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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.22 Lisboa jun. 2018

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

A questão racial nas obras de Cândido Portinari

The racial question in the works of Cândido Portinari

 

Norberto Stori* & Romero de Albuquerque Maranhão**

*Brasil, Artista visual.

AFILIAÇÃO: Universidade Presbiteriana Mackenzie, Centro de Educação, Filosofia e Teologia: Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura. Rua da Consolação, nº 930, Bairro: Consolação, São Paulo — SP, CEP.: 01302-907, Brasil.

 

**Brasil, Escritor.

AFILIAÇÃO: Marinha do Brasil, Diretoria de Abastecimento da Marinha. Ilha das Cobras — S/Nº — Edifício Almirante Gastão Motta, 4º andar, Bairro: Centro, Rio de Janeiro — RJ, CEP.: 20091-000, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

A partir de sua vivência nas fazendas de café de São Paulo, Cândido Portinari retrata o trabalho e a vida dos negros nos cafezais e na cidade. Assim, o objetivo deste artigo é analisar as representações dos negros e mestiços nas obras de Portinari, enfatizando sua história, sua cultura, sua beleza, sua situação social e individualidade. Conclui-se que as telas de Portinari registram as expressões do verdadeiro Brasil, construído com o suor e o sangue dos negros.

Palavras chave: Escravidão / miscigenação / preconceito racial.

 

ABSTRACT:

From his experience in the coffee farms of São Paulo, Cândido Portinari portrays the work and life of the blacks in the coffee plantations and in the city. Thus, the purpose of this article is to analyze the representations of the blacks and mestizos in the works of Portinari, emphasizing its history, its culture, its beauty, its social situation and individuality. It is concluded that Portinari's paintings record the expressions of true Brazil, built with the sweat and blood of the blacks.

Keywords: Slavery / miscegenation / racial prejudice.

 

Introdução

O artista paulista Cândido Portinari (1903-1962), filho de imigrantes italianos, nasceu numa fazenda de café perto de Brodowski — cidade do interior de São Paulo. O seu primeiro contato com as artes foi aos 14 anos de idade, quando pintores e escultores italianos que atuavam em restaurações de igrejas, o convidaram para trabalhar como ajudante.

Aos 15 anos, decidido a estudar arte e aprimorar seus dons artísticos, Portinari deixa São Paulo e parte para o Rio de Janeiro onde se matricula na Escola Nacional de Belas Artes e começa a se destacar como aluno e a chamar a atenção de professores, intelectuais e da imprensa. Entre os anos de 1928 e 1930, Portinari viaja para a Europa, estabelecendo-se em Paris. Durante esse período teve contato com outros artistas como os fauvistas Van Dongen (1877-1968) e Othon Friesz (18791949). Também teve contato e influencias de vários movimentos da Arte Moderna. Em 1931, ao regressar ao Brasil, Portinari põe em prática a decisão de retratar nas suas obras o Brasil — a história, o povo, o homem negro e mulato tanto nos cafezais como nas cidades. Suas obras em pinturas, desenhos, afrescos e murais revelam a alma do trabalhador rural brasileiro. Preocupado, também, com aqueles que sofrem, Portinari mostra a pobreza, as dificuldades, a dor do sertanejo nordestino fugindo da seca e da miséria humana (Fabris, 1990).

Desta forma, o negro e o mestiço são personagens que aparecem com certa frequência em suas obras, assim como sua força do trabalho, seu cotidiano e a esperança de um futuro melhor. Embora carregando fardos e pesadas sacas de café, nas lavouras, eles são retratados com altivez, sempre demonstrando o orgulho e a nobreza da raça.

Neste contexto, o objetivo deste artigo é analisar as representações dos negros e mestiços nas obras de Portinari, enfatizando sua história, sua cultura, sua beleza, sua situação social e sua individualidade. Foram escolhidas, como norteadoras para o debate, três obras do artista em que figuram o negro e o mestiço como personagens centrais.

 

1. A exclusão racial e a perpetuação do trabalho escravo

Findada a escravidão no Brasil, criou-se uma rede de sentidos excludente na qual, mais uma vez, o negro é colocado em condição de escravo. Além disso, os negros eram totalmente invisíveis nas obras artísticas ou apareciam, ainda, como figuras subalternas. Neste contexto, o Brasil foi construído nas costas dos negros, escravizados e, quando libertados, relegados a uma classe socioeconômica mais baixa, sem acesso às oportunidades necessárias para serem integralizados no cotidiano da sociedade (Figura 1).

 

 

Na obra o "Lavrador de Café", Portinari retrata um trabalhador negro na lavoura de café (século 20), representa-o com os braços e pés maiores que o resto do corpo enfatizando assim, como elementos de força do trabalhador como de tração física animal, demonstra ao mesmo tempo sua aproximação com o Expressionismo alemão. Essa deformação das figuras era traço marcante do pintor, representava a sua necessidade de valorizar o trabalhador brasileiro e, ao mesmo tempo, demonstrar a figura dramática e comovente do negro, marcado pelo sofrimento do trabalho duro nas fazendas.

As cores utilizadas na pintura predominam o branco e o marrom da terra, procurando demostrar a união do homem com seus pés fincados e firmes à terra em que trabalha cujo suór do seu corpo a fertiliza mais ainda do que já é. Com relação aos pés dos negros trabalhadores nos cafezais, Portinari relata:

Impressionavam-me os pés dos trabalhadores das fazendas de café. Pés disformes. Pés que podem contar uma história. Confundiam-se com as pedras e os espinhos. Pés semelhantes aos mapas: com montes e vales, vincos como rios. Quantas vezes, nas festas e bailes, no terreiro, que era oitenta centímetros mais alto que o chão, os pés ficavam expostos e era divertimento de muitos apagar a brasa do cigarro nas brechas dos calcanhares sem que a pessoa sentisse. Pés sofridos com muitos e muitos quilômetros de marcha. Pés que só os santos têm. Sobre a terra, difícil era distingui-los. Os pés e a terra tinham a mesma moldagem variada. Raros tinham dez dedos, pelo menos dez unhas. Pés que inspiravam piedade e respeito. Agarrados ao solo eram como os alicerces, muitas vezes suportavam apenas um corpo franzino edoente. Pés cheios denós que expressavam alguma coisa de força, terríveis e pacientes (Projeto Portinari, 2009:16).

2. O pensamento do negro

Em "Cabeça de Negro" (Figura 2), Portinari utiliza uma configuração idêntica aos retratos de pessoas da elite, nos quais enquadra os bustos das figuras em 3/4 de perfil no primeiro plano e as ambienta com cenários que lhes digam respeito. Neste caso, não se trata de pessoa da elite, mas de um representante da classe popular, devidamente caracterizado, generalizado, síntese de um estereótipo.

 

 

Na elaboração da obra, o artista apresenta minuciosos detalhes formais e pictóricos. O rosto do homem apresenta feições características negras como lábios carnudos, nariz largo, cabelos crespos. A luz e a sombra produzem um volume que delimita a anatomia facial do homem tornando sua figura muito próxima da de um homem real. O contraste da pele negra com a camisa branca enfatiza seu rosto, assim como o fundo em cor clara. A correta proporção da cabeça em relação ao corpo confirma sua escolha pelo gênero de pintura retrato.

A tela retrata um negro, um simples negro, um destino vago que não se afirma, que não emergirá nunca do subsolo social. Os seus estados de alma, alternando entre alegria, sempre limitada e precária, e a humilhação, sempre latente, não impressionam a ninguém e poucos acreditam que possam constituir motivo de interesse artístico (Cadilho, 2015). Portinari, em relação ao negro de perfil registra:

Eu quis compreender o negro: vi que não é alegre, porque a sua imaginação está muito mais próxima da senzala, da escravidão, que dos júbilos do progresso. Sei que a lascívia brilha nos seus dentes vivos, mas não ignoro algo de puro, de sensível, de humano, resistiu, nele, à depressão imposta por um destino de submissão, de renúncia (Portinari apud Fabris, 1996:48)

Ao fundo, em linhas mais despojadas e pinceladas mais fluidas, Portinari apresenta uma paisagem de periferia, distante da cidade de ruas calçadas, de prédios, de carros, na qual se vê, à direita, parte de uma casa com portão azul com quintal que é a base de um morro de terra e pouca vegetação. Vê também um caminho com perspectiva evidenciada pela cerca e pelos altos postes de luz, que levam a uma planície de cor clara, seguido de um morro alto com vegetação abundante e um horizonte azul. Do outro lado, um morro verde e florido, com uma igrejinha no alto e, no céu, voam urubus em um dia claro. Ou seja, se apresenta um território negro, pois, as periferias das cidades também foram ocupadas pelos desalojados das reformas urbanísticas dos centros.

 

3. A miscigenação

De acordo com Cadilho (2015), a tela "Índia e Mulata" Figura 3) se refere diretamente ao debate sobre "raça" e "etnia" e ganha notoriedade com a ideia de democracia racial surgido na década de 1930 com os escritos do sociólogo, antropólogo, historiador e escritor Gilberto Freyre.

 

 

Para Munanga (2008), a obra expressa a ideia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as desigualdades e impedindo os membros das comunidades não brancas de terem consciência dos sutis mecanismos de exclusão da qual são vítimas na sociedade. Ou seja, encobre os conflitos raciais, possibilitando a todos se reconhecerem como brasileiros e afastando das comunidades subalternas a tomada de consciência de suas características culturais que teriam contribuído para a construção e expressão de uma identidade própria.

As mulheres ocupam o centro da tela, envoltas por uma paisagem que se configura numa ilusão de profundidade, em que o artista utiliza a perspectiva nas linhas da plantação à esquerda que se direcionam à linha do horizonte e sobem o pequeno morro. Essa noção de profundidade em perspectiva marca uma espacialidade renascentista italiana.

Outra perspectiva é traçada com o curso do rio, enfatizada pelo tronco apontado na mesma direção. A leitura possível de fazer sobre a presença de um rio nessa paisagem é a que Lilia Schwarcz comenta, em que "a mestiçagem era comparada a um grande e caudaloso rio em que se misturavam — harmoniosamente — as três raças formadoras" (Schwarcz, 1998: 177). Assim, a mulata e a índia ali personificadas são produtos da mistura com o branco, presente na paisagem, no latifúndio que se ergue ao seu redor.

 

Conclusão

O negro nas telas de Portiari emerge como uma das expressões do verdadeiro Brasil, um país construído com o suor e o sangue dos negros. Essas representações com forte apelo social demonstram a preocupação do artista em adicionar traços de brasilidade às suas obras, além de incorporar inovações estéticas.

Portinari conseguiu retratar questões sociais sem desagradar ao governo, já que participou ativamente da política, e aproximou-se da arte moderna europeia sem perder a admiração do público. Suas obras sofreram influências do Expressionismo, do Cubismo, do Surrealismo e dos pintores muralistas mexicanos.

 

Referências

Cadilho, Carine da Costa (2015) "O negro e o mestiço na pintura de Candido Portinari dadécada 1930". Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ.         [ Links ]

Fabris, Annateresa (1990) Portinari, pintor social. São Paulo: Editora Perspectiva, 1990.         [ Links ]

Fabris, Annateresa (1996) Cândido Portinari. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.         [ Links ]

Munanga, Kabengele (2008) "Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra". Belo Horizonte: Autêntica.         [ Links ]

Projeto Portinari (2009) Cronobiografia de Cândido Portinari. Disponível em: https://rl.art.br/arquivos/3100215.pdf. Acesso em: 30 de dezembro de 2017.         [ Links ]

Schwarcz, Lilia Moritz (1998) "Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade". In. Schwarcz, Lilia Moritz (Org.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, pp. 173-244.         [ Links ]

 

 

Enviado a 04 de janeiro de 2018 e aprovado a 17 de janeiro de 2018

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: nstori@uol.com.br (Norberto Stori)

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