a dimensão temporal é entendida como irreversível, correspondente a uma progressiva fragmentação e insubordinação da forma.

As formulações e as idéias de Smithson sobre a entropia aparecem em muitos dos trabalhos iniciais de Matta-Clark, como a Foto-fry, um pequeno projeto fotográfico de 1969, além de outros 8 projetos que envolvem o cozimento de materiais. Trata-se de uma relação com a alquimia, e com a transmutação de metais em ouro. Curiosamente, Matta-Clark usa fragmentos de emulsões de fotografias pollaroid cozidas — no caso específico de Foto-fry uma foto de uma árvore de natal, que se transformaria em folhas de ouro. A resistência, teimosia, obstinência, desobediência, voluntariedade, insubordinação, insistência, perseverança, renitência, persistência, são conceitos que aparecem neste trabalho.

 

3. A paisagem-cemitério

Gostaria de me deter aqui em uma obra de Marquéz, denominado Anexogoiabeira: cova sem identificação (Figura 1), de 2017, e suas relações com a morte, as tentativas de limitação cerceamento e aprisionamento, a insubordinação e desobediência e o esquecimento.

 

 

Trata-se de uma instalação em uma área abandonada, um pequeno jardim ou pátio junto à sala de formas de escultura, do Instituto de Artes da UFRGS, prédio construído no início da década de 1940 (Figura 2). O acesso ao lugar é difícil, pois de um lado está o antigo de pedra. Nele, marcando uma resistência, como uma erva-daninha, nasceu uma goiabeira, cujas raízes penetram obstinadamente entre as pedras do muro.

 

 

Do lado oposto, a área faz limite com o Auditório Tasso Correa, do Instituto de Artes. Trata-se de um fosso, um espaço de sobra de terreno. Ali, Marquéz interveio, posicionando uma série de placas finas de glicerina (Figura 3), que dialogam com a dispersão e o abandono do lugar A ideia do artista foi a de deixá-las dispersas, para que os movimentos do vento, da chuva e da intempérie, além das folhas da goiabeira, se depositassem "como decantação das dinâmicas daquele espaço, filtros que capturavam estas dinâmicas" (Marquéz, 2017:115). O artista fala deste território de possibilidades, situadas nestes escombros, do esquecimento do lugar que não tem registro nas plantas arquitetônicas da construção, e da sua potente insubordinação: "Pois não é que nesta pele-muro nasce, frondosa, a goiabeira branca? Começou na parte de cima, e desceu, com suas raízes desafiando a gravidade" (Marquéz, 2017:116).

 

 

 

Conclusão

Os hiatos abertos entre as lacunas de intenção e realização da obra de Fercho Marquéz nos servem para refletir sobre o inconsciente, que nos constitui e nos é interditado. Como na obra Reality Properties:Fake States, de Matta-Clark, onde o artista adquiriu pequenas parcelas de terrenos, sobras sem acesso possível, a aproximação com o inconsciente é inevitável.

Do ponto de vista descritivo, aquilo que é "inconsciente" se opõe à tudo aquilo que é considerado "consciente", assim como a diferença que existe entre o desconhecido e o conhecido. Do ponto de vista psicológico, o sistema inconsciente é regido por regras particulares: ele não possui índice de tempo, e seus conteúdos são caracterizados pela livre circulação de cargas afetivas que o são associadas. É neste ponto de vista que se pode fazer uma comparação do inconsciente com a insubmissão, insubordinação e resistência da obra de arte: ela se forma quando escapa do controle, quando se insurge e se rebela, apesar da possibilidade de fracasso, em busca da liberdade.

 

Referências

Camus, Albert (2008) O mito de Síssifo. São Paulo: Ediouro. ISBN 9456070106670.         [ Links ]

Didi-Hubermann, Georges (1997) L'empreite. Paris: Centre Georges Pompidou. ISBN: 9782749234458.         [ Links ]

Flam, Jack (1997) Robert Smithson. New York: Documents of the twenty century. ISBN: 97805220203853.         [ Links ]

Gagnebin, Murielle e Savinel, Christine (2007) L'Image récalcitrante. Paris: Nouveau Sorbonne. ISBN: 87854-227-4.         [ Links ]

Marquéz, Fercho (2017) Matéria, madeira, molde. Prova de qualificação de mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Orientador: Maria Ivone dos Santos.         [ Links ]

Mondzain, Marie-José (2017) "Para os que estão no mar…" In: Didi-Hubermann, Georges (Org) Levantes. São Paulo: SESC.:48-62.ISBN: 978-85-9493-058-3.         [ Links ]

Valéry, Paul (1987) Oeuvres-Mémoire. Paris: Gallimard. ISBN: 9782070105779.         [ Links ]

Weinrich, Harald (2001) Lete: Arte e crítica do esquecimento. São Paulo: Civilização Brasileira. ISBN: 9788520005422.         [ Links ]

 

 

Enviado a 31 de dezembro de 2017 e aprovado a 17 de janeiro de 2018

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: daniela.cidade@ufrgs.br (Daniela Mendes Cidade)

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