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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.23 Lisboa set. 2018

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Natureza e Linguagem, Grafia e Organicidade: um estudo crítico sobre a Série Plantas de Sylvia Furegatti

Nature and Language, Spelling and Organicity: a Critical Study about the Plant Series of Sylvia Furegatti

 

Marcos Rizolli*

*Brasil, Artista Visual.

AFILIAÇÃO: Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM); Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura, Grupo de Pesquisa (CNPq) Arte e Linguagens Contemporânea. R. da Consolação, 930 — Consolação, São Paulo — SP, 01302-907, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

A Série Plantas, iniciada em 2006 pela artista brasileira Sylvia Furegatti, vem reconhecendo desdobramentos através de instigante produção de objetos, instalações, intervenções e livros de artista que expandem a razão criativa original — derivada em novas demandas artísticas. Prioritariamente: a relações contemporâneas entre natureza e linguagem e os trânsitos entre grafia e organicidade. Assim, a artista conecta-se com a tradição da ilustração científica e a inovação da bioarte.

Palavras chave: natureza e linguagem / tecnologias artísticas / Sylvia Furegatti.

 

ABSTRACT:

The Plants Series, begun in 2006 by the Brazilian artist Sylvia Furegatti, has been acknowledging unfolding through the instigating production of objects, installations, interventions and artist's books that expand the original creative reason — derived from new artistic demands. Priority: the relations contemporary between nature and language and the transits between spelling and organicity. Therefore, the artist connects herself with the tradition of scientific illustration and the innovation of bioart.

Keywords: nature and language / artistic technologies / Sylvia Furegatti.

 

Introdução

Sylvia Furegatti, artista brasileira, docente no Curso de Artes Visuais da Universidade de Campinas, vem construindo uma expressividade que age na convergência entre natureza e linguagem — e que a faz despontar como emergente personalidade na cena artística contemporânea.

Essa relação se processa de forma íntima e delicada. Enquanto desenha e objetualiza, cria paisagens mínimas — que bem sabem aproveitar sua inicial formação em Artes Visuais e sua máxima titulação em História da Arquitetura e do Urbanismo.

No âmbito da natureza, tomou como suporte corpos naturais, escolhendo e recortando folhas de plantas suculentas — que atuam tanto como suporte quanto como argumento para, estrategicamente, revelar íntimas organicidades. No âmbito da linguagem, escolheu o linearismo do desenho — que no uso do nanquim branco com o bico de pena configura imagens florais (raizes, bulbos, ramos, folhas, flores) fazendo surgir delicadas grafias.

A artista unge as duas dimensões — natureza e linguagem / grafia e organicidade — através de registros fotográficos aptos ao estabelecimento de complementariedades formal-imagéticas, articulações estrutural-espaciais e acréscimos viso-conceituais.

 

1. Uma Tese

Sua pesquisa doutoral Arte de meio urbano. Elementos de formação da estética extramuros no Brasil, apresentada em 2007 à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo anunciava as preocupações conceituais da produção artística que estava em elaboração. A artista já estava envolvida com uma linhagem de pesquisa que:

Disserta sobre os aspectos constitutivos da prática e do discurso das formas da ação artística contemporânea… projetos, textos, trabalhos artísticos, bem como contextos urbanos e culturais importantes paraaverificaçãodas relações travadas pelos agentes do circuíto artístico na atualidade. Das experimentações ambientais… procura analisar as estratégias que levam a Arte a um estado possível de ser compreendido como Extramuros (Furegatti, 2007: resumo).

Tudo isso, para dimensionar a Série Plantas, objeto deste estudo crítico, iniciada com a obra Work in progress, de 2006 (Figura 1).

 

 

Assim, a partir da obra inicial, considerada o primo-motor da série, Sylvia Furegatti investiu num processo de derivações meta-criativas — compreendendo significativa expansão das próprias concepções de natureza e linguagem, traduzidas em adulteradas organicidades e empenhadas grafias. Estabeleceu, então, agudas simbioses entre paisagem e organismo. A Série Plantas, até hoje vigente no imaginário da artista, compreende corpos vegetais e corpos humanos; membranas e peles — estruturas devidamente percebidas em trabalhos mais recentes.

 

2. A Série Plantas

A partir de Work in progress a artista definiu um intenso cotidiano de pesquisa, criação e produção. Elaborou a fusão de desenho, fotografia, objeto escultórico e instalação artística — numa proposta expressiva que empregava materiais orgânicos para apresentar uma sobreposição de marcas visuais elaboradas sobre peles ou superfícies, humanas ou de plantas, nas quais se demarcavam referências de vida, de memória — a natureza animada e seus registros de linguagem.

As primeiras peças criadas — que compreendiam as folhas destacadas, com suas superfícies desenhadas foram fixadas em paredes e justapostas com pequenas imagens fotográficas que apresentavam detalhes de corpos de pessoas com desenhos sobre a pele — justamente escolhidas, por portarem manchas ou pintas naturais que, para a artista, constituiam uma espécie de jardim florido, organicamente desenhado. Então, a convivência entre universo humano e mundo vegetal se potencializava através das relações estabelecidas entre as fotografias e as folhas das plantas — que, por suas vezes, detinham em suas superfícies desenhos de outras espécies, gerando novos jardins.

A intimidade e a delicadeza da Série Plantas continuamente se renovam: as ideias sobre os ciclos da vida transmutam-se em imagens, objetos, livros de artista e intervenções. Afinal, a artista faz com que a natureza resulte em linguagem — ainda que a materialidade essencial da série seja a própria natureza. Um argumento bem contemporâneo!

Num segundo momento do projeto, em exposição realizada na Galeria de Artes da UNICAMP, em 2009, folhas jovens da espécie Agave avellanidens serviram de suporte para desenhos, então tatuados em suas peles/superfícies. As folhas tautadas foram apresentadas em caixas de acrílico transparente, fixadas nas paredes (Figura 2). Essas peças receberam o título de Epiphytas (Epi=sobre; phyton=planta) e permitiram que a artista descobrisse o tempo médio de duração do trabalho que, de algum modo, reconhecia e compreendia o ciclo de permanência da vida vegetal.

 

 

Assim, na extensão do período expositivo, as folhas — destacadas de suas organicidades vitais — permaneceram perfeitas por cerca de 4 meses, respeitado o processo de autonutrição e posterior deterioração das plantas.

Fazendo evoluir o projeto, em abril de 2013, para a experiência da Ocupação da Moradia Estudantil da UNICAMP, as plantas escolhidas foram da espécie Sansevieria Trifasciata, popularmente conhecidas por Espada de São Jorge (Figura 3). Dessa vez, as folhas estavam dispostas em vasos e com isso, numérica e tridimensionalmente, se tranformaram numa mais evidenciada proposta de intervenção e instalação. Plantadas em latas cilíndricas de alumínio, as folhagens reconheceram novos desenhos, advindos do universo das ilustrações científicas: portavam flores desenhadas com tinta branca na parte alta das folhas; portavam, ainda, textos que informavam seus nomes científicos — informações selecionadas de "um dos meus livros de referência para esse viés assumido pelo meu trabalho entre Arte, Paisagem e Natureza, trata-se do livro Garden of Eden (2008), de H. Walter Lack" (Furegatti, 2013).

 

 

Através da Série Plantas, Sylvia Furegatti vem continuamente nos surpreendendo com trabalhos de instalação, intervenção, maquetes e livros de artista — que encontram na paisagem os seus elementos estruturais.

A artista vem dedicando-se aos necessários cruzamentos entre estudos acadêmicos e projetos artísticos — orientados pela contemporânea relação Arte-e-Meio. Já realizou várias intervenções na paisagem da cidade de Campinas e de outros centros urbanos, além de agir coletivamente construção de inúmeros projetos artísticos devenvolvidos pelo Grupo Pparalelo de Arte Contemporânea, do qual a artista é sua fundadora e líder criativa.

O interesse da artista em apresentar plasticamente elementos originários da paisagem que, supostamente, fazem nascer os lugares e as coisas que percebemos no mundo, guarda ainda a intenção de propor uma reflexão sobre a origem do trabalho artístico contemporâneo, evidentemente conceitual, dada a freqüente pesquisa de novos materiais, tempos de duração e valores para o objeto da arte (Morethy Couto, 2009: texto de apresentação).

Com intimidade e delicadeza, a artista define, dia-a-dia, um projeto artístico multidimensional: as instalações formadas por objetos de parede que trazem folhas de plantas com desenhos descritivos da botânica aplicados sobre sua estrutura; os livros de artista, cujos volumes são adquiridos em sebos, reconhecem interferências de novos desenhos e colagens; a arquitetura (dos corpos, das planta, das paredes e espaços da galeria, da cidade, da paisagem… na linguagem) — percebida como argumento e contexto criativo. Sylvia faz, assim, prevalecer a percepção do espaço, em sua relação com as coisas:

 

O espaço é compreendido enquanto elemento estruturante do sistema da arte; lugar de embate dos seus diversos agentes e que pode tomar variadas formas de apresentação, demandar interpretações diferenciadas e exigir daquele que investiga uma postura atenta à dinâmica própria ao nosso tempo. A partir dessa perspectiva, que reconhece a impossibilidade de se discutir aarte contemporâneade um lugar único ou fixo (Morethy Couto; Furegatti, 2013:02)

 

3. A ilustração científica e a bioarte

A Série Plantas, também se conecta com o ideário da ilustração científica: uma atividade secular, que acompanha o conhecimento do homem desde os primórdios de sua existência e reflete, além de sua capacidade de aprendizagem, a sua evolução, deixando preciosos registros da natureza. A diversidade temática da ilustração científica é tão grande quanto a da própria ciência. A multiplicidade de técnicas disponível permite ao ilustrador a elaboração de imagens claras, objetivas e, ao mesmo tempo, cativantes. Na busca da imagem que melhor transmita a informação que se deseja, o ilustrador científico vai do hiper-realismo, passando pelo realismo até a simplificação das formas ou mesmo desconstrução da realidade.

Entre arte e ciência, a Série Plantas quanto mais evolui, tanto mais se debruça num diálogo multidimensional composto por desenhos científicos, fotografias, vídeos, livros de artista, instalações com plantas vivas — natureza e linguagem, grafias e organicidades, então, formam um metafórico arquipélago (Figura 4 e Figura 5).

 

 

 

 

Bioarte é um conceito de construção artística que compreende pesquisas interdisciplinares que fazem convergir arte e ciência. Termo originalmente vinculado aos modos de apropriação artística de conhecimentos científicos e tecnológicos, que envolvem questões sobre a vida, através de uma abordagem artística. A bioarte transgride à visão racional predominante nas ciências:

Tendo em vista que as tecnologias digitais se desenvolveram no sentido de tornarem uma extensão artificial da mente humana, as obras desenvolvidas neste campo da arte expõe a visão dos artistas com relação às contradições da vida artificial e de conceitos que implicam no assunto como orgânico e inorgânico, animado e inanimado (Silveira, 2013).

A bioarte, tão peculiarmente apropriada por Sylvia Furegatti, torna-se uma prática artística na qual o meio é a matéria viva, embora exista alguma discussão quanto aos estágios nos quais a matéria pode ser considerada viva ou vivente. Se os materiais usados pelos bioartistas são os organismos vivos, é exatamente assim que age a artista. E, certamente, expressar-se através de intervenções nas formas vivas desperta questões éticas e estéticas. A bioarte é uma experiência do século XXI para artistas que desejam aproximar ainda mais artes e ciências.

 

Conclusão

Através da Série Plantas — entre tantas outras igualmente significativas e instigantes — Sylvia Furegatti soube construir uma sólida trajetória artística. Com notável coerência expressiva, que alia teoria e prática, sempre nos oferece íntimas e delicadas respostas ao contemporâneo questionamento acerca dos limites da arte — em seus processos de legitimação das avançadas práticas artísticas, do contínuo exercício crítico e das demandas relacionais com o sistema da arte.

Sua eletiva inspiração em movimentos artísticos que, nos anos 1960, buscaram romper com os paradigmas modernistas é clara e se faz evidente tanto em suas pesquisas acadêmicas quanto em seus trabalhos práticos, voltados para a discussão da relação da arte com seu entorno, do homem com seu ambiente (Morethy Couto; Furegatti, 2013:02)

Intímas e delicadas — as propostas artísticas da artista (para muito além das fotografias, dos desenhos, dos objetos, das instalações, das intervenções, dos livros de artista, da bioarte) reivindicam o interacionismo obra-espectador. A Série Plantas, nos seus mais diversificados estágios, propõe permanente percepção ativa. O campo tensional entre obra e espectador se amplia, torna-se complexo. Da intimidade das ilustrações científicas, perpassando a delicadeza da vida vegetal, Plantas se expande para a natureza — sem deixar de ser linguagem.

Entre natureza e linguagem, entre grafias e organicidades, dilui-se a presença da artista e a unicidade do objeto artístico. Tudo, então, retorna à vida!

Por fim, na Série Plantas, o interesse da artista está na simples apresentação da natureza — ainda que qualitativa, indexical e simbolicamente representada pelos registros de linguagem que a humanidade historicamente elaborou — os signos. Eles fazem nascer as coisas e os lugares; nossa percepção de mundo; nossa conciência contemporânea; enfim, a arte.

 

Referências

Furegatti, Sylvia (2007) Arte de meio urbano: Elementos de formação da estética extramuros no Brasil. Tese de Doutorado. São Paulo: FAU-USP.         [ Links ]

Furegatti, Sylvia (2013). Apontamentos sobre a série plantas. [Consult. 2017-12-27] http://www.pparalelo.art.br/acoes/ sylvia-furegatti-apontamentos-sobre-a-serie-de-plantas/        [ Links ]

Lack, Hans Walter (2008) Garden of Eden. Colônia: Taschen. ISBN 3826503042        [ Links ]

Morethy Couto, Maria de Fátima (2009) [Texto de Apresentação] Galeria de Arte do Instituto de Artes — UNICAMP.         [ Links ]

Morethy Couto, Maria de Fátima; Furegatti, Sylvia Helena (Orgs.) (2013) Espaços da Arte Contemporânea. São Paulo: Alameda. ISBN 978-85-7939-216-0        [ Links ]

Silveira, Erico (2013). Bioarte. http://compreendendobioarte.blogspot.com.br/2013/01/o-que-e-bioarte.html [Consult. 2017-12-27]         [ Links ]

 

 

Enviado a 02 de janeiro de 2018 e aprovado a 17 de janeiro de 2018

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: marcos.rizolli@mackenzie.br (Marcos Rizolli)

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