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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.23 Lisboa set. 2018

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Maria Lino: a escultura como modo de vida

Maria Lino: the sculpture as a way of life

 

João Castro Silva*

*Portugal, escultor e professor.

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e Estudos em Belas Artes. Largo da Academia Nacional de Belas Artes 14, 1200-005 Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Nada nasce de um vazio. A partir de processos mais racionais ou mais intuitivos, as esculturas que produzimos referenciam uma realidade objectiva que apreendemos à medida que tomamos consciência daquilo que nos rodeia, sejam modelos reais sejam modelos teóricos nascidos da confrontação com uma determinada realidade. A Escultura de Maria Lino é um trabalho que se desenvolve de dentro para fora e de fora para dentro. De uma relação intrínseca com as suas formas, a sua poética pessoal, e com a forma e resistência que a matéria lhe concede. A relação entre forma e conteúdo, estrutura mental e estrutura física. O acordo entre Tema, Ideia ou Conceito, e linguagem plástica. O desenvolvimento de uma linguagem tridimensional com base num pressuposto mental.

Palavras chave: Escultura / Maria Lino / madeira.

 

ABSTRACT:

Nothing is born of emptiness. From more rational or more intuitive processes, the sculptures we produce refer to an objective reality that we learn as we become aware of what is around us, whether real models whether theoretical models born from the confrontation with a given reality. The sculpture of Maria Lino is a work that is developed from the inside to the outside and from the outside to the inside. Of an intrinsic relation with its forms, its personal poetics, and with the form and resistance that the matter grants to it. The relation between form and content, mental structure and physical structure. The agreement between Theme, Idea or Concept, and plastic language. The development of a three-dimensional language based on a mental assumption.

Keywords: sculpture / Maria Lino / wood.

 

Introdução

 

Otros comenzaron ahacer esto sólo quitando, como los que apartando lo superfluo sacan a la luz la figura del hombre que quieren, que antes estaba escondida en el bloque de mármol. A estos llamamos escultores". (Alberti, 1999:130)

 

Maria Lino é Escultora (Figura 1).

Nasceu na aldeia do Feital, Trancoso, em 1944. Entre 1962 e 1969 frequentou o Curso de Escultura da Escola Superior de Belas-Artes do Porto e de Lisboa e de 1970 a 1977 frequentou a Escola Superior de Belas-Artes de Hamburgo. Desde 1968 realiza dezenas de exposições individuais e colectivas em inúmeras cidades da Europa. Em 1997 volta para o Feital e aí se mantém trabalhando em Escultura, num espaço em que a vida se funde com a Arte. Uma existência dedicada à poiética. Onde as tarefas diárias ganham o mesmo sentido das obras que vai fazendo e o tempo tem outro significado já que a cadência é a mesma que se imprime sobre um tronco de castanho, de ferramentas nas mãos.

 

 

 

Maria Lino

The sculptor carves because he must. He needs the concrete form of stone and wood for the expression of his idea and experience, and when the idea forms the material is found at once. (Hepworth, 1932:332)

O esculpir como prática tem uma história profunda, antiga, muito antiga, e essa relação entre a escultura contemporânea e os métodos de trabalho arcaicos repetem-se nos gestos da Maria Lino. Não se trata apenas de materializar mas de captar sensações ligadas directamente ao fazer escultura, com ferramentas em matérias sólidas e resilientes (Figura 2).

 

 

Para a Maria o talhe não é simplesmente um método de fazer, é mais um modo de pensar, um entendimento e um modo de estar. Podemos dizer que o talhe está intimamente ligado a um sentido estético e vivencial para aquilo que ela vê como um modo de vida mais ética e autêntica.

O talhe é fundamental para a Maria como pessoa ao longo da sua carreira como escultora. A vida como uma harmonia particular com a obra que vai realizando numa variedade quase infinita de matérias e materiais. E que fundamento é esse que se mantém, então? Talvez uma procura do que somos, entender os mecanismos do nosso ser, da nossa existência. Aprofundar o conhecimento de onde partimos, tentar saber o que é isto, o mundo, as pessoas. Tentar alcançar o inexplicável, o intangível. Criar uma idealidade crível, alterar a realidade de uma forma verosímil.

 

Talhe Directo

Carving as an activity has remained unchanged since man first started hewing away at a stone to fashion his image. The process is to take away from the stone until an image or form is judged satisfactory by its creator. This is as true today as it was in 5000 B.C. (Padovano, 1981:91)

O que é o Talhe Directo? É diferente, simplesmente, de esculpir per se? Todos os métodos de escultura esculpida exigem uma acção directa de remoção de material, com ferramentas específicas, mas o termo Talhe Directo representa algo distintivo e especial. O talhe directo é não apenas técnica e método, mas uma quase doutrina que enfatiza o encontro directo com a matéria sem a necessidade de mediação de modelos preparatórios (Figura 3). O talhe directo é uma abordagem para fazer escultura, onde o processo vai sugerindo a forma final em vez de um modelo prévio elaborado em barro ou cera. O talhe directo é uma doutrina de verdade, o respeito consciente da natureza da matéria, revelando as suas propriedades e características particulares, em formas simples e depuradas (Figura 4).

a madeira escolhida é esculpida no sentido de revelar o mais possível do seu interior.

M. Lino vai à procura da essência do tronco que trabalha, tentando perceber o que existe dentro dele e o que será possível revelar. As mil e uma formas que se escondem dentro do material é o que torna o processo de esculpir uma descoberta, sempre diferente. (Galsterer, 2013:27)

 

 

 

 

O talhe directo é, para a Maria, uma disciplina física e mental. As suas ideias, que são as formas que vai fazendo, são definidas a par e passo. É o tempo e a resistência da matéria face àquilo que a Maria a ela adequa, em sintonia mas assertivamente, que fixa nas formas prévias aquelas que a escultora encontra. Não é tanto o impor de uma forma a uma matéria, mas antes libertar a vitalidade contida no interior do bloco, o compromisso entre as formas e os conceitos da imaginação, uma negociação entre a ideia, a matéria e a forma (Figura 5).

 

 

Com ponteiros, escopros, garfos de dentes, macetas e escodas numa toada rítmica que ecoa ao longe, talhar é uma das actividades que mais preenche um escultor. Partir de um bloco natural e pouco a pouco retirar o excesso de matéria até à obtenção da forma pretendida. Blocos e estilhaços cortados com ritmo e às camadas, num processo exaustivo, misto de físico e mental em que a mão obedece à forma que a mente imaginou, ou vai imaginando, o ponteiro deixando impressas na superfície da pedra as marcas que a força do corpo obriga. O talhe em pedra faz-se com ritmo e cadência continuada. Plano a plano as formas desvendam-se balizadas pelo desenho que continuamente se faz na superfície que vai desaparecendo a toque de ponteiro. Mas o talhe directo também se faz em madeira, e se a pedra ao ser desbastada se fragmenta em pó, a madeira lasca-se emanando no ar o perfume da sua seiva. O talhe em madeira é diverso do talhe em pedra, é mais difícil retirar grandes volumes. Como se de anéis de crescimento se tratasse a madeira retira-se lasca por lasca, com enxó, machado, goiva ou formão, num trabalho continuado, igualmente de exaustão (Figura 6). Se na pedra é o choque do metal contra a matéria, na madeira é o fascínio da lâmina, o gume acerado do aço que corta, o som sibilante do talhe. A força impressa nas ferramentas, visível nas marcas que ficam gravadas no cerne. Retirando as especificidades de um e outro material, tudo o resto se baseia num mesmo princípio: descobrir a forma que se encontra em nós e se revela num volume de matéria. A pedra parte-se, a madeira corta-se, o processo é análogo: desenhar, desbastar.

 

 

Com técnicas mecânicas, trabalha-se com rebarbadoras, discos adiamantados e ponteiros pneumáticos, motosserras e discos de corte. A execução é mais rápida, fazem-se cortes mais profundos e retiram-se grandes fragmentos. Pó e ruído. A relação humanamente próxima ao fazer está mais ausente, interpõem-se entre o corpo e a matéria outros ritmos outros sons, cadências não naturais. As pausas para avaliação do desenvolvimento do trabalho são momentos de paz fulcrais, devolvem a naturalidade ancestral ao trabalho do escultor. Pára-se e o mundo cessa, o ar fica mudo. De novo o escultor e a matéria em diálogo, a relação essencial. Novos riscos esboçados no bloco e o ritmo recomeça, intenso e agressivo. Como se o hermetismo da matéria, a sua resistente teimosia à conformação, obrigasse à violência para lhe ser retirada do interior as formas que contém.

Ao contrário da modelação, em que se trabalha a partir de um vazio, no talhe a forma circunscreve-se a um volume que já existe previamente. Em boa verdade a forma está lá, surgindo da remoção do excesso que a natureza criou à sua volta (Figura 7). Desbasta-se em função do desenho que se vai fazendo directamente sobre o bloco. Quando se talha há sempre uma referência concreta, uma massa corpórea a que se amparar, um volume que se torna em forma. A forma é talhada por igual, observando-se cuidadosamente todos os pontos de vista porque a matéria talhável não permite erros. As partes retiradas não podem ser repostas, quanto muito adapta-se, descobrindo uma forma ajustada a um outro pensamento que entretanto surgiu a partir da outra forma que entretanto desapareceu.

 

 

 

Escultura

(…) all skills, even the most abstract, begin as bodily practices (…) technical understanding develops through the powers of imagination. (…) knowledge gained in the hand through touch and movement. (Sennet, 2008:10).

A escultura não tem tempo no sentido de ser, em essência, a mesma expressão artística que era quando foi inventada: uma forma de expressão tridimensional que se baseia na escala, na proporção e na harmonia e se desenvolve no espaço que habitamos.

Uma escultura é sempre fruto de uma ideia. Ideia que se refere a um autor mas que é o reflexo de uma época, de um tempo sociocultural específico que pode fazer sentido num tempo histórico próprio e perder a coerência tempos depois. Para lá dos valores conceptuais, restam como universais os valores compositivos. Uma escultura poderá perder o critério da sua realização, a razão da sua existência, mas nunca perde a sua especificidade de ser escultura, objecto material e concreto. Como escultura, permanece incorrupta e factor de eternas reinterpretações.

Escultura é a capacidade de passar para a matéria aquilo que todos podem pensar, imaginar ou sonhar, mas só alguns materializar (Figura 8). Em escultura a ideia determina-se a partir do momento em que se resolve, ou encarna na matéria com toda a carga de limitações que esta comporta. Escultura é um processo de realização formal tridimensional que se baseia em representações conceptuais ligadas directamente a uma expressão interiorizada de sentimentos, reflexões ou encadeamentos de ideias. A prática — que em escultura deve sempre ser vista como teórico-prática — potencia novos pensares e novos ideários pelo simples facto da aprendizagem específica e do contacto directo com as diversas Matérias. Por outro lado promove um saber intrinsecamente teórico que se adquire pela relação directa com o fazer. Um escultor é-o, não pela utilização de ferramentas e energia física na execução de uma Obra, a técnica de um escultor é acima de tudo a mente por trás disso.

 

 

Escultura é também, como desde sempre, um sistema de relações. A relação da forma com a ideia que mais não é do que a adequação do conteúdo ao seu contentor num processo de renovação contínua em que nenhum deles se torna mais importante do que o outro. Forma e Ideia, Ideia e Forma. A forma contém uma ideia e nasce dela ou a ideia contém uma forma pré-definida? Miguel Ângelo dizia que a forma estava no bloco de pedra e que só era preciso retirar o excesso, aideiapoderiaserentãopré-existente, jáqueuma Formaé, emsi, Ideia. E é na comunhão entre o objectivo da Matéria e o subjectivo da Ideia que a Forma se encontra (Figura 9). A ideia toma corpo na matéria e é aí que subsiste, num mundo que é concreto e ao mesmo tempo subjectivo. A matéria concede um sentido prévio à escultura que a alberga. A forma é ilusória antes de se afirmar na matéria como acção. A matéria é um componente construtivo da forma e ambas condicionam e impõem os seus princípios reguladores uma à outra. Não é possível separar aquilo que na verdade se constitui como um todo, matéria e espírito, forma e conteúdo, ideia e contentor.

 

 

Há a relação do escultor com a matéria e a maneira como determinada matéria possibilita, ou impede a expressão de determinadas formas. A matéria é o lugar da possibilidade física de concretização mas também o lugar da impossibilidade de transmutação das ideias em objecto. Na relação que o escultor estabelece com a matéria e que é contingente da forma, podemos falar da técnica que, se hoje em dia é por vezes tão desvalorizada, é ela que permite ao escultor uma maior afinidade entre a ideia base para a obra e a forma final que vai obter. O escultor é, como sempre foi, aquele que tem a potencialidade de transformar ideias em formas tridimensionais, aquele que explora as especificidades de determinada matéria no sentido de as adequar a um discurso pessoal e no entanto universal. Perceber as características das matérias e tirar partido da sua estrutura física e expressiva é o primeiro passo para o desenvolvimento de uma linguagem pessoal, única. Para lá da vontade do escultor há a personalidade e resistência da matéria. É sempre de uma relação de entendimento do escultor com a matéria que as formas tridimensionais se objectivam (Figura 10).

 

 

(…) material reality talks back, it constantly corrects projection, cautions about material truth. (Sennet, 2008:272).

Trabalhar em talhe directo sobre um bloco, remete para um tempo sem tempo, e este "tempo sem tempo" remete-me para o atelier da Maria Lino — a que chamou Temos Tempo — para uma relação que equaciona harmonicamente o ser e o fazer dando sentido e significado à phisys grega num envolvimento físico que sintetiza o significado da Escultura. Físico no sentido de uma integridade do Corpo, da plenitude do todo, absorvido numa actividade, como se o 'à volta' não existisse. Um estado de ausência da realidade que nos envolve, um confronto com a realidade ela mesma, do Corpo com a Matéria. Mas está para além de um confronto, de uma relação, é como se a matéria que se conforma passasse a pertencer ela mesma à nossa totalidade. Como se pelo facto de a talharmos nos talhássemos a nós próprios numa unidade dinâmica entre corpo, espírito e matéria. É a forma de conhecimento de uma verdade que não se entende de outra maneira. Um processo que tem de ser experienciado para ser percebido. Um inebriante esforço físico e mental que ao final do dia ainda faz a Maria dizer: "Hoje foi bom…"

 

Referências

Alberti, Leon Battista (1999) De la pintura y otros escritos sobre arte, Madrid: ed. Tecnos, ISBN 84-309-3336-0        [ Links ]

Galsterer, Alda (2013) Maria Lino, A Essência das Coisas, Foz Coa: ed. Fundação Coa Parque –Fundação para a Salvaguarda: ISBN 978-989-98329-0-9        [ Links ]

Hepworth, Barbara (1932), The Sculptor carves because he must, The Studio an Illustrated Magazine of Fine and Applied Art. Volume 104, July to December: ISSN 2365-6751, consultado em: https://barbarahepworth.org.uk/texts/        [ Links ]

Padovano, Anthony (1981) The Process of Sculpture, New York:Da Capo Press, Inc, ISBN 0-306-80273-2        [ Links ]

Sennet, Richard, (2008), The Craftsman. New Haven:Yale University Press, ISBN 978-0300-15119-0        [ Links ]

 

 

Enviado a 04 de janeiro de 2018 e aprovado a 17 de janeiro de 2018

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: j.castrosilva@belasartes.ulisboa.pt (João Castro Silva)

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