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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.23 Lisboa set. 2018

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Encobrimentos e (des) rostificações nos autorretratos de Nino Cais

Cover-ups and (de)facializations in Nino Cais self-portraits

 

Karine Gomes Perez Vieira*

*Brasil, artista visual.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal de Santa Maria; Centro de Artes e Letras; Departamento de Artes Visuais. Av. Roraima, nº 1000. Cidade Universitária, CAL — Prédio 40, sala 1235., Bairro: Camobi, CEP: 97105-900, Santa Maria — RS, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Este texto versa sobre fotografias de Nino Cais (São Paulo-BR, 1969), nas quais se autorretrata encoberto de objetos banais do cotidiano doméstico, ocultando o rosto. Esses autorretratos são analisados com base no conceito de (des)rostificação: ação de desrostificar e voltar a rostificar a imagem, tendo como base Deleuze & Guatarri (2012). A partir da tentativa de desrostificar o autorretrato, Cais alcança outros sentidos no trabalho, mediante união de componentes díspares, que desassossegam o nosso olhar.

Palavras chave: (des)rostificações / encobrimentos / Nino Cais.

 

ABSTRACT:

This text is about Nino Cais photographs (São Paulo-BR, 1969), in which he photographs himself covered with everyday household objects, hiding the face. These self-portraits are analyzed based on the concept of (de)facializations: action of to defacialize and re-facialize the images, based on Deleuze & Guatarri (2012). From the attempt to defacialize the self-portrait, Cais achieve other senses in his work, through a union of disparate components, that restless our eyes.

Keywords: (de)facializations / cover-ups / Nino Cais.

 

Introdução

Este texto versa sobre a obra fotográfica do artista brasileiro Nino Cais (São Paulo-BR, 1969). Graduado em Artes Plásticas, na Faculdade Santa Marcelina (FASM), o artista foi premiado e expôs em variadas instituições, destacando-se a 30º Bienal de São Paulo (2012): Brasil e a polêmica "Queermuseu: Cartografias da Diferença" (censurada em 2017), no Santander Cultural, em Porto Alegre: Brasil.

As fotografias de Cais, em questão, são aquelas que ele se autorretrata encoberto de objetos banais do cotidiano doméstico, ocultando seu rosto. Esses autorretratos são analisados com base no conceito de (des)rostificação: ação de desrostificar e voltar a rostificar a imagem, tendo como base Deleuze & Guatarri (2012).

 

1. O rosto e as rostificações

Em arquivo de vídeo produzido para o projeto "Interrompendo Artistas", de Kátia Maciel, Cais (2012), ao falar sobre o seu processo, conta que nas primeiras fotografias feitas não cobria o seu rosto. Mas, à medida que foi revendo as imagens, percebeu que o semblante "convidava muito para o artista". Como ele não queria que o espectador interpretasse as imagens pelas feições, se é um rosto alegre ou nostálgico, interessou-se por desidentificar seu rosto, passando, então, a "vedá-lo" e a "camuflá-lo", para que a identificação das feições diminuísse (Figura 1). Segundo o artista, seu interesse é entender o que chama de "corpo-massa" (um corpo humano que pode ser qualquer corpo), e fazer com que o espectador acesse a imagem pelo todo, sem gerar discussões acerca das feições do rosto.

 

 

Conforme Deleuze & Guattari (2012), o rosto é a parte do corpo privilegiada de comunicação e expressão, pois emite e recebe signos significantes; é uma espécie de mapa, com traços, linhas e rugas, que servem como orientação para atribuirmos significação a alguém. Logo, o rosto é o que cada um tem de mais individualizado, próprio e singular; funciona como espaço de comunicação, parecendo adquirir vida própria e existir por si mesmo.

Os autores citados afirmam que o rosto não é apenas uma superfície, um invólucro exterior responsável por recobrir a cabeça, porque esta última não é necessariamente um rosto, já que se integra ao estatuto de organismo, comportando um conjunto regulado de órgãos, como o cérebro (o principal órgão do sistema nervoso). Contudo, tanto a cabeça quanto seus elementos podem ser rostificados, assim como o corpo e qualquer uma de suas partes (seios, ventre, pernas). Mesmo os objetos de uso, uma casa ou uma paisagem podem ganhar um rosto. Com essas colocações, Deleuze & Guattari (2012) apontam para o fat o de qualquer elemento ser passível de rostificação. Assim, rostificar algo é dotá-lo de expressão particular, de significância, de interpretação e de subjetivação, produzidas socialmente.

Essa produção social do rosto nem sempre foi comum na humanidade. Os autores referidos citam o exemplo das sociedades "primitivas", pois nelas poucas coisas "passam" pelo rosto. Sua semiótica não é significante e subjetiva, e sim coletiva, plurívoca e corporal. As máscaras, usadas em rituais, não exaltam um rosto; asseguram a pertença da cabeça ao corpo, interligando-se a outros devires, como os "devires-animais". Em muitas dessas sociedades, mediante a vestimenta de máscaras e, por vezes, através do uso de substâncias alucinógenas, animais apoderam-se do corpo humano, com a ocultação dos rostos. Nessa acepção, o rosto não é uma necessidade universal, mas uma construção humana.

 

2. As ambivalências de um rosto

Por ser o rosto uma construção, é possível relativizar os clichês de que deciframos a interioridade de alguém com base nas suas aparências e de que o rosto seja a expressão do "interior" de uma pessoa. Por serem as identidades do sujeito contemporâneo fluídas e provisórias (Bauman, 2005), a supervalorização do caráter simbólico e subjetivo do rosto passa a ser problematizada. Por isso, quem sabe, Deleuze & Guattari (2012) considerem o rosto um território agregador de ambivalências, já que suscita interpretações parcialmente fiéis, se considerarmos que agencia sentidos prováveis e múltiplos, nunca fechados.

Nessa direção, cabe perguntar: por que confiamos no que nos "dizem" formas de olhos, bocas e narizes? Por que eles estariam aptos a expressar o "interior" de alguém, se outras partes do corpo e tudo o que está ao seu redor é potencialmente rostificado?

 

3. Esfacelando um rosto

Deleuze & Guatarri (2012: 40) acreditam que "[…] se o homem tem um destino, esse será mais o de escapar ao rosto, desfazer o rosto e as rostificações, devir imperceptível, devir clandestino". Isso ocorre para conduzir-nos ao a-significante, ao a-subjetivo, sendo necessário atravessarmos o muro do significante, mergulhando nele para suscitar intensidades e a criação de um mundo destituído de lógica.

[…] quando o rosto desaparece, quando os traços de rostidade somem, podemos ter certeza de que entramos em um outro regime, em outras zonas infinitamente mais mudas e imperceptíveis onde se operam os devires-animais, devires-moleculares subterrâneos, desterritorializações noturnas que transpõem os limites do sistema significante (Deleuze & Guattari, 1995: 66).

Assim, é importante criarmos novos usos para essa rostificação de tudo, transpondo os limites do sistema significante, pois é "somente no interior do rosto […] que os traços de rostidade poderão ser liberados" (Deleuze & Guattari, 2012: 66). Essa liberação do código, ocorrida no interior da própria linguagem, consiste em fugas criadoras que conduzem a novos devires em fluxo.

 

4. As (des)rostificações nos autorretratos de Nino Cais

Todas essas considerações sobre as rostificações e desrostificações, teorizadas por Deleuze & Guattari, são passíveis de relação com as intenções de Nino Cais, ao fotografar-se. A princípio, seus autorretratos podem ser considerados uma forma de reação às rostificações, impostas pela nossa cultura, a fim de desvencilhar-se dos traços de rostidade. Isso é perceptível na busca pela ocultação da face, envolvida numa espécie de abstração que abrange tentativas de aniquilar a aparência; evidencia-se, ainda, na busca por escapar da organização humana da figura, mesclando-a com outros elementos. Isso revela, quem sabe, um desejo momentâneo do artista de desviar-se da mesmidade do "eu" para "reter" as características de outros objetos, na tentativa de fundir-se a eles e de desaparecer, por meio dos encobrimentos (Figura 2).

 

 

Desse modo, o artista entrega-se a outros devires, tal como um devir imperceptível, o qual se manifesta na tentativa de desaparecer por intermédio das mimetizações e da ocultação da figura, envolvida numa espécie de quase abstração, por aniquilar a aparência do rosto. Mediante composição de cores e estampas semelhantes, usadas sobre o corpo e ao seu redor, o artista confunde-se aos objetos domésticos, tornando-se quase imperceptível em alguns de seus autorretratos. Por meio do procedimento de encobrimento, o artista contraria a noção tradicional de autorretrato, centrada na fisionomia. Suas fotografias reconfiguram essa noção, impondo-se como autorretratos pela presença física do corpo do artista diante da câmera fotográfica, exibido numa relação com objetos que o rodeiam e o afetam. São imagens que tensionam um universo de materiais simples, quase insignificantes por sua recorrência e trivialidade nas residências humanas, propondo relações inusitadas entre as coisas (Figura 3).

 

 

A transposição dos limites do sistema significante, que ressignifica o autorretrato, foi analisada na obra de Nino Cais, por Alves (2013). O autor afirma que, mesmo não havendo o rápido reconhecimento de quem está embaixo dos objetos retratados, por ser Cais fotografado coberto, a sua identidade não é completamente perdida. A partir das escolhas do artista, o corpo institui sentidos aos objetos, que não seriam os mesmos se fossem compostos isoladamente, sem esse contato físico.

[…] o corpo jamais poderia ser reduzido a uma base que recebe passivamente os sentidos externos a eles. Ao contrário, em vez de mero sustentáculo, é o corpo que doa e recebe sentido dos objetos. A sua presença é incontornável e mesmo quando talvez exista uma vontade de anular ou igualar o corpo a um objeto barato, ele reaparece chamando a atenção para o aspecto bizarro dessa operação, como se nos lembrasse de sua especificidade em relação aos objetos cotidianos (Alves, 2013:04).

O corpo, que poderia sugerir passividade, não se apresenta de modo banal e inerte. O artista volta-se sobre si mesmo para investigar as potencialidades e limitações de seu corpo em contato com os objetos que o rodeiam. Desse modo, os objetos agem sobre o corpo e o corpo age sobre eles, e ambos reconfiguram-se nessa conexão ativa.

Os objetos, do modo como são colocados em relação com o corpo do artista, perdem sua funcionalidade doméstica tradicional, ressignificando-se. Logo, o corpo é ativo, uma vez que atribui e recebe sentidos, sendo impossível ocultá-lo, pois os traços de rostidade lhe acompanham. Além disso, seus volumes e curvas sobressaltam. Os tecidos, usados para cobrir, terminam por revelar um rosto anônimo e oculto.

 

Conclusão

Mesmo sendo possível tratar os autorretratos de Cais como forma de reação às rostificações impostas pela nossa cultura e como uma tentativa de desrostificação, a configuração da cabeça, oculta sob os têxteis, é um dado intrigante no trabalho. Mesmo coberta, a cabeça não perde sua identidade visual; ela "teima" em aparecer e a possibilitar a construção de sentidos, ocorrendo uma nova rostificação da imagem.

Ao retratar o rosto encoberto sob têxteis e o corpo em contato com objetos do cotidiano doméstico, Cais desestabiliza uma leitura da imagem pautada pela expressões fisionômicas faciais, possibilitando outras interpretações ao autorretrato. Os sentidos de suas imagens podem ser acionados em conjunto com a subjetividade e as memórias do expectador. Isso demonstra a dificuldade de afastarmo-nos da significância e da subjetividade, para desrostificarmos os autorretratos. A vontade de desrostificação se torna impossível; como vimos, a potencialidade de atribuição de sentido está em qualquer objeto, pois a latência de significações não está só no rosto, mas no corpo inteiro e em tudo ao seu redor. Assim, a partir da tentativa de desrostificar a imagem, Cais alcança outros sentidos no trabalho; Seus autorretratos revelam tensões visuais ocorridas devido à tentativa de fundir elementos variados, de unir componentes díspares, os quais desassossegam o nosso olhar.

 

Referências

Alves, Cauê (2013) "O corpo no trabalho de Nino Cais" Performatus. ISSN 2316-8102. N.7: 01-06 [Consult. 2016-06-25] Disponível em URL: http://performatus.net/wp-content/uploads/2013/10/O-Corpo-No-Trabalho-de-Nino-Cais-Performatus.pdf         [ Links ]

Bauman, Zygmunt (2005) Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ISBN: 978-85-7110-889-9.         [ Links ]

Cais, Nino (2012) "Projeto Interrompendo Artistas: Nino Cais na 30º Bienal de São Paulo." Curso de Katia Maciel (Arquivo de vídeo), Escola de Comunicação — Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Lei de Incentivo à Cultura, Ministério da Cultura, Governo Federal [Consult. 2016-08-22] Disponível em URL: https://www.youtube.com/watch?v=KptmETAGEig         [ Links ]

Deleuze, Gilles & Guattari, Félix (1995) Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34. ISBN: 85-85490-65-9. Vol. 2.         [ Links ]

Deleuze, Gilles & Guattari, Félix (2012) Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. 2.ed. São Paulo: Ed.34. ISBN: 978-85-7326-017-5. Vol. 3.         [ Links ]

 

 

Enviado a 04 de janeiro de 2018 e aprovado a 17 de janeiro de 2018

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: karinegperez@hotmail.com (Karine Gomes Perez Vieira)

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