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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.23 Lisboa set. 2018

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

'O espectador fotógrafo: Zénon Piéters' e o livro como espaço para as imagens de Patricia Franca-Huchet

'The viewer photographer: Zénon Piéters' and the book like space for the images from Patricia Franca-Huchet

 

Bárbara Mol*

*Brasil artista visual e psquisadora.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Escola de Belas Artes, Programa de Pós Graduação em Artes. Av. Pres. Antônio Carlos, 6627 — Liberdade, Belo Horizonte — MG, CEP 31270-901, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

"O espectador fotógrafo: Zénon Piéters" (2011) é imagem, livro e obra de Patricia Franca-Huchet, artista e pesquisadora brasileira, cujo trabalho com as imagens da fotografia e da literatura envolvem escrita, montagem e ficção. Este espaço para as imagens se porta como um dispositivo de subjetivação visual, tátil e intelectual, por excelência relacional. Busca-se saber como o artista, por meio de seu trabalho poético, instiga um debate em torno da imagem e do tempo ao partilhar pensamento e imagem, conduzido por uma singular discursividade na arte.

Palavras chave: Imagem / livro / poeticidade.

 

ABSTRACT:

"The viewer photographer: Zénon Piéters" (2011) is abook of the artist and researcher Patricia Franca-Huchet, whose work with the photography and literature images involve writing, editing and fiction of ordination fragments. This editing it behaves like a subjectivation device for excellence visual and tactile, relational and intellectual. In this space for images, it is important to know how the artist, through his poetic work, instigates a debate around the image and discursiveness in art, sharing thought and image.

Keywords: Image / book / poeticity.

 

Introdução

À imagem de Walter Benjamin — "o principal é arrancar fragmentos de seus contextos e lhes impor uma nova ordem, de tal forma que eles possam se iluminar mutualmente e justificar, por assim dizer, livremente suas existências

(Franca-Huchet, 2011).

E com o escritor o mundo inteiro escreve

(Duras, 1995: 24).

Depois de três ou mais xícaras de café, numa noite em Paris de 2009, a conversa entre a artista brasileira Patricia Franca-Huchet e o fotógrafo amador Zénon Piéters começava a se cristalizar em imagens.

Vestígio incandescente da constelação imagética inacabada da artista, "O espectador fotógrafo: Zénon Piéters" (Figura 1) é a primeira publicação da série nomeada "Os quatro fotógrafos. " Série em processo sobre fotógrafos, imagens, narrativas autobiográficas e ficcionais, em que a artista, pesquisadora e também professora de desenho da Escola de Belas Artes, na Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil) desenvolve e atualiza a tradição pertencente à experiência literária e à história da arte de narrar.

 

 

 

1. Imagem, livro, obra

"O espectador fotógrafo" parte daquele encontro durante o inverno francês, no qual imagens, lembranças e reflexões da artista pesquisadora e do fotógrafo, leitor e melancólico, são registradas numa edição, de único exemplar, através de ressonâncias picturais e literárias sentidas e discutidas, postas em relação e em diálogo.

Este trabalho atual com a escrita e a imagem desestabiliza a noção de representação, da fotografia de nos mostrar tudo e, ainda, evoca outra noção de tempo cultivada pela artista, por meio do procedimento sensível da montagem. Para esta autora, há um tempo fundado pela operação poética: o tempo das imagens e seus fragmentos. Para mim, artista espectadora leitora há, ainda, o tempo para folhear e sentir as páginas, de voltar e retomar alguma imagem e algum fragmento.

À sua maneira, Zénon Piéters (Figura 2) também funda seu próprio tempo quando retoma sua história: filho de uma família de livreiros que se torna fotógrafo pela necessidade de escolher deliberadamente seus gestos. Por uma necessidade de emancipar-se de seu destino pré-determinado pelo "personagem Zénon Ligre que lhe deu, desde a infância, um nome, uma direção e até mesmo uma forma de iniciação", de acordo com a autora brasileira. Esta figura iniciática vem do romance L'Oeuvre au noir, da escritora Marguerite Yourcenar (19031987), evocado por Piéters e Franca-Huchet, lançando-nos para fora do livro e, por uma sutil simultaneamente, já nos convidando a mergulhar em outra experiência livresca.

 

 

De específico volume e peso, esta edição ilumina o método formal, espiritual e intelectual com o qual a artista trabalha. Isto é, o modo como Franca-Huchet dá a ver a imagem, a evidencia instaurando em seu centro a relação do fotografável e daquilo incapaz de se tornar foto.

O que impele a questão: qual o status do objeto a ser fotografado? Abrindo a dúvida para outros gestos: qual o status daquele que fotografa, qual o status da própria fotografia, da imagem, da arte, do artista, etc.

A impossibilidade de se fotografar uma pintura é uma tomada de consciência daquele que cuidadosamente comtempla as imagens, daquele que defende sua materialidade, sua intransferível visibilidade enquanto fenômeno artístico. Esta problemática se dá a ver com a própria visualidade trabalhada, uma vez que as imagens assumem aspectos diferentes no livro: de um lado, se reportam ao diálogo, mais diretamente, em preto e branco, referindo-se à uma certa passagem e afirmação da escrita. De outro, se distingue pelas imagens em cor, nas páginas finais do livro, convocadas na discussão entre Zénon e Patricia.

As imagens em cor mostram uma série de pinturas — e suas molduras expostas, sobre um fundo indeterminado onde, às vezes, há uma pequena legenda de identificação da obra. Esta aparição acontece quando a artista, ao invés do todo, expõe apenas trechos e tangencia o quadro. Como se a pintura repelisse o aparelho fotográfico.

Este justo modo de olhar e de produzir imagens consciente de que a fotografia como ato de ver, criticamente o real, é impotente em apreender a totalidade das coisas. Isto é, a artista em diálogo com Zénon revela sua justa posição diante dasimagensao defenderasingularidadedesua matéria. Antes detudo, éaconsciência da potente unicidade de cada imagem e de sua linguagem (Figura 3). A fotografia e sua relação com a pintura — prática da artista desde 1992 –, a escrita e a ficção são ambivalências com as quais Franca-Huchet manipula seu corpus imagético, aproximando história da arte, literatura, pintura e fotografia em meio às experiências pessoais — memória, percepção, sonho. Entrelaçando o difuso e disforme, o sonho e a ficção literária, a autora potencializa novos significados integrando os resíduos sensíveis, tramando os fragmentos e restos do mundo imageantes, citações, coincidências e contingências em um espaço que administra três graus da experiência: o real, o fictício e o imaginário — cintilando a imagem do "nó de Borromeu" de Jacques Lacan, em que as três esferas se relacionam talvez, ao dar destino as imagens, ora ao dispor a criação em uma ficção tornando-a real, ora irrealizando o real.

 

 

Isto é, tomadas a imagem e a escrita na mesma situação, ordena uma transgressão: dar aparência de realidade ao irreal (Cassirer, 1994). Algo como atualizar certo gesto de fingir — quando encena o encontro entre ela e Zénon Piéters, no Café Pistache em Paris, por exemplo. Mas aqui, fingir não é mentir, uma vez que nessas operações imagéticas não há intenção de provocar engano ou confusão e, sim, a intenção de partilhar a vontade da artista de ser outro tal o poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) e seus heterônimos.

Zénon Piéters, seu personagem heterônimo, pode representar tal tríade e ser outra imagem daquele nó, na medida em que surge de um escape do real, por certo distanciamento que se deixa aproximar, um escape enviesado (Figura 4). Algo como quando se desvia o olhar e o redireciona, obliquamente, algo que desde já configura uma tomada de posição estética e filosófica em que o espectador leitor se situa próximo à imagem e, inda assim, consegue mantê-la aberta, em curvatura.

 

 

Sentir-se próximo da imagem tem relação como a proximidade do livro. Ao perceber o corpo do livro e seus quatro limiares, observa-se que existe um modo de segurá-lo em que é necessário formar uma espécie de parênteses para mantê-lo nas mãos. Enquanto uma face se volta para o centro do leitor, a outra se abre para fora, para o tempo e para o outro. Este outro que pode ter as mãos apressadas ou lentas, suaves ou abruptas, sensíveis ou indiferentes às imagens (Figura 5).

 

 

É por meio destes movimentos que ao sair da leitura, pergunto-me como o livro pode precipitar imaginários, memórias, imagens? Como as leituras nos colocam em frente a um infinito e como poderíamos segurá-lo nas mãos? Sem pretender resolver tais indagações, penso sobre a face da imagem posta para fora do objeto, ou seja, ex-posta e que é nesta exterioridade que se dá alguma possibilidade para o pensamento crítico e reflexivo sobre a obra, isto é, para a entrada de outros criadores.

Ao 'reerguer o olhar' de um livro e de uma imagem, seguindo a noção barthesiana, somos capazes de dar vida aos textos porque quando lemos damos-lhes postura (Barthes, 1988). Se damos postura aos textos é porque agimos por um fenômeno ambivalente em que ler é escrever — em nós — tais textos. Somos nós, os espectadores leitores, que expandimos imagens, que multiplicamos textos, que impulsionamos o real e a ficção. É porque habitamos a escrita, fazendo da literatura nossa morada, em instância. Afinal, é o leitor que inaugura qualquer leitura.

 

2. A artista e o bricoleur

O caráter daquele que trabalha com a imagem por meio desta específica disposição estabelece vínculo com o bricoleur. O verbo bricoler tem o sentido de ziguezaguear, fazer de forma provisória, falsificar, traficar, jogar. Na antropologia, Claude Lévi-Strauss (1908-2009), em O Pensamento Selvagem (2008), pensou sobre o bricoleur como aquele que se volta para os resíduos de obras humanas e trabalha sobre algo já constituído para fazer ou refazer seu inventário. Ele interroga seu conjunto de utensílios e materiais a fim de compreendê-los, "contribuindo assim para definir um conjunto a ser realizado, que no final será diferente do conjunto instrumental apenas pela disposição interna das partes" (Lévi-Strauss, 2008: 34). Em ensaio publicado, nomeado como "Montagem no tempo: o bricoleur o livro e o fotógrafo", Franca-Huchet investiga a relação de seu trabalho de montagem e a figura do bricoleur:

É necessário para o artista agenciar os materiais. Penso na sequência de tudo isso na palavra Bricolagem, usei intuitivamente essa palavra em uma apresentação de trabalho e, pesquisando na sequência, fui ver que ela já havia sido pensada por Lévi-Strauss (…). Trata-se de articular a ficção, amontagem e também, ateatralidade nadireçãode uma imagem que apresente conhecimento. Considero-me entãocomo o bricoleur (Franca-Huchet, 2013, CD).

Na imanência desse segundo encontro, da artista e do bricoleur straussiano, agenciar os materiais indica um acontecimento artístico, um método e um conhecimento em que a artista, como bricoleur, de olhar e discurso sensíveis construtivos, exterioriza algo do tempo. Não somente pela retomada e revisão dos vestígios com os quais trabalha, pela intenção de refazer um inventário — como a força e o peso do passado artístico –, mas ainda porque capta alguma coisa das pinturas que tentam se prolongar incompletas nas imagens do livro, algo relativo à permanência em contraponto à fotografia — marca do instantâneo e do efêmero.

Trabalhar com essas duas energias, a do passado pela tradição e a do futuro pelo que é efêmero, nos situa em um ambiente mestiço, crítico e poético (Figura 6, Figura 7): espaço mestiço da ficção, de singular pluralidade. Singular e plural é o que defendemos.

 

 

 

 

Em suas declarações, Franca-Huchet fala sobre o lugar singular do artista e retoma o que teórico Dominique Chateau nomeia de artista-pleno: aquele que procura através de sua obra participar do mundo com vivência máxima, ou nas palavras de Franca-Huchet (2011), sentir-se inteiramente no mundo e saber que ele está em nós. Essa assimilação do mundo pela artista possibilita romper a dicotomia realidade-ficção, instaurada e mantida por uma demanda excludente, e substituí-la em busca de uma vivência máxima, pela tríade realidade-ficção-imaginário.

Este artista-pleno é um produtor de imagens que se emancipa da dimensão real, onde se dá a vida, para articular seu mote sensível e simbólico livremente sem perder relação com a tradição, com a história, com a memória e com a imagem, porque entende e sente seu poder de evocar o tempo e remontá-lo. Esta prática exige a compreensão de que quando o artista "coloca uma imagem no mundo, propõe um pensamento e um saber, que podem ser inteligíveis, mas preferem ser sensíveis, pelos sentidos físicos, psíquicos e pelas intuições" (Franca-Huchet, 2009, CD). Assim, para a artista a imagem prefere se dar aos sentidos, aos afetos, as percepções.

Entre as múltiplas tarefas do artista da atualidade que se envolve com a percepção e a sensibilidade, com a reflexão e teoria artística — sem com isso ter silêncio dentro de si — me pergunto como artista, de que maneira o trabalho poético teórico pode instigar um debate que tangencie a imagem, mantendo-a à distância. Isto é, como o artista trabalha os limiares do conhecimento sobre aquilo que não é possível nem recusar nem apreender. Questão mesma que incomoda àqueles que com esperança e melancolia insistem em perseguir as imagens, mesmo muitas vezes sabendo que são perseguidos por elas.

 

Conclusão

Em sua atividade sensível, autora e heterônimo apresentam-nos a possível capacidade de reorganizar as imagens, os pensamentos e, por extensão, a memória, o esquecimento e as esperanças.

"O espectador fotógrafo" expõe-nos a importância de se repensar o espectador e sua atividade desde sempre anárquica, considerando sua subjetividade, sua experiência e seu inconsciente, uma vez que o visível, o invisível, o visual são forças concretas e corporificadas no mundo, potencialidades capazes de propor outros esquemas relacionais aos domínios formativos e cognitivos, sensitivos do ser humano.

Nesta imersão ensaística, encontro na construção estética de Patricia Franca-Huchet a importância da existência singular de cada ser humano e de seu olhar construtivo. Como se ao assumir o passado, o imaginário, a ficção, nos fizesse escutar a nossa própria intimidade. Como um sinal de que a arte é talvez a única manifestação sensível capaz de jogar com o fluxo da história, dos fenômenos e da vida. Talvez a única capaz de brincar com o tempo perdido, inatual e o mais inesperado presente (Franca-Huchet, 2011:15).

 

Referências

Barthes, Roland. (1988). O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, ISBN 8511180885        [ Links ]

Cassirer, Ernst. (1994). Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, ISBN 8533602715        [ Links ]

Duras, Marguerite. (1995). Escrever. Rio de Janeiro: Editora Rocco, ISBN: 85-325-0508-2        [ Links ]

Franca-Huchet, Patricia (2009) "Justo uma imagem. " Revista Poiésis. ISSN 1517-5677 e-ISSN 2177-8566, Vol. 13(10): 105-112. [Consult. 2014-05-04] Disponível em URL: http://www.poiesis.uff.br/PDF/poiesis13/Poiesis13justoimagem.pdf.         [ Links ]

Franca-Huchet, Patricia (2013) "Montagem no tempo: o bricoleur o livro e o fotógrafo. " In LUGAR in COMUM: IV Coletivo da Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília. [Consult.2014-05-04] Disponível em URL: http://www.anaisdocoma.unb.br/index.php/contact/category/25-poeticascontemporaneas        [ Links ]

Franca-Huchet, Patricia (2011) "Temporais: citação e colisão". Anais do 20º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, Rio de Janeiro: ANPAP. [Consult.2013-11-09] Disponível em URL: http://www.anpap.org.br/anais/2011/pdf/cpa/patriciafrancahuchet.pdf .         [ Links ]

Lévi-Strauss, Claude. (2008). O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, ISBN 30800834        [ Links ]

 

 

Enviado a 04 de janeiro de 2018 e aprovado a 17 de janeiro de 2018

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: abarbaramol@gmail.com (Bárbara Mol)

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