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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.23 Lisboa set. 2018

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Jonathas de Andrade: a tensão crítica entre a palavra e a imagem

Jonathas de Andrade: the critical tension between the word and the image

 

Cristina Susigan*

*Brasil, artista pesquisador.

AFILIAÇÃO: Universidade Prebiteriana Mackenzie, Grupo de Pesquisa: Mediação Cultural do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura. Rua da Consolação, 896, CEP: 01302-907, Consolação, São Paulo / SP, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

A arte, de forma intencional ou não, tem uma dimensão social. Os projetos de Jonathas de Andrade o colocam em contato direto com zonas de desconforto cotidiano e ao ser confrontado, se vê em xeque, tendo que rever a sua própria perspectiva. O objetivo deste texto é dar a conhecer o diálogo que Andrade estabelece — através do contato com mulheres analbafetas —, com o método de alfabetização para adultos desenvolvido por Paulo Freire; recriando novos cartazes, o artista relaciona novas palavras e imagens, estabelecendo uma simbiose temporal.

Palavras chave: Jonathas de Andrade / "Educação para Adultos" / Palavra e Imagem.

 

ABSTRACT:

Art, intentional or otherwise, has a social dimension. The projects of Jonathan de Andrade put you in direct contact with areas of daily discomfort and when being confronted, you see in check, having to revise your own perspective. The purpose of this text is to make known the dialogue that Andrade establishes — through contact with women without studies —, With the adult literacy method developed by Paulo Freire; recreating new posters, the artist relates new words and images, establishing a temporal symbiosis.

Keywords: Jonathas de Andrade / "Educação para Adultos" / Word and Image.

 

Introdução

Jonathas de Andrade, artista brasileiro, nascido em 1982 — quando o modernismo era dado como fracassado e o país vivia os últimos anos da ditadura —, em Maceió. Atualmente vive no Recife. Sua obra reflete sobre a sua própria identidade e as preocupações com a região do páis em que nasceu: o Nordeste. Trabalha com suportes variados: instalações, filmes e fotopesquisas, em processos de carácter colaborativo. Passa a infânia tentando se aproximar da arte, mas ingressa na faculdade de Direito — curso que deixa pela metade —, e que irá trazer um elemento agregador para seu fazer artístico. Serão os ensinamentos jurídicos que nortearão seu pensamento sobre sociedade, criminologia, marxismo e o estado como instrumento de classe, elementos que são transversais em suas obras. No entanto, será na faculdade de Comunicação Social e através do cinema e da fotografia que vai se "entender artista" (grifo da autora); seus primeiros projetos, misturam vários caminhos, na busca de sua arte, de seu percurso, mas já revelam uma tensão entre a imagem e a palavra.

O ponto disparador de suas obras são livros, escritos, documentos ou objetos de descarte que encontra e coleciona. Em sua obra Ressaca Tropical, 2009, exibida na 7ª Bienal do Mercosul, Andrade fará a articulação de 105 fotografias com páginas de um diário amoroso encontrado no lixo de Recife — obra que assume a forma de um "mural gráfico" (grifo da autora) —, e traçará um percurso imaginário entre as fotografias e os escritos. No projeto Eu, Mestiço, 2017, o artista terá como elemento de partida e suporte o livro Race and Class in Rural Brazil, um estudo patrocinado pela Columbia University com parceria da Unesco, publicado em 1952. O livro baseado em fotografias e entrevistas, que retratavam um agressivo resumo de manifestações raciais dos anos de 1950 no Brasil, revelou-se para o artista, ainda hoje, como uma representação bem atual. O projeto, teve a preocupação de "(…) não reafirmar a força violenta das palavras e das ideias racistas do texto original" (Andrade, 2017, https://cargocollective.com/jonathasdeandrade/eu-mestico), mais do que uma aproximação crítica de perspectiva histórica, o artista procurou dar vozes aos oprimidos. Utilizando impressão em UV sobre placas de papelão, o artista articulou fragmentos do livro e as fotografias dos retratados, escolhidos previamente através da observação de pessoas nas ruas (Figura 1), e convidados a assumirem "personagens" (grifo da autora) e representarem diante da câmera.

 

 

Ressaltando que a palavra e a imagem são um ponto de tensão nas obras de Andrade, o objetivo deste artigo é através de seu trabalho Educação para Adultos, 2010, extrair um momento de uma realidade do passado — os cartazes originais de Paulo Freire (1921-1997) nos anos de 1960 —, recolocando-os no cenário da história recente do país, estabelecendo novas leituras e um novo sentido, que convida a extrapolar as relações propostas em cada cartaz, trazendo urgências e questionamentos que ainda persistem, no sentido de encontrar fissuras para modificcar e inspirar vocabulários específicos.

 

1. Aproximações entre palavra e imagem

Ao se utilizar da palavra o poeta procura dar um sentido aos seus sentimentos. Emana da escrita sua potência, que carrega simbolicamente toda uma carga para ser explorada, que pode ser verbal ou imagética. Segundo Roland Barthes: "(…) a língua não é reacionária, nem progressista; ela é pura e simplesmente facista, porque o facismo não consiste em impedir de dizer, mas em obrigar a dizer." (Barthes, 1997, p. 16)

Na produção artística de Andrade, encontramos no núcleo a tensão entre a imagem e a palavra, intermediada pela nostalgia, o erotismo e a crítica histórica e política. O foco: o universo do trabalho e do trabalhador. Cabe as artes explorar, por vezes, essa potencialidade da palavra (Ronaldo Entler, 2010), e neste sentido, podemos fazer uma apoximação entre a obra de Andrade — as cartilhas de alfabetização de Paulo Freire —, com a obra de René Magritte (1898-1967) que também tem este mesmo elemento disparador.

Em suas obras Magritte, recorrendo a psicologia freudiana, faz-nos negar o que estamos realmente observando, como é o caso de A Chave dos Sonhos (Figura 2), que tem como ponto de partida cartilhas de alfabetização, mas aqui com o sentido subvertido. Na sua obra mais conhecida, A Traição das imagens, 1929, somos confrontados com a imagem de um cachimbo, mas o artista recorre a legenda, enfatizando que o que vemos não é um cachimbo, pois de fato apenas vemos a imagem de um cachimbo e não o objeto real, fazendo um esvaziamento da palavra. No entanto, a abordagem de Andrade será mais sutil, seus cartazes, não nos remetem ao surrealismo e a evocação do inconsciente e sua ligação com os signos e as coisas, mas uma aproximação que mesmo não sendo pedagógica, se aproxima das práticas de um determinado tempo histórico, que segundo o entendimento de Ronaldo Entler:

 

 

Essa contaminação com a realidade multiplica irreversivelmente os sentidos da obra, e nos convida a extrapolar as relações propostas em cada cartaz. Ao se tornar "lúdido", o trabalho se torna também "político", duas qualidades que a pedagogia sempre valoriza, mas raramente consegue conciliar. (Entler, 2010)

Poderíamos citar outros exemplos onde a palavra e imagem estabeleceram relações: tensões e crítica. O movimento dadaísta ao utilizar em suas fotomontagens, recortes de jornais e revistas, também recorriam a inserção de palavras, mas neste caso como carácter de denúnica da política instaurada — principalmente na Alemanha com o crescimento do fascismo. Ou Joseph Kosuth (1945-), com sua arte conceitual, faz-nos refletir sobre como a arte pode ser engendrada através da linguagem e dos seus significados. É o caso de Uma e Três Cadeiras, 1965, obra em que o artista leva para o espaço museológico, uma cadeira real, uma fotografia desta cadeira e a definição de cadeira tirada do dicionário, nos remetendo a três momentos diferentes de observação: estar diante de um cadeira comum, a reflexão diante da fotografia, onde o objeto real e a sua imitação estão em confronto e a definição que leva o espectador a pensar em outras cadeiras de sua memória. Andrade também seguirá este caminho em suas representações imagéticas, onde os temas do cotidiano do grupo seráo discutidos coletivamente, fotografados e devolvidos à classe em forma de cartaz.

 

2. Sujeitos da sua própria história

O encontro entre Jonathas de Andrade e Paulo Freire, um dos mais revolucionários educadores brasileiros, dá-se em 2006 quando encontra os cartazes — uma coleção de 21 exemplares, publicada pela editora Abril, em 1971, baseados no método de educação para adultos de Freire —, que sua mãe, professora da rede pública, havia adquirido em uma banca de jornais e usava na sua prática educativa. O seu intuito não é de protesto, mas de análise de um perído histórico que não viveu, uma interpretação das falências estéticas, tentar através da memória — através dos cartazes —, revisitar um passado do que poderia ter sido e que não foi. Segundo Andrade: "(…) Estou tentando tatear a história que me precede." (Andrade, 2010).

Sempre fiel ao seu processo ivestigativo, os cartazes são guardados. O artista ficou fascinado pela beleza e tocado pela nostalgia de um tempo que não viveu. Para compreender o momento histórico Andrade irá se apropriar para fazer questionamentos entre as palavras e as imagens, modificando e buscando novas associações ao recriar o mesmo ambiente: um grupo de 6 alunas analfabetas, em contraponto com os 5 trabalhadores de Freire, é importante retomarnos o método original do educador e seu enquadramento histórico-político.

Em 1962, o educador brasileiro Paulo Freire implementou um método radical para ensinar as pessoas a ler. Em vez de usar livros didáticos, Freire encorajou seus alunos — a primeira experiência foi aplicada com 5 trabalhadores analfabetos dos quais 3 aprenderam a ler e escrever em 30 horas —, para aprender uns com os outros, compartilhando suas experiências de vida. Freire usou o vocabulário de trabalho dos alunos para a construção de suas aulas de alfabetização. A pedagogia, que rejeitou as hierarquias normais da relação professor-aluno, funcionou. Nas palavras do pensador pernambucano: "(…) Os homens se educam entre si mediados pelo mundo. (…). Trata-se de aprender a ler a realidade para em seguida poder reercrever essa realidade." (Freire, 2011:63-68). Diante deste resultado, Freire foi convidado pelo então presidente João Goulart a organizar a Campanha Nacional de Alfabetização, nos denominados Círculos de Cultura. Mas não durou muito. Quando os militares tomaram o poder em 1964, Freire foi exilado e seu programa foi desmantelado. Entre os programas de alfabetização que emergiram em seu lugar, durante os anos da ditadura, surgiram cartazes com uma estrutura semelhante ao método de Freire; vendidos em bancas de jornais, onde as palavras exibiam conceitos populares, fiéis a imagem representada, como por exemplo a palavra 'dinheiro' ou 'comida' (Figura 3).

 

 

É este o ponto de partida de Andrade para a construção de Educação para Adultos, uma série de 60 cartazes educacionais que combinam a linguagem e a arte da interpretação no Brasil ao longo das últimas cinco décadas. Em 2010, o artista — após um período de pesquisa e de ter em mente que não faria uma abordagem pedagógica —, parte em busca de seus protagonistas. A escolha recai sobre um grupo de 6 mulheres (5 lavadeiras e uma costureira), da Associação de Lavadeiras e Costureiras de Casa Amarela, no Recife. Os encontros davam-se diarimente na pausa do almoço. Com elas trabalhou na escolha de 40 palavras, cooptando a tradição de ensino baseado nos cartazes do período da ditadura militar, impregnando-os com o método de Freire.

Com uma justaposição cuidadosa, deu origem a novos 20 cartazes, onde ele não só introduziu uma única e, por vezes, inusitada combinação de palavras, numa temporalidade distinta, e abordando no seu projeto, um olhar do mundo dehoje, reorganizando o passado em um discurso moderno (Figura 4 e Figura 5). Em troca de e-mail com a autora, o artista, em 08 de novembro de 2017, afirma:

 

 

 

 

(…) partíamos das imagens dos cartazes como início da conversa que começava descritiva e se aproximava de histórias pessoais e intimas que tocavam na existencia economica e social de cada uma delas. Fui percebendo que o processo ficava mais intenso e de fato mais horizontal na medida em que eu me expunha tambem, contando histórias minhas, e também assumindo de certa forma minha posição privilegiada (por ter podido estudar, por trabalhar com o que eu quero, por nao ter passado fome). O processo foi me trazendo várias surpresas. (Andrade, 2017)

Este ponto de tensão e dúvida irá permear todo o projeto. Dúvidas em relação ao seu papel de artista que estimula insatisfações adomercidas, fazendo-o questionar: seria ele a massa ou o protagonista? Tensões que despertam do momento histótico-político atual: um mundo pautado entre os favorecidos e os desfavorecidos, a opressão e a liberdade. A experiência artística que despoleta desconfortos pessoais ganhando dimensão social, um atrito entre o limite entre a exposição desfavorável do representado, em que este ora se aproxima, ora evita. A tensão entre a palavra e a imagem tem origem na escolha das palavras pelas prórprias protagonistas do projeto; a imagem refletida por Andrade, irá representar o olhar delas, empoderando-as, revelando uma região, uma cultura, que são delas.

Por vezes, será a mulher trabalhadora que dará voz a imagem, será a condutora da sua própria visibilidade, por meio da palavra. Foi o caso da costureira Sara, por quem o artista desenvolveu uma amizade, parceria fundamental no processo criativo como interlocutora com as outras mulheres e no cotidiano destas, sendo protagonista do cartaz Riqueza (Figura 6). Infelizmente não houve uma documentação destas conversas.

 

Conclusão

A obra de Jonathan de Andrade esteticamente falando, estabelece o limiar entre a experiência artística por si só e um carácter de denúnica, mesmo que este seja transversal a própria obra. Encarar os cartazes apenas como um "mural gráfico" (grifo da autora), seria reduzir um projeto de pesquisa que envolveu o artista com as protagonistas — da obra e de suas vidas.

O presente artigo poderá contribuir para relacionar a dicotomia entre imagem e palavra, entre a arte de Jonathas de Andrade e a linguagem de Paulo Freire, demonstrando que apesar de partirem de pressupostos diferentes — Freire parte de um referencial da vida de um trabalhador analfabeto para posteriormente nomear a palavra e por fim a imagem, Andrade parte da imagem, atribuíndo neste processo uma palavra que a represente, estabelecendo novos referenciais a uma metodologia do passado no presente, no intuito de revelar que uma "utopia fracassada" (grifo da autora) pode ser revitalizada e trazer novos discursos dentro do campo da arte.

 

Referências

Andrade, Jonathan. (2010). Educação para Adultos. [Consult. 2017.12.23] Disponível em URL: http://cargocollective.com/jonathasdeandrade        [ Links ]

Barthes, Roland. (1997). Lição. Trad. Ana Mafalda Leite. Lisboa: Edições 70. ISBN: 9789724413396.         [ Links ]

Entler, Ronaldo. (2010) Jonathas de Andrade. [Consult. 2017-12-23] Disponível em URL: http://www.iconica.com.br/site/author/rentler/        [ Links ]

Freire, Paulo (2011). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. ISBN: 8577531643.         [ Links ]

Martí, Silas. (2010). Jonathas de Andrade olha para utopias fracassadas. [Consult. 2017.12.23] Disponível em URL: http://www.canalcontemporaneo.art.br/brasa/archives/003164.html        [ Links ]

 

 

Enviado a 31 de dezembro de 2017 e aprovado a 17 de janeiro de 2018

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: csusigan@gmail.com (Cristina Susigan)

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