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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.23 Lisboa set. 2018

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Del LaGrace Volcano: 'Terrorismo de género em part-time.'

Del LaGrace Volcano: 'part-time gender terrorist.'

 

Luís Herberto*

*Portugal, Artista Plástico.

AFILIAÇÃO: Universidade da Beira Interior (UBI), Faculdade de Artes e Letras, Departamento de Comunicação e Artes/ LabCom/ IFP. Endereço postal completo: Rua Marquês D'Ávila e Bolama, 6201-001 Covilhã, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Del LaGrace Volcano, artista visual e produtora cultural actua a partir de questões sociológicas derivadas do comportamento meta-normativo que regula definições como 'género', 'transgénero' ou 'intersexual', permitindo um discurso interpretativo que ultrapassa a polaridade bio-social para o masculino e feminino. O seu trabalho interfere eficazmente nas leituras heteronormativas e de registo queer, permitindo diversas acepções neste domínio.

Palavras chave: intersexual / género / provocação / normatividade.

 

ABSTRACT:

Del LaGrace Volcano, a visual artist and cultural producer, acts on sociological issues derived from meta-normative behavior that regulates definitions such as 'gender', 'transgender' or 'intersexual', allowing an interpretative discourse that goes beyond the bio-social polarity to the male and female. Volcano's work interfere effectively with heteronormative and queer readings, allowing different meanings in this domain.

Keywords: intersexual / gender / provocation / normativity.

 

Introdução

Del LaGrace Volcano (n.1957) actua em territórios sociobiológicos sensíveis, particularmente na própria mutação, de mulher para homem, sendo igualmente conhecida como uma artista lésbica, famosa pelo modo exibicionista como altera a sua aparência, com atributos entre homem e mulher (Figura 1). Utiliza o próprio corpo e os sinais exteriores de identificação para actuar visualmente nas construções relativas ao género e à sexualidade, na fusão do masculino e do feminino, apresentando-se no seu género intersexual de um modo assumidamente desafiador, quer nas lógicas heterossexuais como igualmente na cultura queer. Articula um fosso entre o que é conceptual e tecnologicamente possível by design, no que diz respeito à transformação intencional do género, movendo-se numa esfera que não reconhece unicamente os padrões heterossexuais e homossexuais, incitando o modo como podem evoluir e de certo modo, autonomizar-se (Figura 2).

 

 

 

 

Recusa as categorias biológicas e normativas de género para se tornar em simultâneo, objecto e sujeito na representação, assumindo-se como 'terrorista do género em part-time' (Volcano, s.d.), alertando para uma realidade que apresenta um sistema cultural aparentemente esgotado nos seus paradigmas de representação do 'género', permitindo interrogações válidas para as questões como intersexo e transgénero (Horlacher, 2016), apesar da permanência do sistema binário heterossexual revelar uma realidade perfeitamente instituída e à qual não se prevê nem se deseja alteração.

Pretendo aqui apresentar algumas particularidades na pertinência desta fusão entre sujeito e objecto, a partir do registo deliberadamente provocatório que ultrapassa a cristalização do binómio masculino/ feminino, quer no registo visual, quer nos discursos que permite.

 

Género | Sexualidade | Intersexualidade

No domínio visual em que opera, fortemente associado à cultura queer, representa uma mudança radical, em limites sensíveis que refutam de igual modo, uma ideia de esgotamento deste registo e que permitem ainda alguma surpresa prevaricadora, quer em leituras individuais, quer na estrutura social colectiva. O fenómeno público da intersexualidade demonstra, com evidência, a existência de realidades que rompem estrategicamente com os sistemas heteronormativos (Halberstam, 2005). Neste contexto, Del LaGrace esclarece distintamente o seu papel indefinido na questão do género, interferindo na imprevisibilidade reactiva do espectador, ao dirigir as espectativas para uma cultura visual e biológica instável (Figura 3)

 

 

Contudo, trabalha sobre o género e não o sobre o sexo, com constantes interrogações nesse sentido, abordando temáticas que interferem nas leituras convencionais relativas ao género: na actuação masculinizada das lésbicas e transformação interpretativa de mulher para homem (drag king), no porno gay masculino, na direcção de uma cultura queer polimorfa e de igual modo, nos confrontos com um lesbianismo assexuado (Volcano & Halberstam, 1999). Subverte deliberadamente o olhar do espectador ao manipular as espectativas condicionadas aos estereótipos de género, dificultando de certo modo, e mesmo neste artigo, uma apresentação clara ao modo como é referida, já que a nossa linguagem apenas prevê masculino e feminino e recorre à estrutura normativa instalada.

A abordagem ao conceito de género enquanto estrutura cultural para o masculino e para o feminino, apresenta-se em oposição ao sexo biológico e para os dois sexos da normatividade social. Esta possibilidade permite ainda entendimentos diversificados para os atributos biológicos, já que as características físicas de cada um dos sexos não são suficientes para questões de identidade. Nesta linha, há igualmente uma abordagem mais 'essencialista', que retira da raiz biológica as características de cada sexo. Neste caso, partindo do princípio que a 'contaminação' cultural não redefine a biológica, estabelece paradigmas redutores que pouca importância atribuem à estrutura cultural e social na construção da identidade de género. No discurso anglo-saxónico sobre estas questões, há uma forte separação nas referências a masculino/ feminino, indicando os contextos sócio/ culturais, sem contudo perder a estrutura biológica, sendo esta referente aos vocábulos macho e fêmea.

Assiste-se actualmente a um crescente interesse nestas matérias, com incidência em questões de sexualidade, como um importante aspecto dos estudos de género. O conceito de 'sexualidade' ganha autonomia na sua separação do conceito de 'sexo', porque o primeiro está integrado no discurso sobre o comportamento sexual e sobre o desejo, heterossexual ou homossexual, e o segundo é associado ao estatuto biológico, assumido está que a relação entre sexo e género passa por uma construção cultural construída, afastando os desejos das estruturas biológicas convencionais (Foucault, 1994).

Esta separação está igualmente associada, por contraste, às sociedades de organização patriarcal, que prevê a não existência de 'desvios' normativos biológicos, permitindo elucidativos estudos no que diz respeito aos discursos visuais, como por exemplo, entre muitos outros, 'Dis/ playing the phallus: male artists perform their masculinities', em que Amelia Jones interpreta o muito visível trabalho de artistas homens e heterossexuais — que se saiba — e que nas décadas de 1960 e 1970 utilizaram também o próprio corpo como arte e ou performatividade panfletária para a celebração da hegemonia masculina, através do intencional (ou não) exagero das propriedades fálicas do seu trabalho, reforçando assim a sua autoridade artística (Jones, 1994). Este posicionamento inquestionável pelo papel preponderantemente masculino na produção artística visível na História das Artes Visuais, tem uma notável reactividade em momentos de charneira política, com as consequentes mudanças sociais e despoleta imediatas e notáveis reacções, quer em artistas com discursos assumidamente feministas, quer no crescente activismo LGBTQ, que a partir de 1969 alcança expressão internacional a partir do que representam as violentas manifestações em Stonewall (Cotter, 1994): no modo como os artistas que representam estes grupos minoritários assumem a sua visibilidade, mas mais importante, na recepção pública e mais abrangente da sua obra, garantindo um caminho para uma investigação visual cada vez mais interpretativa e peculiar, evoluindo de um registo social e politizado, muitas vezes com características formais de registo documental, para expressões criativas e radicais, como em Robert Mapplethorpe (1946-1989), Natacha Merritt (n.1977), Andres Serrano (n.1950) e Del LaGrace Volcano, num reduzido universo de artistas que escolhem agir sem camuflagens temáticas, fundindo nos seus propósitos formais e sociais, que incluem a provocação intencional através de imagens sexualmente explícitas e desafiadoras dos códigos morais de conduta, elementos históricos construtores da Arte e de igual modo, explorando irrepreensivelmente questões técnicas, garantindo assim o seu lugar na high-art dominante, já que garantem uma utilização criativa da estrutura académica e artística que os estruturam (Figura 4). Os códigos de comportamento sexual que são cultivados, exercidos e igualmente policiados, estão em constante mutação e são naturalmente adaptáveis às realidades sociais e consequente contexto político, permitindo sobretudo que nos tecidos urbanos cosmopolitas e demograficamente sobrelotados, despontem realidades que ultrapassam a normatividade do discurso público recorrente do próprio exercício sociopolítico. Neste contexto, a sexualidade pode ser vista como um indicador válido para as relações de género, em determinados grupos sociais, mas de igual modo, as relações de género permitem aferir questões de sexualidade, mesmo as que ultrapassam os códigos base da reprodutividade (Figura 5).

 

 

 

 

Ao fundir estes conceitos na história das artes, com especial incidência a partir das revoluções sociais da década de 1960, e no modo como se tornam visíveis as expressões da sexualidade e do corpo, recorrendo em grande parte à operabilidade visual, será difícil não adoptar uma abordagem mais flexível, apesar da tendência para definir a diferença sexual implicar a oposição binária entre macho e fêmea e ser predominantemente enquadrada na esfera heterossexual. É sobretudo neste domínio que se organizam os processos interpretativos da imagem, com relevância para a inclinação sexual, que pode ou não destruir ambiguidades criativas e redefinir propósitos comunicativos, em autores que optam por uma apresentação pública mais consensual.

Precisamente para permitir leituras clarificadas, muitos artistas optaram por apresentar na sua obra a sua inclinação sexual, (Perry, 1999), sendo esta característica mais clara em artistas de definição LGBTQ, acentuando o seu significado nos 'queer studies.'

De um modo estrito, a produção artística não define a sexualidade do indivíduo e seria igualmente demasiado redutor permitir leituras nesse sentido: a série Made in Heaven (1991), de Koons, ou os Digital Diaries (2000), de Merritt, por exemplo, não nos permite, de modo directo, aferir que a sua inclinação é heterossexual, do mesmo modo que não nos é possível definir uma qualquer parafilia nas obras de Balthus (Balthasar Klossowski, 1908-2001) — dada a recente polémica no Metropolitan Museum of Art, NY, ao penalizarem a obra pela aferição moral do seu autor. Contudo esta acepção é mais refutável em Robert Mapllethorpe ou Otto Mühl, entre tantos outros, que intencional e assertivamente obrigam os públicos generalistas a leituras mais complexas, na fusão entre arte, interpretação e questões sociológicas emergentes e determinantes na escala evolutiva comportamental.

Se pensarmos que a questão do género não é necessariamente adereçada apenas por grupos de pressão, nomeadamente LGBTQ, é neste contexto que o são inicialmente, de um modo mais visível, bem como pela crítica feminista, entre as décadas de 1960 e 1990, mantendo a abordagem nas questões do 'género', evoluindo para os estudos sobre sexualidade e queer, mais que homossexualidade (Williams, 2011). A abordagem histórica mostra-nos que o discurso sobre estas temáticas tem evoluído da estigmatização para um ponto de vista mais positivo, incluindo a questão específica de Del LaGrace Volcano, ao assumir uma masculinidade feminina independente, e em simultâneo, não tenta recriar qualquer um dos géneros biossociais, mesmo com todo o aparato visual e algumas indeterminações que envolvem os seus propósitos. Neste sentido e a propósito, Matrix, a pintura/ retrato de grandes dimensões que Jenny Saville produziu em 1999 (Saville, 2005), permite interpretações e leituras polissémicas, desde preocupações pessoais na questão da identidade de género até à legitimação institucional, quer na estrutura activista, quer na exposição pública no mainstream artístico:

Del LaGrace em 'On Being a Jenny Saville Painting': 'Jenny Saville paints women. I no longer identify as "woman" and feel uncomfortable being read as female. I am intersex by design, an intentional mutation, and need to have my gender specified as existing outside of the binary gender system, rather than [as] an abomination of it […] My fear is that I will be read as only female and this painting may have the power to dislocate and/ or diminish my transgendered maleness in the eyes of others and quite possibly my own (Saville, Territories, 1999).

Mas a pintura que Saville produz em constantes citações do corpo feminino, afasta-se claramente dos pressupostos do olhar masculino heterossexual, acrescidas de uma demarcação no grotesco e na crítica aos padrões formais para o corpo que ocupam grande parte das relações visuais e sociais nas últimas décadas, permitindo associações a um discurso que confronta a heterossexualidade institucionalizada (Figura 6).

 

 

 

Notas conclusivas

Del LaGrace Volcano actua visualmente em referências que permitem interrogações válidas para questões de identidade de género, declarando abertamente o modo como apresenta transformações radicais nas suas características física e que se opõem às categorias biológicas e normativas que empregamos habitualmente para masculino e feminino, não sendo estas necessariamente sobre questões da sexualidade.

Esclarece distintamente o seu papel indefinido, interferindo na imprevisibilidade reactiva do espectador, abordando temáticas que seguem tendencionalmente na direcção de uma cultura queer polimorfa, subvertendo a interpretação condicionada nos estereótipos de género, aplicáveis no feminino e no masculino, permitindo ainda algumas dúvidas em questões de linguagem, já que esta é estruturada igualmente em questões socioculturais.

 

Referências

Cotter, H. (1994). Art after Stonewall. 12 artists Interviewed. Art in America, 83, No.6, pp. 56-65.         [ Links ]

Foucault, M. (1994). História da Sexualidade I. A vontade de Saber. (P. Tamen, Trad.). Lisboa: Relógio d' Água.         [ Links ]

Halberstam, J. (2005). In a Queer Time and Place: Transgender Bodies, Subcultural Lives. New York & London: New York University Press.         [ Links ]

Horlacher, S. (Ed.). (2016). Transgender and Intersex: Theoretical, Practical, and Artistic Perspectives. Dresden, Germany: Palgrave.         [ Links ]

Jones, A. (1994, December). Dis/ playing the phallus: male artists perform their masculinities. Art History, 17, No. 4, pp. 546-584.         [ Links ]

Perry, G. (1999). Gender and Art. Hew Haven & London: Yale University Press.         [ Links ]

Saville, J. (1999). Territories. UK: Gagosian.         [ Links ]

Saville, J. (2005). Saville. New York: Rizzoli.         [ Links ]

Volcano, D. L. (n.d.). home. Retrieved Dezembro 23, 2017, from Del LaGrace Volcano: http://www.dellagracevolcano.com/         [ Links ]

Volcano, D. L., & Halberstam, J. (1999). The drag king book. London: SErpent's Tail.         [ Links ]

Wawrzinek, J. (2008). Ambiguous Subjects. Dissolution and Metamorphosis in The Postmodern Sublime. Amsterdam — New York: Rodopi.         [ Links ]

Williams, J. J. (2011). The Drag of Masculinity: An Interview with Judith 'Jack' Halberstam. simploke, 19, No. 1-2, pp. 361-380.         [ Links ]

 

 

Enviado a 31 de dezembro de 2017 e aprovado a 17 de janeiro de 2018

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: herberto@ubi.pt (Luís Herberto)

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